quarta-feira, 28 de setembro de 2016

De perdedor a lenda-viva, Peres personificou os dilemas de Israel

Marcelo Ninio - Folha de São Paulo


Não há israelense, vivo ou morto, cuja biografia se confunde mais com a do Estado de Israel do que Shimon Peres. Foi membro de 12 gabinetes, duas vezes primeiro-ministro, um dos pais do programa nuclear israelense e do processo de paz com os palestinos, mas só aproximou-se do consenso em seu país quando deixou a política ativa para tornar-se peça viva da história.

Nascido na Polônia em 1923, imigrou aos nove anos com os pais na onda sionista, aos 20 já era próximo do líder da independência de Israel, David Ben Gurion, e antes dos 30 tornou-se diretor do Ministério da Defesa.

Último sobrevivente da geração de fundadores do Estado de Israel, foi testemunha ocular e símbolo dos dilemas, sucessos e fracassos de um país que, desde o estabelecimento em 1948, jamais deixou de estar em estado de guerra.


Sua biografia personifica a trajetória do movimento sionista que criou Israel, da luta pela fundação do Estado, passando pela construção de uma potência militar, até a busca por uma solução para o conflito com os árabes.

Exigiu uma mudança de rumo para Peres, que chegou a apoiar a construção dos primeiros assentamentos nos territórios palestinos ocupados na Guerra dos Seis Dias, em 1967, para depois tentar um acordo para acabar com a ocupação.

Para as novas gerações de israelenses, Peres tem a imagem de um vovô sábio e apaziguador, sempre pronto a dizer frases de efeito, mas sua carreira política foi marcada por disputas renhidas, não apenas com os partidos opositores, mas também dentro de seu Partido Trabalhista.

Sua reputação era a de um político carismático, mas manipulador. A rivalidade com o companheiro de legenda Yitzhak Rabin foi uma das mais intensas da política israelense, até virar parceria quando os dois fecharam o primeiro acordo de paz com os palestinos, em 1993.

O acordo rendeu o Nobel da Paz a Rabin, Peres e ao líder palestino Yasser Arafat, porém mais de 20 anos se passaram e a visão de dois Estados para dois povos que moveu as negociações está longe de se tornar realidade.

Com o mundo mais preocupado com a guerra na Síria e a facção terrorista Estado Islâmico, não há pressão externa por uma solução. Assim, os palestinos não têm força para retomar a negociação e os israelenses se conformaram com o status quo.

Peres foi personagem de um dos momentos-chave da derrocada do processo de paz, quando assumiu o governo após o assassinato de Rabin, em 1995, por um fanático judeu.

Chocado com o atentado, o país se moveu à esquerda na direção aos trabalhistas e do processo de paz, mas Peres não quis realizar uma eleição imediatamente e aproveitar a onda de apoio.

Marcou a votação para seis meses depois, e nesse meio tempo o cenário político mudou, com uma série de atentados terroristas palestinos. Peres perdeu uma eleição que parecia garantida para o direitista Binyamin Netanyahu.

Sem a dupla Rabin-Peres no poder, o processo de paz jamais voltaria aos trilhos. 

Peres saiu daquela derrota para Netanyahu com o estigma de jamais ter vencido uma eleição. Admirado no exterior, virou celebridade —suas festas de aniversário tinham de Nelson Mandela a Bono.

No país que ajudou a criar, porém, carregava uma aura de perdedor e de propagar o sonho impossível do "novo Oriente Médio", título do livro que ele lançou no auge da euforia com o processo de paz.

A tardia reabilitação pública ocorreu quando foi aprovado pelo Parlamento para ser o presidente de Israel. Aos 84 anos, longe do fogo cruzado da política partidária e ocupando um cargo cerimonial, finalmente passou a ser ouvido em casa e a ser reconhecido como uma das grandes personalidades da história do país.

Virou lenda-viva, e continuou usando o status depois de deixar a Presidência para promover seu legado como defensor da paz com os palestinos.

Em entrevista à revista "Time" no início do ano, mantinha-se o mesmo otimista incorrigível sobre a paz com os vizinhos. "As pessoas dizem que é impossível, mas isso é nonsense", disse.

Marcelo Ninio foi correspondente da Folha em Jerusalém entre 2009 e 2013