Na virada do milênio, a iniciativa de um coronel da reserva do Exército colocou Goiás no mapa da produção de bebidas. José Antonio Pires Gonçalves abandonou a criação de gado numa fazenda em Planaltina de Goiás, cidade a 50 quilômetros de Brasília. O gaúcho resolveu aventurar-se na fabricação de cachaça, que logo foi reconhecida como uma das melhores do país. Em seguida, para agradar à mulher, decidiu criar um rum. O Barão do Cerrado foi considerado o segundo melhor do mundo num importante concurso internacional. Depois disso, o militar cismou que seria capaz de fazer vinho de alta qualidade em pleno Planalto Central brasileiro, valendo-se do clima seco, quente de dia e frio à noite, propício para a produção da bebida.
Mandou trazer mudas de uvas da França. Fez testes com pinot noir, cabernet sauvignon, syrah e sauvignon blanc e começou o vinhedo. Plantou 5 mil parreiras. Pires Gonçalves espalhava que fizera em sua fazenda uma imitação do solo da Borgonha com brita, bagaço de cana, esterco de gado e entulho. O resto, dizia, ficava nas mãos de Deus. Não queria uma produção comum. Contratou o enólogo Marcos Vian, considerado um dos melhores do país, e propôs um desafio. Desejava cultivar as uvas da forma mais natural possível: sem enxertos nas plantas — prática comum para deixar a videira resistente — e sem defensivos agrícolas. Pretendia controlar pragas de maneira natural, apenas com infusão de ervas.
Uma tragédia pessoal fez com que o militar abandonasse seus planos vinícolas. A morte precoce de uma filha levou-o a voltar com a família para o Rio de Janeiro. As poucas garrafas produzidas na primeira safra não chegaram ao mercado. “Ninguém sabe que gosto tinha esse vinho. Só posso dizer que o rum dele era um espetáculo”, contou Vian, que não provou uma gota sequer do vinho do coronel.
Algumas pessoas até chegaram perto de degustar o vinho, mas ficaram na promessa. Foi o caso do diretor da Associação Brasileira de Sommeliers do Distrito Federal (ABS-DF), Sérgio Pires. Ele foi convidado pelo próprio Pires Gonçalves para experimentar a bebida num encontro no apartamento de cobertura do coronel na capital federal. Mas o militar de quase 80 anos o esperou com uma arma sobre a mesa.
Atônito, o sommelier falou rapidamente sobre os fatores importantes num vinho de altíssima qualidade. Foi o suficiente para o militar mudar de ideia e se recusar a oferecer um cálice.“Ele disse que sommelier era muito chato e que não queria mais que eu provasse. Com uma arma na mão, eu que não iria insistir”, lembrou Sérgio Pires, em meio a risadas. “Ninguém nunca vai saber se era bom mesmo o primeiro vinho goiano.”
Pires Gonçalves faleceu tempos depois, e seu vinho virou uma lenda em Brasília.
Passados 20 anos, a qualidade da bebida do Cerrado finalmente começa a ser conhecida, graças à paixão do médico goiano Marcelo de Souza. Em 1997, ao voltar para Goiânia de uma especialização em otorrinolaringologia em São Paulo, Souza resolveu usar a bagagem enófila adquirida na capital paulista para difundir o consumo de vinho entre os conterrâneos. Trocou também os livros de medicina pelos títulos de gastronomia e de agronomia. Após muita pesquisa, chegou à conclusão de que o clima seco e a amplitude térmica da serra de Goiás eram perfeitos para produzir uvas que amadurecem até o ponto ideal para a produção de vinhos premiados.
Para provar que estava certo, Souza investiu na compra de um terreno em um vale próximo à cidade de Cocalzinho, distante 50 quilômetros de Brasília, para fazer um vinhedo. A terra é uma das paixões do médico goiano e também uma draga de suas economias. Além do que gastou para comprá-la, parte de sua poupança foi usada na construção de uma represa para armazenar água da chuva e manter a irrigação constante dos pés de uva. Souza procurou enxertos resistentes às pragas para encaixar as parreiras mais sensíveis de uvas syrah e barbera.
Começou a plantar em 2008. Passou a realizar poda dupla, para mudar o ciclo natural da planta e fazer com que ela amadureça no inverno. Assim, as videiras produzem duas vezes por ano e a eficiência do negócio aumenta. A tecnologia é um trunfo, aliado ao clima do Cerrado. Sem chuva, a uva pode ficar no pé por mais tempo. O amadurecimento perfeito dá mais explosão aos sabores e cheiros de um vinho “ultrapremium”. “Fui tachado de louco, mas Goiás tem condições de sobra para produzir vinhos melhores que Chile, França e Argentina”, disse o médico, sem medo de polêmicas. Maluquice mesmo, para Souza, é produzir vinho no Rio Grande do Sul. Ele argumentou que lá chove demais e que não há condições para a uva amadurecer até o ponto ideal.
Ele não esperava, mas o reconhecimento foi instantâneo. Logo na primeira safra, o rótulo Bandeiras, da uva italiana barbera, ganhou medalha de ouro na Grande Prova do Anuário vinhos do Brasil de 2013, feito pelo Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) e pela revista Baco. O prêmio é considerado por especialistas um dos maiores do país. O vinho goiano foi escolhido pelos jurados o melhor da categoria Outras Castas Tintas. Souza gosta de frisar que esse Bandeiras venceu rótulos tradicionais, como os da conceituada vinícola argentina Catena, em desafios às cegas.
Sofisticar a produção passou a ser uma meta. Souza recorreu ao mesmo enólogo que orientou o coronel Pires Gonçalves no passado. Vian ganhou a missão de finalizar os vinhos, que ainda eram considerados rústicos e precisavam de um acabamento mais elegante para encantar paladares mais exigentes. “As amostras me impressionaram. O que me chamou a atenção no material que chegou é que ele só poderia ter vindo de uvas bem maduras e sofisticadas”, relatou o especialista.
Segundo Vian, os vinhos goianos se parecem mais com rótulos do Chile e da Argentina do que os produzidos no Sul do Brasil. Têm caráter forte e mostram o terroir — no jargão do mundo do vinho, isso significa que revelam a terra onde a uva foi plantada e as condições ambientais. O clima seco ajuda as uvas a ficar mais doces e o teor alcoólico no ponto, sem necessidade de outros recursos para atingir a graduação desejada. O enólogo concorda que Goiás tem um grande potencial para a produção de vinho, mas se esquiva de entrar na polêmica sobre se poderia produzir vinhos de tão alta qualidade como os mais tradicionais franceses. “Nosso filho é sempre mais bonito que os outros, mas é difícil comparar qual região é melhor ou pior”, salientou o enólogo. “Goiás tem vinhos de qualidade e de muita personalidade. E com um alto nível de dificuldade, que não dá para fazer em qualquer lugar.”
Hoje, o vale de Marcelo de Souza está cheio de cultivos. O cenário chega a lembrar a paisagem de um vinhedo europeu, com a diferença de que o lugar é rodeado pelas árvores contorcidas que crescem em meio à baixa umidade do Cerrado. A uva cultivada lá vai para uma pequena instalação na cidade de Cocalzinho. Nessa vinícola, são feitos sete rótulos. O mais barato custa R$ 85. Cada garrafa do Bandeiras sai por R$ 180. O Intrépido, um vinho ainda mais caro, vale R$ 200. Os dois são envelhecidos em barris de carvalho francês e americano e considerados “ultrapremium”, a segunda melhor classificação do mercado. Um ainda melhor já foi feito na Vinícola Pireneus. Enquanto trabalhava para aprimorar a produção de um rótulo feito com uva tempranillo, Souza aperfeiçoou a bebida a tal ponto que cada garrafa foi vendida a R$ 500. O lote não foi suficiente para atender a quem queria.“Vendeu igual a pão quente na chapa”, afirmou, orgulhoso, o médico goiano.
Souza pretende lançar mais produtos, mas uma disputa judicial com a ex-mulher em torno do vinhedo tem atrasado seus planos. Ele sabe que a produção ainda está em fase artesanal e negocia com investidores para ampliar o negócio. Entre visitas às videiras e os atendimentos no consultório médico, avalia propostas. Souza recusou oportunidades para exportar seu vinho para a Inglaterra. Como faz no máximo 2 mil garrafas de cada rótulo por ano, preferiu concentrar-se no mercado local. Disse que está preocupado em fazer a região prosperar e em estimular outros produtores. A estratégia tem surtido efeito.
A 287 quilômetros de Cocalzinho, outro vinho goiano é produzido. Localizada no município de Paraúna, mais ao sul de Goiás, a vinícola Serra das Galés lançou recentemente o rótulo Muralha, com uvas syrah e touriga nacional, trazidas da França e de Portugal. A fabricação começou recentemente.
Em Girassóis, município vizinho de Cocalzinho, um novo vinhedo dará a primeira safra neste ano. É a estreia do empresário Sérgio Resende no ramo. Resende trocou a noitada pela lavoura. Nos anos 1980 e 1990, ele foi dono do Gate’s Pub, uma famosa casa noturna de Brasília. Em vez do som de bandas de rock, passou a escutar o gotejar da água nas raízes enxertadas das videiras.
Em sua fazenda, Resende copiou um sistema de irrigação usado em Israel, onde a secura também impera e é driblada pela tecnologia. Superados os habituais incêndios em épocas de baixíssima umidade no ar e as pragas, ele espera colher 5 toneladas de uvas syrah e pinot noir na propriedade da família, onde brincava na infância. Resende acredita que o Cerrado seja capaz de dar a elegância e a acidez esperadas de um bom vinho de inverno.
Pretende vender parte da produção no Natal. A outra parte envelhecerá em barris novos já encomendados.
O empresário acumula expertise na produção de vinhos. Terceiriza a fabricação do espumante Dom para uma vinícola em Garibaldi, no Rio Grande do Sul. O rótulo ganhou medalha de bronze no Brinda Brasil, um dos maiores concursos do país, na categoria brut feito pelo método charmat. No ano que vem, Resende fará os primeiros testes para produzir o Dom em solo goiano. Pretende vender o espumante no mercado depois que três rótulos de sua propriedade estiverem consolidados. Um deles foi batizado com o nome Altitude 1.080, numa referência à posição de sua propriedade rural em relação ao nível do mar.
Os dados de consumo de vinho em Brasília encorajam o empresário, que foi dono de distribuidora de bebidas. O mercado da capital federal é farto. Brasília é um dos maiores centros consumidores de vinho do país. Está em primeiro lugar em compra de espumante, uma das bebidas que mais regam as festas da cidade com o maior número de piscinas por habitante do planeta. “Isso não é maluquice. O maluco um foi o coronel. O maluco número dois foi o Marcelo”, disse Resende, em tom de brincadeira. “Agora que a gente sabe que deu certo, é mais bem fácil e sucesso garantido.”
O vinho goiano, segundo os especialistas, ainda pode evoluir muito. Os pioneiros costumam abrir caminho para a ampliação e a sofisticação da produção. Na visão do sommelier Sérgio Pires, o maior desafio do vinho goiano, porém, não é chegar a um equilíbrio perfeito de sabores, cheiros e consistência, mas superar preconceitos. Ele reclamou da dificuldade que é levar vinho nacional para degustação nos grupos de que faz parte. Pires chegou a ser acusado de defender a produção brasileira, o que seria uma atitude muito natural para um sommelier francês ou português. “Quando digo que quero levar um vinho produzido em Cocalzinho, as pessoas torcem o nariz. Esse vinho só é valorizado em degustações às cegas”, contou em tom de lamentação.
Gabriela Valente, O Globo