Não estamos falando de mandar uma missão tripulada para Netuno, mas de poder viajar sem a neurose dos aeroportos ou o perigo das rodovias. Não deveria ser tão complicado
Era um dia gelado em Paris. Acordei, peguei o metrô até a estação de Lyon e embarquei no TGV para Marselha. (Como eu já tinha o Eurail Pass, a passagem ficou em 3 euros.) Atravessei o país observando a paisagem rural passando pela janela a 300 quilômetros por hora. Cheguei a Marselha, me aqueci ao sol do Mediterrâneo e no fim da tarde peguei o TGV de volta a Paris. Na noite seguinte embarquei no Elipsos na estação Austerlitz. Jantei a bordo, conversei com outros passageiros no balcão do bar, dormi pesado na minha cabine, embalado pelo balanço do trem. No início da manhã desembarquei na estação Sants e fui conhecer Barcelona.
A pergunta é: por que nós, brasileiros, não temos direito a isso? Por que não podemos pegar um trem de alta velocidade em São Paulo, matar a saudade do Rio de Janeiro e voltar no fim da tarde? Por que virou uma utopia embarcar no conforto de um trem-dormitório em Salvador e acordar em Fortaleza?
Os brasileiros já viajaram — e muito — de trem. Só o Estado de São Paulo chegou a ter 18 empresas ferroviárias (Sorocabana, Mogiana, Noroeste etc.). A Companhia Paulista de Estradas de Ferro oferecia um serviço comparável aos melhores do mundo. Viajar entre São Paulo e o Rio de Janeiro a bordo do Expresso de Prata era um grande programa — até o triste dia 29 de novembro de 1998, quando o serviço foi interrompido para sempre. Essa é considerada a data simbólica na qual perdemos o direito a viajar de trem.
Em 1922, o Brasil já tinha 30 mil vagões, puxados por 2 mil locomotivas
Quem é o culpado por esse crime? A resposta mais conhecida é: “a máfia da indústria automobilística”. Apenas mais uma teoria da conspiração que não explica nada. A questão é bem mais complexa, mas pode ser resumida assim: não viajamos mais de trem porque nós, brasileiros, deixamos que equipamentos ferroviários fossem transformados em sucata enferrujada e permitimos que estações fossem demolidas. Renunciamos por omissão a um meio de transporte seguro, econômico, confortável e não poluente. Simples assim.
Temos ferrovias desde 1854, quando o Barão de Mauá ligou o Porto de Mauá a Raiz da Serra, na então Província do Rio de Janeiro. Foram nossos primeiros 14 quilômetros de trilhos. Em apenas quatro anos já havia linhas espalhando-se por Pernambuco, Rio Grande do Sul, Ceará, Minas, São Paulo, Rio de Janeiro etc. Em 1885, alcançamos um milagre da engenharia, a complexa ligação entre Curitiba e Paranaguá com a travessia da Serra do Mar. Em 1922, o Brasil já tinha 30 mil vagões, puxados por 2 mil locomotivas e circulando por 29.000 quilômetros de linhas.
O espírito de luta desses heroicos pioneiros já havia se perdido quando a grande crise dos trens brasileiros explodiu, em 1957. As ferrovias, afundadas em déficit, foram reunidas na Rede Ferroviária Federal. Na teoria, as intenções da RFFSA eram modernizadoras. Na prática, a estatal se derreteu até a total falência, em 1989.
O Brasil conserva apenas duas linhas sobreviventes de trens de passageiros de longa distância
Três anos depois, o governo Fernando Collor de Mello reverteu o processo e iniciou a privatização e o desmembramento da RFFSA. As novas empresas, como a Novoeste, a Centro-Atlântica, a MRS e a Companhia Ferroviária do Nordeste, hoje transportam exclusivamente soja, minério, cimento e outros insumos.
Trens de carga são fundamentais num país dependente do agronegócio como o Brasil. O governo federal anunciou no último dia 10 um plano para dobrar nos próximos oito anos a participação das ferrovias no total dos transportes brasileiros, hoje em míseros 15%. É uma medida apropriada para corrigir uma distorção histórica. Mas o plano não faz nenhuma menção ao transporte de passageiros.
Hoje o Brasil conserva duas linhas sobreviventes de trens de passageiros de longa distância, ambas (bem) administradas pela empresa Vale: a EF Carajás (operando entre o Maranhão e o Pará) e a EF Vitória-Minas. De resto, temos algumas linhas turísticas curtas, como as incríveis Curitiba-Paranaguá e Pindamonhangaba-Campos do Jordão. E só.
O governo petista cumpriu sua especialidade: abriu uma estatal, a EPL
Uma vaga esperança de renascimento ferroviário surgiu quando o governo da ex-presidente Dilma Rousseff anunciou a instalação do TAV, o trem de alta velocidade que ligaria Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. O TAV foi prometido primeiro para a Copa do Mundo de 2014, depois para a Olimpíada do Rio de Janeiro de 2016. O governo petista cumpriu sua especialidade: abriu uma estatal, a EPL. Que não construiu nem um trenzinho de brinquedo. Outras possibilidades de TAV incluíam ligações Brasília-Goiânia, Belo Horizonte-Curitiba e Campinas-Triângulo Mineiro. Todos esses planos foram para o congelador. Mas a estatal continua firme.
Outra esperança, mais concreta, é o TIC (Trem InterCidades), um projeto do governo do Estado de São Paulo que pretende ligar Sorocaba a São José dos Campos e Campinas a Santos, num “X” com centro na capital paulista. Seria um trem de velocidade média, cujo projeto agora vaga pelas fases de aprovação (ou não) em instâncias burocráticas.
Tirando em parte o Chile, o resto da América Latina se meteu na mesma situação inexplicável. Renunciou ao transporte de trem de passageiros e se nega a olhar para o resto do mundo. Em termos de tecnologia, os Estados Unidos e o Canadá também ficaram para trás, mas oferecem por meio de suas estatais (Amtrak e VIA) a cobertura nacional de seus territórios. A Amtrak mantém apenas uma linha mais moderna nos EUA (a Acela), ligando Boston a Washington DC. Linhas de alta velocidade estão sendo implantadas pela iniciativa privada na Flórida e na Califórnia.
O serviço considerado mais luxuoso do mundo, o Blue Train, funciona na África do Sul
Companhias ferroviárias europeias geraram grifes: Thalys, ICE, Eurostar, TGV, Renfe, Frecciarossa. Elas se aperfeiçoam com a concorrência mútua e estão tirando nacos do mercado das empresas aéreas em viagens de distâncias médias. Além disso, os europeus começaram uma onda de multiplicação de trens noturnos, com cabines onde o passageiro pode dormir, tomar um banho, fazer seu breakfast e economizar uma diária de hotel.
A Rússia já implantou seu trem de alta velocidade (o Sapsan) entre Moscou e São Petersburgo. O Uzbequistão roda com orgulho seu Taigo azul e branco a 250 hora. A Inglaterra aposta numa rede futura chamada HS2. A Índia já está na fila da alta velocidade. Todos querem um trem rápido para chamar de seu.
O Japão inventou o trem-bala (em 1964), que é aperfeiçoado constantemente. Coreia do Sul e Taiwan possuem serviços de alta performance. Quando quis mostrar ao mundo seu lado soft, a China investiu pesado numa ampla rede de trens de alta velocidade sem muito charme. (O recorde de velocidade numa linha regular hoje pertence aos chineses — o Maglev de conexão com o aeroporto de Xangai chega a 430 quilômetros por hora. Eles já estão preparando outra versão capaz de correr a 600 quilômetros por hora.)
O serviço considerado mais luxuoso do mundo, o Blue Train, funciona na África do Sul. O Marrocos está preparando uma viagem de sonhos, um TGV apelidado Al Boraq, que vai cruzar o Saara a 320 quilômetros por hora, ligando Casablanca a Tanger. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos tocam projetos próprios de trens de última geração.
É um equívoco pensar que trens de passageiros são privilégio de sociedades ricas
E o Brasil? Em termos de extensão de rede ferroviária, estamos em nono lugar no mundo, com 30.129 quilômetros de linhas. (Ou seja: depois de um século temos apenas pouco mais de mil quilômetros a mais que nossa rede de 1922.) Mas o maior absurdo é essa ausência de serviços para passageiros. Não estamos falando de mandar uma missão tripulada para Netuno, mas de poder levar a família para visitar familiares no interior sem a neurose dos aeroportos ou o perigo das rodovias. Não deveria ser tão complicado. Mas a teia burocrática e a insegurança jurídica matam qualquer iniciativa.
É um equívoco pensar que trens de passageiros são privilégio de sociedades ricas e superorganizadas como a Suíça. Países como Botsuana, Filipinas, Nigéria, Mongólia, Argélia, Malásia e Sri Lanka oferecem transporte decente de trem à população.
O Brasil nem precisa por enquanto de maglevs batendo recordes mundiais de velocidade ou do lendário luxo do Orient Express. Mas a gente deveria ter o direito a simples viagens de trem, com seu carro-restaurante, a facilidade de ler e trabalhar a bordo, a paisagem passando pelas grandes janelas, a curiosidade despertada pela parada em cada estação, o balanço e o som que nos inspiram a esticar as pernas para uma boa soneca. Poderíamos assim deixar a herança dessa magia às futuras gerações de brasileiros.
Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.