terça-feira, 23 de agosto de 2016

Gilmar Mendes: proibição a doação empresarial pode ser revista

Laryssa Borges - Veja


Presidente do TSE afirma que Justiça Eleitoral vai fiscalizar doações ilegais e diz que despesas de candidatos não podem ser “faz de conta”


O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Gilmar Mendes
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Gilmar Mendes (José Cruz/Agência Brasil)

Crítico contumaz da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que pôs fim ao financiamento privado de campanhas políticas, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes, que conduz este ano a eleição com o maior número de candidatos da história – até 580.000 políticos concorrerão pela preferência do eleitorado –, acredita que a disputa de outubro servirá como teste para que se avalie se é mesmo necessário barrar as doações feitas por empresas a candidatos. 
Em meio a investigações que colocam PT, PMDB e PP, os três principais partidos do petrolão, sob risco de serem extintos, Gilmar Mendes alerta para novas formas de recolher doações de forma ilegal, diz que prestações de contas de candidatos não podem ser um “faz de conta” e afirma que banir empresas do processo político não deve ser encarado como a “refundação da República”. 
A seguir os principais trechos da entrevista concedida a VEJA.
A Lava Jato escancarou a lavagem de dinheiro por meio da Justiça Eleitoral. Como lidar com isso nessas eleições? Estamos tentando aprimorar todo o sistema de controle. O grande esforço da Justiça Eleitoral é impedir que a prestação de contas seja um faz de conta. Queremos realmente que isso se faça de maneira efetiva. O modelo inicial foi o que fizemos na análise das contas da presidente Dilma Rousseff, não só no que dizia respeito ao financiamento, às doações – e neste caso contamos com importantes subsídios que vieram de Curitiba, que levaram a investigações sequenciais – mas também no que dizia respeito às empresas de fachada, empresas que talvez não prestaram serviços. Agora consolidamos essa cooperação com órgãos que nos ajudaram à época, como Tribunal de Contas da União, Banco Central, Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público.
Com o fim do financiamento empresarial nas campanhas, o senhor prevê uma nova forma de lavar doações ilegais? A fiscalização vai ser aprimorada porque a prestação de contas vai ocorrer a cada 72 horas com um modelo online. Antes tínhamos outro prazo em que o candidato vencedor tinha que ter suas contas aprovadas ou rejeitadas até a diplomação. Isso dificultava enormemente a análise porque ficávamos aqui em mutirão. Agora está mudando e também vai ser possível esse batimento de informações. Acredito que estamos conseguindo aprimorar o sistema, mas é um grande desafio porque mudamos o modelo de financiamento de campanhas. Saímos do modelo de pessoa jurídica para pessoa física. O debate que se trava é sobre a possibilidade de caixa dois ou de o caixa dois subsidiar as doações dessas pessoas físicas. Tudo isso terá de ser fiscalizado. Nós dispomos de condições de fazer a análise inclusive para identificar, por exemplo, se um doador não tem condições de doar porque tem uma renda baixa.
Com o fim das doações de empresas, criou-se um discurso de que acabar com o financiamento privado seria uma espécie de refundação da República. Infelizmente não é a refundação da República. Para problemas complexos existem soluções simples e em geral erradas. Isso pode ser tipificado, por exemplo, em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal. Antes de decidir sobre modelo de financiamento, nós deveríamos poder decidir – mas isso não estava a nosso alcance – sobre o sistema eleitoral, saber qual vai ser o modelo, por exemplo. Se existe uma votação em lista em que o partido define, é fácil ter um modelo de financiamento que até pode ser público, que repassa um dado número de recursos para o partido. Mas se temos um sistema de lista aberta com toda essa confusão e coligações, é difícil ter financiamento público. É difícil também ter controle de gastos. Além do que o financiamento público, como estamos dizendo, é o público quem paga. Então tem que se perguntar se ele quer isso. É muito difícil discutir essa questão do fim do financiamento privado de forma isolada. E nós no STF acabamos fazendo isso.
Isso significa que a questão do fim do financiamento privado pode ser revista depois de o novo modelo ser testado nessas eleições? Não só em relação ao modelo de financiamento, mas também em relação ao modelo de doação privada e outros pontos que estão sendo experimentados, como o encurtamento do prazo eleitoral. Estamos vivendo um momento de experimento institucional. Depois das eleições, vamos ter que discutir e fazer um balanço, inclusive sobre o fim do financiamento privado. Acho que o grande ganho que teríamos é se lográssemos, depois das eleições, introduzir pelo menos alguma mensagem positiva de reforma política, talvez discutir superar a autorização de coligação nas eleições proporcionais, introduzir alguma coisa relativa à cláusula de barreira, rever, por exemplo, a decisão do STF que anulou essa cláusula de desempenho. E discutir, talvez, o sistema eleitoral, que nunca será perfeito e terá de passar por uma negociação política. O sistema de lista aberta já dá sinal de exaustão e estamos contribuindo para suas distorções, com a permissão de coligações. Forma-se aquela sopa de letras, com ideologias diversas e no dia seguinte às eleições os partidos já estão em posições contrapostas, mas se elegeram no mesmo bloco. Eles falseiam o voto do eleitor, que fica muito confuso nesse quadro todo. O eleitor acaba contribuindo para a eleição de alguém que ele não concorda e se cria um distanciamento entre o eleitor e o eleito.
O Congresso não tem interesses diretos demais para fazer uma reforma política? Não imagino que se consiga fazer uma ampla reforma política via Congresso. O balanço que se faz, que já é trágico, da situação política do país e os maus resultados que nós colhemos no que diz respeito a essas práticas, tudo isso deveria estimular um debate sobre a reforma política. Já não há mais o que descer nas escalas das degradações. Tudo que se vê, o uso do eleitoral como locus de lavagem, doação como propina, caixa dois. O ministro Toffoli dizia que com a quantidade de recursos destinados às duas campanhas, do candidato Aécio e da candidata Dilma, estava quase seguro de que o caixa dois tinha sido banido. Mas as notícias que nos chegam e agora com depoimentos e documentos mostram que não foi banido.
O Brasil não tem tradição de doações de pessoas físicas. Mas é provável nestas eleições que candidatos apareçam com listas de doadores que nunca antes se voltaram para a política. Isso é um grande desafio e estamos aprimorando o sistema e nos coordenando com o Ministério Público. Nessas eleições vamos ter entre 530.000 e 580.000 candidatos. Não é uma tarefa fácil. São as maiores eleições do ponto de vista do número de candidatos. Haverá a tentação de fraudar doações não só por conta das dificuldades de obter doação, mas de candidatos tentarem obter apoio de pessoas jurídicas de maneira indevida, com gasolina, cartazes. Temos também o problema do limite de gastos, que é novo e baixo. Nessas eleições, em 62% dos municípios o candidato não pode gastar mais do que 100.000 reais e vereador não mais do que 10.000 reais nesses mesmos municípios.
A justiça não consegue fiscalizar sequer as empresas prestadoras de serviços para os candidatos. É factível fiscalizar a legalidade das doações dos eleitores? Os técnicos do TSE já brincaram um pouco dizendo que um fenômeno que podemos ter é um ‘caça-CPF’, com candidatos que já disponham de uma quantia de recursos mas que precisam achar CPF adequados [para fraudar doações]. Essa é uma atividade arriscada porque nós vamos ter condições de fazer batimentos de dados. Se o indivíduo não tem condições de fazer doação porque tem uma renda muito baixa, óbvio que isso pode ser detectado. Mas vai ser por amostragem. Depende muito da fiscalização. Essas doações também podem dar ensejo a determinadas coincidências que permitam a identificação. Em um sistema em que já dominava uma lei da selva, um vale tudo, esse regramento vai ser um grande teste.
No TSE estão abertos três processos para investigar o PT, o PMDB e o PP por suspeitas de que abasteceram campanhas eleitorais com propinas do petrolão. Eles podem mesmo ser extintos? A legislação permite a extinção de partidos, mas o que é importante nesses casos é que as investigações se realizem e que possamos fazer a análise dos dados. Isso é uma coisa que até então não tinha sido discutida nem admitida. A prestação de contas era aprovada meio que por ‘tabela’, tanto é que os políticos se defendem sempre afirmando que o TSE aprovou as contas. Mas era uma coisa quase protocolar. A partir da análise das contas da presidente Dilma é que mudou.
As críticas são de que o TSE analisa burocraticamente os processos, deixando que a depuração seja feita de outro modo, pelo voto nas urnas, por exemplo. Não estou cogitando da extinção dos partidos necessariamente. Vamos primeiro ver o resultado das investigações. O importante é fazer essas investigações e depois vamos analisar. Até porque estou apostando que vamos ter uma reforma política mais ampla. Vai ficar uma pressão sobre o Congresso com a simples revelação de todos esses malfeitos.
Existem empresas especializadas em lavar dinheiro do sistema político. O que a Justiça Eleitoral pode fazer? Para essas eleições, não vejo as grandes empresas se animando a praticar caixa dois por causa do risco e do contexto de investigações. Talvez no interior com pequenas e médias empresas isso possa ocorrer. Mas não vejo o grande empresariado interessado, já que o risco aumentou.