sexta-feira, 24 de julho de 2020

"O direito a viajar de trem", por Dagomir Marquezi

Não estamos falando de mandar uma missão tripulada para Netuno, mas de poder viajar sem a neurose dos aeroportos ou o perigo das rodovias. Não deveria ser tão complicado

Era um dia gelado em Paris. Acordei, peguei o metrô até a estação de Lyon e embarquei no TGV para Marselha. (Como eu já tinha o Eurail Pass, a passagem ficou em 3 euros.) Atravessei o país observando a paisagem rural passando pela janela a 300 quilômetros por hora. Cheguei a Marselha, me aqueci ao sol do Mediterrâneo e no fim da tarde peguei o TGV de volta a Paris. Na noite seguinte embarquei no Elipsos na estação Austerlitz. Jantei a bordo, conversei com outros passageiros no balcão do bar, dormi pesado na minha cabine, embalado pelo balanço do trem. No início da manhã desembarquei na estação Sants e fui conhecer Barcelona.
A pergunta é: por que nós, brasileiros, não temos direito a isso? Por que não podemos pegar um trem de alta velocidade em São Paulo, matar a saudade do Rio de Janeiro e voltar no fim da tarde? Por que virou uma utopia embarcar no conforto de um trem-dormitório em Salvador e acordar em Fortaleza?
Os brasileiros já viajaram — e muito — de trem. Só o Estado de São Paulo chegou a ter 18 empresas ferroviárias (Sorocabana, Mogiana, Noroeste etc.). A Companhia Paulista de Estradas de Ferro oferecia um serviço comparável aos melhores do mundo. Viajar entre São Paulo e o Rio de Janeiro a bordo do Expresso de Prata era um grande programa — até o triste dia 29 de novembro de 1998, quando o serviço foi interrompido para sempre. Essa é considerada a data simbólica na qual perdemos o direito a viajar de trem.
Em 1922, o Brasil já tinha 30 mil vagões, puxados por 2 mil locomotivas

Quem é o culpado por esse crime? A resposta mais conhecida é: “a máfia da indústria automobilística”. Apenas mais uma teoria da conspiração que não explica nada. A questão é bem mais complexa, mas pode ser resumida assim: não viajamos mais de trem porque nós, brasileiros, deixamos que equipamentos ferroviários fossem transformados em sucata enferrujada e permitimos que estações fossem demolidas. Renunciamos por omissão a um meio de transporte seguro, econômico, confortável e não poluente. Simples assim.
Temos ferrovias desde 1854, quando o Barão de Mauá ligou o Porto de Mauá a Raiz da Serra, na então Província do Rio de Janeiro. Foram nossos primeiros 14 quilômetros de trilhos. Em apenas quatro anos já havia linhas espalhando-se por Pernambuco, Rio Grande do Sul, Ceará, Minas, São Paulo, Rio de Janeiro etc. Em 1885, alcançamos um milagre da engenharia, a complexa ligação entre Curitiba e Paranaguá com a travessia da Serra do Mar. Em 1922, o Brasil já tinha 30 mil vagões, puxados por 2 mil locomotivas e circulando por 29.000 quilômetros de linhas.
O espírito de luta desses heroicos pioneiros já havia se perdido quando a grande crise dos trens brasileiros explodiu, em 1957. As ferrovias, afundadas em déficit, foram reunidas na Rede Ferroviária Federal. Na teoria, as intenções da RFFSA eram modernizadoras. Na prática, a estatal se derreteu até a total falência, em 1989.
O Brasil conserva apenas duas linhas sobreviventes de trens de passageiros de longa distância

Três anos depois, o governo Fernando Collor de Mello reverteu o processo e iniciou a privatização e o desmembramento da RFFSA. As novas empresas, como a Novoeste, a Centro-Atlântica, a MRS e a Companhia Ferroviária do Nordeste, hoje transportam exclusivamente soja, minério, cimento e outros insumos.
Trens de carga são fundamentais num país dependente do agronegócio como o Brasil. O governo federal anunciou no último dia 10 um plano para dobrar nos próximos oito anos a participação das ferrovias no total dos transportes brasileiros, hoje em míseros 15%. É uma medida apropriada para corrigir uma distorção histórica. Mas o plano não faz nenhuma menção ao transporte de passageiros.
Acima, comboio no Sri Lanka, país subdesenvolvido com boa malha ferroviária. No topo, travessia da Serra do Mar, uma das duas linhas que o Brasil manteve
Hoje o Brasil conserva duas linhas sobreviventes de trens de passageiros de longa distância, ambas (bem) administradas pela empresa Vale: a EF Carajás (operando entre o Maranhão e o Pará) e a EF Vitória-Minas. De resto, temos algumas linhas turísticas curtas, como as incríveis Curitiba-Paranaguá e Pindamonhangaba-Campos do Jordão. E só.
O governo petista cumpriu sua especialidade: abriu uma estatal, a EPL

Uma vaga esperança de renascimento ferroviário surgiu quando o governo da ex-presidente Dilma Rousseff anunciou a instalação do TAV, o trem de alta velocidade que ligaria Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. O TAV foi prometido primeiro para a Copa do Mundo de 2014, depois para a Olimpíada do Rio de Janeiro de 2016. O governo petista cumpriu sua especialidade: abriu uma estatal, a EPL. Que não construiu nem um trenzinho de brinquedo. Outras possibilidades de TAV incluíam ligações Brasília-Goiânia, Belo Horizonte-Curitiba e Campinas-Triângulo Mineiro. Todos esses planos foram para o congelador. Mas a estatal continua firme.
Outra esperança, mais concreta, é o TIC (Trem InterCidades), um projeto do governo do Estado de São Paulo que pretende ligar Sorocaba a São José dos Campos e Campinas a Santos, num “X” com centro na capital paulista. Seria um trem de velocidade média, cujo projeto agora vaga pelas fases de aprovação (ou não) em instâncias burocráticas.
Tirando em parte o Chile, o resto da América Latina se meteu na mesma situação inexplicável. Renunciou ao transporte de trem de passageiros e se nega a olhar para o resto do mundo. Em termos de tecnologia, os Estados Unidos e o Canadá também ficaram para trás, mas oferecem por meio de suas estatais (Amtrak e VIA) a cobertura nacional de seus territórios. A Amtrak mantém apenas uma linha mais moderna nos EUA (a Acela), ligando Boston a Washington DC. Linhas de alta velocidade estão sendo implantadas pela iniciativa privada na Flórida e na Califórnia.
O serviço considerado mais luxuoso do mundo, o Blue Train, funciona na África do Sul

Companhias ferroviárias europeias geraram grifes: Thalys, ICE, Eurostar, TGV, Renfe, Frecciarossa. Elas se aperfeiçoam com a concorrência mútua e estão tirando nacos do mercado das empresas aéreas em viagens de distâncias médias. Além disso, os europeus começaram uma onda de multiplicação de trens noturnos, com cabines onde o passageiro pode dormir, tomar um banho, fazer seu breakfast e economizar uma diária de hotel.
A Rússia já implantou seu trem de alta velocidade (o Sapsan) entre Moscou e São Petersburgo. O Uzbequistão roda com orgulho seu Taigo azul e branco a 250  hora. A Inglaterra aposta numa rede futura chamada HS2. A Índia já está na fila da alta velocidade. Todos querem um trem rápido para chamar de seu.
O Japão inventou o trem-bala (em 1964), que é aperfeiçoado constantemente. Coreia do Sul e Taiwan possuem serviços de alta performance. Quando quis mostrar ao mundo seu lado soft, a China investiu pesado numa ampla rede de trens de alta velocidade sem muito charme. (O recorde de velocidade numa linha regular hoje pertence aos chineses — o Maglev de conexão com o aeroporto de Xangai chega a 430 quilômetros por hora. Eles já estão preparando outra versão capaz de correr a 600 quilômetros por hora.)
O serviço considerado mais luxuoso do mundo, o Blue Train, funciona na África do Sul. O Marrocos está preparando uma viagem de sonhos, um TGV apelidado Al Boraq, que vai cruzar o Saara a 320 quilômetros por hora, ligando Casablanca a Tanger. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos tocam projetos próprios de trens de última geração.
É um equívoco pensar que trens de passageiros são privilégio de sociedades ricas

E o Brasil? Em termos de extensão de rede ferroviária, estamos em nono lugar no mundo, com 30.129 quilômetros de linhas. (Ou seja: depois de um século temos apenas pouco mais de mil quilômetros a mais que nossa rede de 1922.) Mas o maior absurdo é essa ausência de serviços para passageiros. Não estamos falando de mandar uma missão tripulada para Netuno, mas de poder levar a família para visitar familiares no interior sem a neurose dos aeroportos ou o perigo das rodovias. Não deveria ser tão complicado. Mas a teia burocrática e a insegurança jurídica matam qualquer iniciativa.
É um equívoco pensar que trens de passageiros são privilégio de sociedades ricas e superorganizadas como a Suíça. Países como Botsuana, Filipinas, Nigéria, Mongólia, Argélia, Malásia e Sri Lanka oferecem transporte decente de trem à população.
O Brasil nem precisa por enquanto de maglevs batendo recordes mundiais de velocidade ou do lendário luxo do Orient Express. Mas a gente deveria ter o direito a simples viagens de trem, com seu carro-restaurante, a facilidade de ler e trabalhar a bordo, a paisagem passando pelas grandes janelas, a curiosidade despertada pela parada em cada estação, o balanço e o som que nos inspiram a esticar as pernas para uma boa soneca. Poderíamos assim deixar a herança dessa magia às futuras gerações de brasileiros.

Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.