domingo, 24 de julho de 2016

Dorrit Harazim: "Lava-jatíssimo"

O Globo


No caso de doping com participação ativa de um governo, atleta é vítima e beneficiário da fraude que lhe é imposta


A Olimpíada de Moscou de 1980 foi dourada para a adolescente Rica Reinisch, da RDA (a Alemanha comunista antes da queda do Muro de Berlim). Primeiro, a atleta ganhou um ouro nos 100 metros nado costas. Nas 72 horas seguintes, bateu duas vezes o próprio recorde mundial em provas de revezamento. Por fim, conquistou a quarta medalha de ouro nos 200 metros nado costas, também com recorde mundial.

Pouco depois, foi hospitalizada com inflamação crônica nos ovários, resultado do intenso treinamento com esteroides a que foi submetida na puberdade. Aposentou-se aos 16 anos, com sérios riscos de ficar estéril. Em 1994, foi uma das primeiras atletas a prestar depoimento no processo instaurado sobre a política de doping da antiga RDA. “O que me deixa sem chão”, lamentou, “é que jamais vou saber se eu poderia ter sido uma nadadora excepcional”.

Com a reunificação das Alemanhas, estabeleceu-se um fundo de US$ 2,8 milhões para indenizar os atletas que tiveram a saúde devastada pelo “Programa de Estado 14.25”, desenvolvido para fabricar campeões. Algumas das promissoras cobaias de alto rendimento alimentadas com pílulas de Oral-Turinabol tinham menos de 7 anos. Ao todo, estima-se que a temida potência esportiva dos anos 1970 e 1980 vitaminou mais de dez mil jovens.

Um dos depoimentos mais pungentes durante o julgamento foi o de Andreas Krieger, que era mulher e se chamava Heidi quando conquistou a medalha de ouro no arremesso de peso no Campeonato Europeu de 1986. A dieta de hormônios que lhe fora imposta alterou-lhe a identidade e a vida. Nada sobrara do orgulho pelas conquistas em campo.

Rememora-se estes fatos de uma era que se pensava enterrada porque doping como política de Estado está na ordem do dia. Faltando 12 dias para a abertura dos Jogos no Rio, é a Rússia de Vladimir Putin que vai a julgamento. Junto com ela, a real capacidade/vontade do Comitê Olímpico Internacional (COI) e da Agência Mundial Antidoping Mundial (Wada) de enfrentar o problema.

Segundo relatório independente divulgado esta semana, o sistema russo de acobertamento de doping envolveu o Ministério dos Esportes, o Centro de Preparação de Equipes Nacionais da Rússia, o Serviço Nacional de Informações (FSB) e os laboratórios antidoping de Moscou e Sochi. Ao que tudo indica, o espectro é amplo, com fraudes em amostras cobrindo nada menos de 29 modalidades esportivas.

Como já se escreveu aqui, doping no esporte é primo-irmão da corrupção na política. Ambos causam danos devastadores e visam fins assemelhados — sejam eles individuais ou coletivos, morais ou financeiros. No caso de doping esportivo com participação ativa de um governo, as duas hidras se entrelaçam. E o atleta torna-se ao mesmo tempo beneficiário e vítima da fraude que lhe é imposta.

Muitas, se não todas as 204 nações que competirão nestes Jogos já tiveram, têm ou terão atletas envolvidos com doping. Só esta semana, mais de 45 atletas olímpicos de 17 países caíram na malha fina de testes sendo refeitos pela Wada, aumentando o sobressalto generalizado. Na primeira rodada destes reexames, realizada em maio, outros 53 atletas de 12 países já haviam sido apontados. Sem falar em cinco países que estão com suas federações de atletismo sob vigilância às vésperas da Olimpíada — Quênia, Etiópia, Ucrânia, Bielorrússia e Marrocos.

O caso da Rússia, porém, é mais tóxico. O banimento total nas provas de pista e campo de sua fenomenal esquadra de atletismo, como punição por um esquema de corrupção e doping com participação ativa do governo, já é inédito.

Aguarda-se agora uma segunda posição a ser anunciada pelo COI. O Comitê pode acatar ou rejeitar a mais extrema das medidas pedidas por vários países, entidades antidoping e atletas: excluir destes Jogos a terceira potência esportiva do planeta. Uma olimpíada sem a Rússia seria tão impensável, brutal e capenga quanto, talvez, necessária para informar ao mundo do esporte que uma operação lava-jatíssimo está em curso e veio para ficar.

Mesmo sem chegar a esse extremo, só o banimento da equipe inteira de atletismo, incluindo quem nunca foi pego em exames antidoping, já suscita polêmica e críticas. Não é a primeira vez que responsabilidade coletiva e justiça individual entram em choque, e o resultado pode ser cruel.

Mas existe uma diferença gritante entre os atletas da Rússia de Putin e os da esfera soviética dos tempos da Guerra Fria. Os de antanho, como a menina Rica Reinisch ou Andreas/Heidi Krieger não sabiam. Se soubessem, jamais poderiam denunciar. Denunciar a quem? E se fossem limpos, não seriam atletas, ponto.

Em 2016, existe a figura do informante. Existe a delação premiada. Existe a internet. Existe mais liberdade de escolha. Quatro anos atrás, a Wada recebeu um e-mail da russa Darya Pishchalnikova, medalha de prata no arremesso de disco em Londres-2012. Ela dizia ter tomado substancias proibidas por orientação das autoridades e queria colaborar com a Wada. A entidade engavetou a denúncia por três anos. Mas vieram outras, até que o dique se rompeu.

Hoje, a única atleta russa que competirá no estádio do Engenhão, sob bandeira neutra, será Yulia Stepanova. Ela cumpriu dois anos de suspensão por doping, exilou-se nos Estados Unidos e foi decisiva, junto com o marido, para mapear o programa de doping de Estado em seu país. Para Sebastian Coe, presidente da entidade que rege o atletismo mundial, sem a colaboração de Stepanova e as provas que forneceu à IAAF, não se chegaria à dimensão da fraude.

Para Coe, os atletas têm a responsabilidade de ajudar. “Eles sabem mais do que qualquer um de nós. Estão lá, nas pistas, nos grupos de treinos, conhecem os técnicos que fraudam”, diz o hoje dirigente. Ele sabe do que fala: foi atleta por mais de uma década, e dos bons. Conquistou duas medalhas de ouro e duas de prata.