A ministra Cármen Lúcia está pesando 41 quilos — 2 a menos do que considera o normal. Acontece sempre: todas as vezes em que algo a preocupa, a fome desaparece e ela mal consegue ingerir líquidos. É como se a garganta travasse, explica a magistrada. Às vésperas do término de seu mandato como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra está preocupada com os sinais que vêm sendo emitidos por parte de determinados setores da sociedade. Nas últimas semanas, por exemplo, três presidenciáveis — Jair Bolsonaro (PSL), Fernando Haddad (PT) e Ciro Gomes (PDT) — lançaram, cada um a seu modo, propostas cuja essência é moldar a corte aos interesses do eventual presidente da República. Em entrevista a VEJA, Cármen Lúcia lembra que sempre que o regime democrático esteve sob ataque o Supremo Tribunal Federal foi o primeiro alvo. A seguir, sua entrevista.
Nesta pré-campanha, candidatos passaram a discutir mudanças no STF, como aumentar o número de ministros para nomear juízes “isentos”, delimitar mandatos e colocar o tribunal “de volta na sua caixinha”. O que a senhora acha dessas ideias? Todos os movimentos de ruptura institucional no mundo começaram com atentados contra o Judiciário, e quando o Judiciário está atuando a contento. No caso brasileiro, Getúlio Vargas propôs, em 1931, uma alteração no número de ministros. Em 1937, com o Estado Novo, tínhamos uma ditadura e ministros foram afastados. No regime militar, o Ato Institucional nº 2 aumentou o número de ministros para alterar o equilíbrio do tribunal. O AI-5 cassou três magistrados. Espero que essas propostas apresentadas agora sejam apenas retórica dos candidatos.
Implementadas, essas medidas significariam o quê? O comprometimento da própria democracia. O Supremo existirá enquanto durar a democracia brasileira. Precisamos estar atentos. Há pessoas que não viveram a ausência de democracia e, por essa razão, não sabem o que isso significa.
A senhora se refere a alguém ou a algum grupo em especial? É impossível um ser humano não ter vocação para a liberdade. A democracia é o único regime que garante a liberdade. Minha geração sofreu por não poder falar, não poder pensar, não poder atuar. Só fala em intervenção militar, por exemplo, quem não experimentou a falta de democracia. Só quem não passou por isso, de tudo escondido, da sombra, é que não sabe o valor da luz.
Esse desapreço pela democracia não reflete uma decepção com o funcionamento das instituições? Estamos vivendo um momento de muita desesperança, quase desalento, e, nesse contexto, é natural que as pessoas tenham urgência em superar isso tudo. O sujeito diz “estou afogado em problemas e preciso que alguém me tire disso”. Não. É nadando mesmo, meu filho. Você vai ter de lutar para chegar à praia. O país não é um construído, é uma construção. Se estiver em risco uma determinada pilastra, vamos segurar o resto e construir o que está faltando, seguindo as regras do Estado de direito como deve ser e tem sido feito.
Mas, se tudo está sendo feito como se deve, por que o STF é alvo de tantas críticas? O que faz o Poder Judiciário objeto de crítica não é o que ele tem de pior, e sim o que ele tem feito de melhor. A justa punição aos corruptos, por exemplo. Todos são iguais perante a lei. Estamos honrando a Constituição. É compreensível que pessoas poderosas que nunca antes tinham sido submetidas a julgamento comecem a atacar quem está garantindo que isso aconteça.
Quem são as “pessoas poderosas”? A partir de 2012, a sociedade brasileira assistiu a uma mudança. Ninguém questionava nosso comportamento até o julgamento da Ação Penal 470 (refere-se ao processo do mensalão). Quem estava no poder se sentia intocável, inatacável. Era essa a tradição. Nós passamos a ser questionados quando tocamos nos poderosos. Viram que algo tinha mudado, que a Constituição estava sendo cumprida — e tudo às claras, sem sombra, transmitido pela televisão. Essa exposição, aliás, de alguma forma ajuda a alimentar críticas ao Supremo.
Por quê? O cidadão vê aquelas discussões acaloradas e pensa que são brigas, o que definitivamente não é verdade. Pode-se ter um arroubo aqui, outro ali. Divergências sempre existiram. Além disso, sempre se espera que decisões agradem a todos. Em um país em crise e em uma sociedade tão rachada, a impressão que tenho é que o cidadão gostaria que o Supremo ficasse acima de tudo isso e desse uma resposta que fosse conveniente para todo mundo. Isso não existe em nenhum lugar.
Alguns ministros do STF já foram hostilizados e só podem sair à rua acompanhados de seguranças. A senhora leva uma vida normal? A única situação agressiva contra mim foi aquela pichação na minha casa em Belo Horizonte. Hoje é muito comum as pessoas dizerem: “Eu rezo pela senhora porque o Brasil está tão difícil. A senhora é tão pequenininha, tão magrinha”. Quando morreu o ministro Teori (refere-se a Teori Zavascki, morto em um acidente aéreo em 2017), eu era abordada com perguntas do tipo “como é que vai ser agora?”, porque o ministro era o relator da maioria dos casos da Lava-Jato. Respondendo à sua pergunta, moro sozinha, saio pouco, mas tenho uma vida normal. Vou ao supermercado, faço minhas compras, empurro meu carrinho e converso muito com as pessoas.
As pessoas se assustam quando sabem que a senhora pesa apenas 43 quilos. Agora estou com 41 quilos. Mas em janeiro do ano passado cheguei a 39.
Algum problema? Minha garganta fecha em situações de pressão. Nunca fui boa de comida. Tenho um paladar infantil. Gosto de empadinha, coxinha, brigadeiro. Chego em casa e faço uma panela de brigadeiro. Também sou chocólatra. Mas, quando estou diante de uma situação de tensão, perco o apetite. Em janeiro do ano passado houve a morte do ministro Teori. Vinte dias depois, morreu meu pai. Cheguei aos 39 quilos.
Como explicar para o cidadão o domingo em que quatro juízes deram decisões sobre soltar e manter o ex-presidente Lula preso? É muito difícil. O bate-cabeça, por si só, pode acontecer, mas o sistema tem mecanismos para não deixar que o problema se perpetue. Ficamos o dia inteiro vendo uma coisa que não precisava ter acontecido. Em um momento de tanta intolerância, de tanta divisão na sociedade e de tanto desassossego econômico e político, temos de trabalhar, como juízes, com muita responsabilidade, com muita prudência e paciência para que a gente chegue ao senso de justiça.
Quem errou nessa história? Isso será avaliado pelo Conselho Nacional de Justiça. Como vou participar do julgamento, não posso me pronunciar.
Por que a senhora se recusou a pautar a ação que questiona a prisão logo após a condenação em segunda instância? O plenário do Supremo decidiu em duas medidas cautelares que é possível trilhar o caminho de execução da pena em segunda instância. Pela segurança jurídica e até por uma questão de lógica, seria normal que todos os ministros aplicassem o que o plenário decidiu. Há uma dissidência, mas esse tema tende a se consolidar no sentido predominante da jurisprudência, que é a possibilidade de início de execução da sentença após a condenação em segunda instância. Essa matéria foi deliberada faz pouco tempo e não vi razões suficientes para recolocá-la em pauta.
Ministros do STF são indicados pelo presidente da República. Existe alguma relação entre quem indicou e o indicado? Não se faz justiça impessoal, imparcial e segura com sentimentos nem bons nem ruins, nem o da gratidão. Fui indicada pelo presidente Lula e devo dizer que, na indicação, ele me disse expressamente que eu jamais receberia um pedido dele. De fato, nunca me foi pedido nada por ele. Nunca. Não posso ser leal senão à Constituição, e a minha lealdade à Constituição se manterá enquanto eu for juíza. No dia em que eu achar que for incapaz disso, não terei mais condições de ser juíza.
O ex-presidente Lula, que foi condenado em segunda instância e está preso, poderá disputar as próximas eleições? A competência para julgar essa questão é da Justiça Eleitoral. Normalmente se finaliza lá. No caso da Lei da Ficha Limpa, neste ano reafirmamos a jurisprudência de que a lei é aplicável. Os chamados fichas-sujas estão inelegíveis. A Justiça Eleitoral é modelo no mundo, e será célere porque o eleitor tem de saber o que vai acontecer em 7 de outubro.
A senhora já tem candidato à Presidência? Nem sei quem são todos os candidatos ainda.
Nesses dois anos em que preside o STF, a senhora tomou alguma decisão que faria diferente hoje? Eu teria tentado explicitar melhor as decisões e a maneira de ser do Supremo. O Supremo se tornou muito reconhecido. As pessoas reconhecem que ele existe, mas não conhecem a sua dinâmica. O tempo do direito não é o tempo da política. Às vezes tenho prazos fatais, mas preciso explicar ao cidadão que tenho de ouvir a outra parte. E a pessoa que está esperando não entende. Isso é uma garantia para o cidadão, para a impessoalidade do juiz e para a imparcialidade da Justiça. Por isso, é preciso que nós cada vez mais comuniquemos à sociedade que fazemos direito, não fazemos milagre.
Como gostaria que sua gestão fosse lembrada? Gostaria que ela fosse lembrada como tendo sido responsável com o Brasil e com o Supremo. Eu me entreguei 100% tentando fazer o melhor, com absoluta transparência e com absoluta impessoalidade. Não tratei ninguém de modo diferente, nem nos processos nem pessoalmente. Como já disse, tive momentos duros, como a perda do ministro Teori. Vinte dias depois, morreu meu pai, com quem eu tinha uma ligação estreita. Enterrei o papai na sexta e no domingo vim trabalhar porque não podia deixar de vir. Honrei o compromisso com o Brasil da melhor maneira que pude, como continuarei a fazer como juíza e como cidadã onde estiver.
Laryssa Borges, Veja