"Há mil coisas que podem ser chamadas de conservadoras, há mil coisas que podem ser chamadas de liberais. O que importa, no final, é o que você faz com elas."
Foi assim que o filósofo Roger Scruton abordou uma questão da Folha acerca das diferenças entre os valores que ele se propõe a defender em livros e a realidade política de regimes nominalmente conservadores adernando ao populismo mundo afora.
Uma evasiva deste inglês de 75 anos, o mais celebrado filósofo conservador da atualidade, que falava pelo telefone do banco de um carro na tarde quinta (4) em São Paulo, é verdade. Mas também um chamado à cautela.
"Eu sou um intelectual e gosto de ver as coisas como são, não como eu gostaria que fossem. Assim, minhas opiniões são irrelevantes."
Naturalmente não o são, mas a ponderação ao tentar colher uma avaliação sobre a ascensão de Jair Bolsonaro no Brasil passa por uma humildade objetiva. "Eu não o conheço. É preciso ver o que ele vai fazer além do personagem que é", disse Scruton.
Na véspera, ele dera palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, e lá havia comentado também sem dar nomes que os regimes populistas que se espalham dos EUA à Europa diferem de extremismos à medida em que as instituições nacionais de cada país são fortes.
O totalitarismo é uma obsessão de Scruton, que critica a União Europeia como projeto por ver nela o valor individual coibido em favor de uma burocracia sem face. Na mesma linha, apoiou a saída do Reino Unido do organismo.
Nos anos 1970 e 1980, ele ajudou a montar uma rede de intelectuais dissidentes de regimes comunistas do Leste Europeu. Acabou banido da Tchecoslováquia, só para acabar condecorado pelo país após a redemocratização de 1989.
Agora, o filósofo se viu novamente atacado pelo que chama de "totalitarismo do politicamente correto". Em abril, foi afastado do cargo de conselheiro de uma comissão do governo conservador britânico para melhorias urbanas.
O motivo? Uma entrevista à revista esquerdista "The New Stateman" na qual, ficou provado depois, o jornalista havia editado frases para que parecessem racistas ou preconceituosas. "Usaram os mesmos métodos totalitários que eu combati no Leste Europeu, tiraram tudo de contexto. Tentaram me atingir sem que eu tivesse feito nada de errado, mas pelo que eu penso", afirma.
Mesmo com a fraude revelada, ele não reivindicou o posto não-remunerado. "Eu sou um constrangimento para eles, e esse é meu papel na vida, ser um constrangimento."
"A esquerda se acha dona da verdade, e acham que devem nos calar. Na mídia social, eles podem fazer isso sem ter de fazer esforços de entendimento ou engajamento para convencer pessoas com argumentos", sustenta.
Não é uma contradição esse poder da patrulha no mundo virtual, enquanto os governos parecem se deslocar no sentido contrário? "As pessoas normais não são de esquerda no Ocidente. São contra perseguições. É aí que entra a figura de um Donald Trump. Ele fala que é contra isso, aí as pessoas votam nele."
Sobre o mérito desses governos, o laconismo de Scruton é notório.
Questionado se as ações de Trump, Bolsonaro, do húngaro Viktor Orbán e do filipino Rodrigo Duterte, além do alinhamento da nova direita europeia ao modus operandi do russo Vladimir Putin, não se chocam com reais valores conservadores, ele corta: "Não sou a favor de ninguém. Essas questões são muito difíceis de responder rapidamente".
Em sua ampla obra filosófica, Scruton coloca no centro do conservadorismo a valoração da experiência do indivíduo. E essa, diz, só pode ser integral com a apreciação do outro, do lugar do outro.
A retórica da nova direita não se chocaria com isso? "As coisas são muito mais sutis do que aquilo que os políticos dizem para vencer as eleições. Eu prefiro ficar de lado", diz.
Ele concorda, contudo, que possa haver característica de um "conservadorismo à brasileira", ao comentar uma pergunta sobre o papel das denominações evangélicas na construção do "éthos" político desse grupo no país —algo semelhante ao que ocorre nos EUA de Trump.
Novamente, contudo, ele prefere não ser assertivo. Isso continua quando o assunto é Olavo de Carvalho, o escritor radicado nos EUA que é considerado um dos introdutores dos textos de Scruton no Brasil, em artigos de jornal nos anos 1990.
Scruton diz que já ouviu falar, mas não conhece o ideólogo do bolsonarismo. "Muitos me dizem que devo lê-lo. E também que é uma figura divisiva", afirma.
Informado de que Bolsonaro havia postado vídeo no Facebook com uma fala sua, Scruton riu. "Todo mundo é livre para ler e usar minhas coisas. Isso não significa que eu concordo com eles."
Com o 17º livro publicado no Brasil neste mês, Scruton deixou o relativo anonimato para o papel de celebridade editorial no país. "É uma coisa incrível, as conversas que tive aqui foram muito gratificantes.
Ainda tenho muito a processar para ter uma ideia sobre a política e a sociedade daqui", afirma o filósofo.
Ele guarda suas conhecidas opiniões assertivas para outros temas, como a imigração na Europa.
"É um problema que todos podem ver. Nós temos de manter a ordem, e muitos não entendem o que deve ser essa ordem. Nós temos de nos adaptar, e eles também. Eu sou a favor da integração. Não deixá-los crescer à parte. O multiculturalismo está enganado e, ao fim, leva à guetificação".
Tirando o "eles" que pode trair seu conceito de identificação com o outro, a frase é um bem-acabado exemplo do discurso de Scruton.