A recente decisão do PT de interditar a candidatura de Marília Arraes ao governo de Pernambuco expõe transformações históricas do petismo que, refém de Lula, há muito não consegue se renovar. A canetada da cúpula nacional petista, que implodiu os planos da neta de Miguel Arraes, teve o claro objetivo de isolar Ciro Gomes (PDT) e garantir o poder de mando na esquerda ao líder máximo do PT, mas também lançou luz sobre as mudanças que, pouco a pouco, foram moldando uma nova face do PT.
Cada vez mais refém do lulismo, o partido perdeu militantes históricos, tornou-se uma legenda inchada por novos filiados, atraídos pelas benesses da máquina pública, e passou a delegar as decisões partidárias a Lula e seu séquito. Mas nem sempre foi assim.
Nos anos 80, quando o PT tinha um discurso mais radical, as bases do petismo influenciavam em parte do processo decisório. Era a tentativa de fuga do chamado centralismo democrático — ideia de Lênin que consistia na imposição da vontade do partido. Depois de longos debates, o petismo decidia suas questões e os vencidos uniam-se à posição da maioria. As derrotas geravam reclamações, mas os petistas tinham direito a voz e participavam das decisões relevantes.
A inflexão na estrutura partidária veio a partir de 2001, com a aprovação do estatuto do PT.
Ao mesmo tempo em que se preparava para subir a rampa do Palácio do Planalto, o PT instituía o chamado "Processo de Eleições Diretas" na escolha de seus dirigentes nos diretórios municipais, estaduais e nacional. Os escolhidos teriam o poder de decidir sozinhos, na maioria das vezes sem consulta franca às bases. A partir daí, os tais "encontros de base" foram esvaziados e passaram a ser irrelevantes para a representatividade e para as escolhas da legenda.
Dissidente do petismo, o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) lembra que a concentração de poder e a verticalização já podiam ser percebidas em 1996. À época, sua candidatura à Prefeitura do Rio foi aprovada regionalmente, mas quase foi retirada pela cúpula.
— Lembro que o (Candido) Vaccarezza e o (José) Dirceu vieram me procurar e queriam impor o nosso apoio ao Miro Teixeira (à época, do PDT). Mas resistimos e tivemos até mais votos que ele. Depois disso, esse processo ficou mais claro na intervenção de 1998, quando a candidatura de Vladimir Palmeira ao governo do Rio foi retirada e houve a indicação para vice do (Anthony) Garotinho.
O pragmatismo adquirido com a experiência do poder agravou a situação. Em 2004, Delúbio Soares, ex-tesoureiro do partido, sintetizou a transformação partidária, quando foi pressionado por correligionários a divulgar os gastos de campanha. "Transparência demais é burrice", disse o petista, entrando para o anedotário político.
O cientista político Pedro Floriano Ribeiro, da Universidade Federal de São Carlos, analisou as mudanças ao longo dos anos. Ao "quebrar a espinha representativa que passava pelos encontros de base", o partido comprometeu "o accountability interno". Não só isso. Houve o início da "formação de 'currais' de filiados por líderes e facções locais". Práticas como "filiação em massa, transporte de filiados, quitação coletiva das contribuições, ou a participação de indivíduos que nem sabem que são filiados" passaram a ser alvo de escrutínio interno.
A era petista no poder abriu as portas do partido para o mensalão e a Lava-Jato. A mão de ferro de Lula já não é alvo de discussão:
— Quando percebi que o povo desconfiava que só tinha valor no PT quem era deputado, sabe o que eu fiz? Deixei de ser deputado. Porque eu queria provar ao PT que ia continuar sendo a figura mais importante do PT sem ter mandato. Porque se alguém quiser ganhar de mim no PT só tem um jeito: é trabalhar mais do que eu — disse Lula, poucas horas antes de ser levado para a carceragem da Polícia Federal em Curitiba, de onde o futuro do PT vem sendo definido desde então.
Bruno Góes, O Globo