Montagem sobre imagem de propaganda chinesa Foto:Getty Images
Comecemos por aqui: Zedong, não Tsé-Tung. Escolhemos essa grafia porque é mais oficial, a usada pelos chineses, o método de transliteração pinyin. O tradicional "Tsé-Tung" vem do Wade-Giles, criado no século 19 especificamente para a íngua inglesa - é pelo Wade-Giles que Beijing vira Pequim. Não é uma tradição que, julgamos, valha a pena manter.
Uma pergunta parecida para a China contemporânea: será Mao uma tradição que valha a pena manter? Sua foto ainda adorna a entrada da Cidade Proibida, mas o país por ele fundado, uma difícil de explicar ditadura capitalista regida pelo Partido Comunista, pouco tem a ver com os experimentos radicais de seu fundador, que custaram a vida de milhões. No 42º aniversário da morte do líder, fica a questão: qual face de Mao ficará para a história? A do homem que conseguiu reerguer um império. Ou a do genocida mais prolífico da História, responsável por três vezes mais mortos que Hitler ou Stalin?
Os 70%
Se depender dos chineses, tudo indica que ambas serão preservadas. "Desde 1979, eles parecem ter adotado uma fórmula própria para solucionar esse dilema", diz o americano Jonathan Spence, professor de História da Universidade de Yale e autor de mais de uma dezena de livros sobre a China, entre eles, a biografia Mao. "Ele teria acertado em 70% dos casos e errado em 30%, sendo a maioria dos erros cometidos após 1958." Antes disso, Mao já havia feito um milagre: transformou um país humilhado e em frangalhos em um império capaz de desafiar os Estados Unidos e ameaçar o posto da União Soviética como líder do socialismo internacional.
Em meados do século 19, o velho império chinês havia virado uma colcha de retalhos: era controlado no norte pelos alemães, no centro pelos britânicos e no sudoeste pelos franceses. Nada menos que 50 portos chineses estavam nas mãos de estrangeiros. Além disso, o vizinho Japão logo se tornaria uma ameaça: em 1894, aniquilaria a Marinha chinesa e ocuparia a Ilha de Formosa (ou Taiwan) e algumas regiões no sul da Manchúria.
Foi nessa China subjugada que Mao Zedong nasceu, em 1893, na aldeia camponesa de Shaoshan, ao sul do país. Aos 8 anos, a vida de Mao se resumia à escola primária e ao trabalho na pequena fazenda dos pais. Vivia confortavelmente, em meio à pobreza local. Aos 13, já adulto para os padrões da época, parou de estudar para trabalhar o dia inteiro na fazenda. Casou-se um ano depois, com a filha de um proprietário rural vizinho. Mas sua esposa adoeceu e morreu três anos depois.
Ninguém sabe até que ponto foi a viuvez precoce de Mao que o desviou do seu destino de proprietário rural. O certo é que, contrariando os planos do pai, ele retomou os estudos. Após ir a escolas das cidades vizinhas, onde teve contato pela primeira vez com os problemas da China, Mao partiu para Changsha, capital da província. Lá, se converteu à causa dos revolucionários do líder Sun Yat-sen. Mao, porém, nem teve tempo de colocar a mão na massa: a dinastia Qing, que controlava o país havia mais de 250 anos, foi derrubada por um motim de oficiais em 1911. Pu-Yi, o último imperador chinês, deixou o trono aos 5 anos de idade, em fevereiro de 1912.
Jovem idealista
A república que ocupou o lugar dos imperadores não conseguiu livrar o país do caos. Sem nenhum interesse em ver a China modernizada, Inglaterra, França, Japão e Rússia emprestaram dinheiro ao general Yuan-Shikai, que tomou o poder com a ambição de restabelecer um sistema imperial no país. Após a morte do general, em 1916, as províncias passaram a ser dominadas por senhores de terra despóticos e suas milícias privadas, que preservavam o poder na base da intimidação, tortura e assassinato. Mao presenciou em sua província soldados cortando a língua e arrancando os olhos de camponeses. Segundo seus biógrafos, essas cenas teriam feito com que ele, desde cedo, se convencesse de que seria ingênuo lutar pelo poder sem o uso da violência.
O cenário externo também não ajudava. Quando a Primeira Guerra Mundial chegou ao fim, em 1918, o Japão, que estava do lado dos aliados, tomou para si territórios chineses que eram controlados pela Alemanha. Além disso, adquiriu o direito de se intrometer nas políticas econômica e externa da China. Nessa época, o jovem Mao trabalhava na biblioteca da Universidade de Pequim, onde começou a ter contato com o marxismo e com os membros do nascente Partido Comunista Chinês.
Logo após Mao entrar no partido, os chineses foram orientados pelo Partido Comunista Soviético (que chegara ao poder com a Revolução Russa de 1917) a concentrar esforços junto aos trabalhadores urbanos. Por ter vivido a maior parte de sua vida em uma província rural, Mao não concordava com essa estratégia. Ele desconfiava das alas mais intelectualizadas do partido e preferia, desde o início, trabalhar para fortalecer as organizações rurais. Outra decisão do PC Soviético era de que eles deveriam se unir ao velho Partido Nacionalista de Sun Yat-sen, já que ele era a única organização com chances reais de tomar o poder e reunificar a China.
Inicialmente, o casamento deu certo. Juntas, forças revolucionárias dos dois partidos chegaram a conquistar várias cidades chinesas. Mas quando Chiang Kai-shek se tornou o líder dos nacionalistas, após a morte de Sun Yat-sen, em 1925, o crescente poder dos comunistas passou a ser visto como uma ameaça. Em 1927, Kai-shek detonou uma campanha de extermínio dos antigos aliados, prendendo e executando milhares deles. Em cidades como Xangai, o Partido Comunista praticamente foi varrido. O esmagamento dos operários só reforçou em Mao a convicção de que seu partido precisava dar mais atenção aos assuntos militares - é dessa época sua célebre frase de que "o poder político nasce do fuzil".
Perseguido pelo governo, Mao organizou uma guerrilha de resistência nas montanhas do sudeste do país, onde ajudou a fundar uma base de resistência que ficaria conhecida como Soviete de Jiangxi. A seguir, ele organizou um exército e reprimiu com violência qualquer foco de rebeldia - e se viu cada vez mais indisposto com as orientações de Moscou, que insistia que a base de atividades dos comunistas se concentrasse nas cidades costeiras, não no interior.
Longo caminho
Em 1931, os japoneses ocuparam várias partes da China. Mas o governo de Kai-shek parecia mais preocupado em exterminar os comunistas do que em resistir ao invasor. Isso ficou evidente quando, em 1934, o Exército cercou o Soviete de Jiangxi. Sem opção, o Partido Comunista ordenou que as lideranças deixassem a base. Mao conseguiu fugir com seus seguidores, dando início a uma épica escapada. A Longa Marcha, como ficaria conhecida, durou 12 meses e deslocou milhares de chineses numa jornada de quase 10 mil quilômetros cruzando 18 montanhas, 24 rios e muitos trechos do deserto chinês. Dos cerca de 100 mil que partiram, perto de 8 mil sobreviventes chegaram a Yanan, no norte do país, onde fundaram um governo comunista. Enquanto o Estado oficial tinha o apoio da classe média urbana e de ricos chineses exilados, os revolucionários conquistaram as massas, tornando-se a maior força militar do país.
Sem condições de expulsar os japoneses, o governo resolveu pedir o apoio dos comunistas, que aceitaram a trégua. Com a derrota na Segunda Guerra Mundial, em 1945, o Japão se viu obrigado a deixar a China. Isso pôs fim à aliança entre comunistas e nacionalistas e deu lugar a uma guerra civil. Kai-shek recebeu apoio americano, mas foi derrotado e fugiu com seus seguidores para Formosa. A essa altura, Mao já era uma lenda no país. Afinal, ele havia acertado na tese de que a revolução chinesa teria uma base camponesa e se tornara líder incontestável do partido. Quando os comunistas fundam a República Popular da China, em primeiro de outubro de 1949, ninguém tinha dúvidas de quem seria seu primeiro presidente.
A situação da China era catastrófica quando Mao assumiu o poder. Arrasada após décadas de guerras, a economia estava em pedaços. Não havia moeda unificada, a inflação havia saído do controle e as redes de comunicação estavam destruídas. Dois meses depois de criado o novo governo, Mao parte para Moscou para pedir o equivalente a 300 milhões de dólares em crédito - além de ajuda direta em infra-estrutura. Stálin, o líder soviético, concordou com quase todos os pedidos de Mao - a não ser o desejo de conquistar apoio militar soviético para invadir a ilha de Formosa e expulsar de lá Chiang Kai-shek.
Num prazo muito curto, Mao consegue reerguer a economia. Entre 1949 e 1956, os camponeses elevam sua produção de grãos em mais de 70%. Mas um programa de industrialização megalomaníaco logo provocaria uma das maiores catástrofes humanitárias do século 20. Tudo começou quando, em 1958, Mao decidiu que era hora de transformar a China numa potência industrial capaz de superar países como a Inglaterra e a própria União Soviética - cuja relação com a China havia se deteriorado desde que Nikita Kruschev chegara ao poder (Mao, apesar de independente, se entendia bem com Stálin).
Diante de uma população gigante e disciplinada e da certeza de que ninguém ousaria questioná-lo, Mao lançou o Grande Salto À Frente, obrigando milhões de chineses a abandonarem suas pequenas plantações de subsistência para trabalharem sem folga em fazendas coletivas e indústrias do Estado. Mas a utopia econômica maoista, que incluía projetos para a produção de aço em miniusinas de quintal, teve um final trágico. Como diz o historiador Eric Hobsbawm no livro A Era dos Extremos, o Grande Salto terminou produzindo a "grande fome de 1959-61", provavelmente a maior do século 20. Pesquisadores estimam que 30 milhões de pessoas morreram em consequência do delirante projeto. Mao reconheceu tarde demais os erros do plano - e a China acabou tendo que importar grãos do Canadá.
Linha dura pop
Em 1959, Mao foi substituído por Liu Shaoqi na presidência da China. Mesmo assim, manteve o controle do Partido Comunista - e continuou sendo a pessoa mais poderosa do país. Mas, em meados dos anos 60, o partido começa a sofrer uma divisão interna, com membros questionando a eficácia das políticas de Mao. Sob influência do revisionismo soviético contra a figura de Stálin, o culto à personalidade do líder chinês começa a sofrer críticas. É então que Mao lança um contra-ataque inesperado, que mergulha a China num período de violência. Com mais de 70 anos, ele se alia aos jovens para enfrentar os burocratas e o "revisionismo burguês" que, segundo ele, havia contaminado o partido. Milhões de jovens seguem seu apelo e dão início à chamada Revolução Cultural, cujo principal objetivo seria manter vivo o "espírito revolucionário". Na prática, a Revolução Cultural se tornou uma espécie de inquisição comunista a todos os suspeitos de adotarem "hábitos burgueses", o que levou milhares de pessoas à morte.
A pior matança de todos os tempos
Os números impressionam. Segundo o Centro de Estudos para o Holocausto e Genocídio da Universidade de Clark, nos Estados Unidos, o regime de Mao Zedong causou a morte de 30 milhões de pessoas. Essa é basicamente a estimativa mais modesta: em Mao: A História Desconhecida, a historiadora Jung Chang estimou em 70 milhões o número de vidas perdidas. Isso supera os 66 milhões da Segunda Guerra. Mao, assim, por esses números, o maior assassino em massa de toda a História. Ainda que alguns historiadores considerem polêmico incluir como assassinato em massa as mortes por fome e não intencionais do desastroso Grande Salto À Frente.
Após a tomada do poder pelos comunistas, houve pelo menos três momentos de grande violência. O primeiro foi logo após a vitória da revolução, entre 1950 e 51, para eliminar a oposição. O segundo foi durante a repressão aos anseios de autonomia do Tibet, em 1959. O último (e mais traumático) foi durante a chamada Revolução Cultural, entre 1966 e 1975. Nesse período, Mao conclamou milhares de estudantes, os chamados "guardas vermelhos", a destruir os velhos costumes e hábitos da China. Na prática, qualquer suspeito de viver de modo não comunista (o que incluía usar cortes de cabelo ocidentais ou ler livros "burgueses") estava sujeito a ser perseguido. Milhares de artistas e intelectuais foram forçados ao trabalho manual para serem "reeducados".
A esposa de Mao na época, Chiang Ching, participou da repressão criando um núcleo contra movimentos culturais "revisionistas burgueses". Estima-se que cerca de 700 mil chineses tenham sido perseguidos e 35 mil assassinados durante a Revolução Cultural, sem contar aí os milhares que cometeram suicídio por não suportar a humilhação a que foram submetidos.
Na época, sua aliança com a juventude parecia trazer um sopro de renovação à esquerda mundial, cada vez mais cansada da fisionomia carrancuda do comunismo soviético. A imagem de Mao conquistou espaço nos pôsteres empunhados por estudantes na revolta de maio de 1968, emspan> tornou-se um manual não só para os jovens chineses, como para "revolucionários" de todas as partes do mundo.
No início dos anos 70, de novo com as rédeas do poder nas mãos, Mao abala o equilíbrio de forças da Guerra Fria e realiza uma inesperada aproximação com os Estados Unidos. Em 1960, a China havia cortado relações com Moscou, pois o governo soviético tratava o país como uma ameaça à sua supremacia no mundo comunista - e não como um aliado. Os chineses não podiam aceitar, por exemplo, que Moscou se recusasse a apoiar os projetos nucleares chineses - enquanto emprestava dinheiro para que a Índia, com quem a China havia tido conflitos de fronteira, pudesse desenvolver armas nucleares. Em fevereiro de 1972, Mao Zedong recebe em Pequim Richard Nixon, o primeiro presidente americano a visitar a China.
Foi uma das últimas manobras internacionais de Mao (que ia de encontro aos velhos ataques ao imperialismo americano). Nesse período, ele também deu outro passo decisivo para o futuro da China, ao permitir que Deng Xiaoping, um dos líderes do partido que havia sido expulso durante a Revolução Cultural, pudesse voltar ao poder. Até então, ninguém poderia imaginar que Xiaoping seria o sucessor de Mao.
Em junho de 1976, Mao disse aos dirigentes do partido que sabia de sua morte iminente. Afirmou a seguir que havia feito duas coisas que de fato contavam: expulsara Chiang Kai-shek para a "ilhazinha" de Formosa e havia "pedido aos japoneses que voltassem para a sua terra ancestral", numa alusão à expulsão deles após a Segunda Guerra. No dia 9 de setembro daquele ano, Mao morreu de ataque cardíaco. Seus últimos atos prepararam o terreno para que a China desse o seu verdadeiro grande salto, ao abrir seu mercado para o mundo.
Encontros e desencontros
➽ Parceiro do inimigo: Eles lutaram juntos duas vezes, mas sempre terminaram em lados opostos. A primeira vez em que Mao Zedong esteve ao lado de Chiang Kai-shek foi em 1922, sob orientação dos soviéticos - eles acreditavam que o Partido Nacionalista de Kai-shek era o único capaz de unificar a China. Mas após assumir a liderança da agremiação, em 1927, Kai-shek lançou uma campanha para exterminar os comunistas. Mesmo assim, ele e Mao voltaram a unir forças para expulsar os invasores japoneses da China, em 1937. Após o fim da Segunda Guerra e a derrota japonesa em 1945, foi a vez de Mao tomar o poder e obrigar Kai-shek a fugir para Formosa, em 1949.
➽ Saudades de Stálin: O ditador soviético Josef Stálin respeitava a tenacidade de Mao, mas desconfiava de sua independência política. Em 1945, a União Soviética havia fechado acordos com o inimigo de Mao, Chiang Kai-shek, mas terminou apoiando a investida final dos comunistas para tomar o poder. Em 16 de dezembro de 1949, o vitorioso Mao foi a Moscou pedir ajuda financeira e conselhos a Stálin. O soviético recomendou que a China construísse um oleoduto e acelerasse a extração de seus minerais raros. Além disso, falaram sobre política internacional. Mao visitaria Stálin mais uma vez, em janeiro de 1950. Após a morte do ditador, entretanto, sua relação com os soviéticos nunca mais foi tão boa.
➽ A descoberta da América: Desde o racha entre a União Soviética e a China, no início dos anos 60, os Estados Unidos levaram uma década para perceber que podiam tirar vantagem do desentendimento entre as duas potências comunistas. Foi o então conselheiro de defesa americano, Henry Kissinger, quem sugeriu que os americanos iniciassem, em plena Guerra Fria, um diálogo com os chineses. Isso aumentou o prestígio da China, que havia acabado de tomar o assento de Taiwan na Organização das Nações Unidas. Quando o ex-presidente Richard Nixon foi a Pequim, em 18 de fevereiro de 1972, o líder chinês, aos 78 anos, já estava com a saúde deteriorada - Mao precisou de ajuda para se levantar da poltrona.
➽ Ideologia não, tecnologia: "Conversa mole não vai levar nosso programa de modernização a parte alguma; precisamos ter conhecimento e pessoal treinado." Foi com esse discurso, em 1977, que Deng Xiaoping iniciou reformas que fizeram a China crescer de modo inédito. Ele criticava o atraso na tecnologia e na educação, em parte causado pelas perseguições feitas na Revolução Cultural. Em 1967, o próprio Xiaoping havia sido acusado de "revisionista" e teve que abandonar seu posto no partido. Após escrever uma autocrítica, ele foi chamado de volta em 1973. Sucessor de Mao, criou zonas especiais de livre mercado e exigiu que os dirigentes chineses tivessem boa formação intelectual.
Saiba mais
Mao, Jonathan Spence, 2000
Era dos Extremos, Eric Hobsbawm, 1995
Era dos Extremos, Eric Hobsbawm, 1995
Rodrigo Cavalcante