Flávia Yuri Oshima - Epoca
A educadora do Vaticano diz que o mestre tem de estar disposto a aprender todos os dias. E que um sistema em que o profissional ruim não pode ser demitido não tem como dar certo
Há 30 anos, a freira espanhola Montserrat Del Pozo recebeu a missão do Vaticano de investigar o que era feito de mais eficaz em educação no mundo . Em escolas muito distintas, encontrou um problema comum: elas não formavam pessoas capazes de lidar com o mundo de forma autônoma . Aos adolescentes que saíam da escola, faltava capacidade de análise. Faltava autoestima e autoconhecimento. Ao longo de mais de sete anos de pesquisa, Montserrat desenhou uma pedagogia baseada no desenvolvimento da capacidade de análise e crítica da criança.
Ela trabalhou ao lado do psicólogo americano Howard Gardner para implementar em sua pedagogia a teoria das múltiplas inteligências, criada por ele. Pessoalmente, a madre Montserrat é desconcertante . Por trás do sorriso alegre e do aspecto acolhedor, há uma educadora sagaz, inteligente e até agressiva quando fala das estratégias para ajudar a melhorar o ensino. A educação de hoje, diz ela, deve formar pessoas que viverão num mundo que nós ainda não sabemos como será. A autonomia e a visão crítica seriam a chave para isso. Em 1994, madre Montserrat iniciou uma reforma na educação das escolas católicas sob a direção do Vaticano.
Em 2000, o sistema de ensino que criou ganhou uma escola inteiramente baseada nele, o Colégio Montserrat (o mesmo nome é apenas uma coincidência), na Espanha. Mais de 50 escolas em vários locais do mundo seguem sua pedagogia. Madre Montserrat é filósofa pela Universidade da Pensilvânia e mestre em psicologia pela Universidade de Massachusetts, ambas nos Estados Unidos. Esteve no Brasil para um treinamento de professores do Colégio São Luiz, em São Paulo.
O BENEFÍCIO DA CRÍTICA A madre Montserrat Del Pozo. Ela incentiva a visão crítica nos estudantes (Foto: Olivier Valiente) ÉPOCA – A senhora prega uma pedagogia que incentiva o pensamento crítico, que necessariamente pede liberdade. A religião não se choca com essa liberdade? Madre Montserrat Del Pozo – Quando me faz essa pergunta, você parte de um modelo preconcebido. Para entender que não há dicotomia, é preciso partir de uma das essências do cristianismo, que é ter uma visão crítica da sociedade. Jesus Cristo criticava abertamente os desmandos que iam contra a humanidade e a ética dos fariseus. Não podemos usar nossa crença como uma flecha contra o outro. Muitas vezes, me dizem, na própria Igreja, que sou demasiadamente aberta. Eu acredito que não seja uma questão de estar aberta ou fechada. É uma questão de dignidade da pessoa humana. Todos têm o direito de refletir e fazer críticas independentemente do que minha crença diga. Num colégio católico, o respeito ao ser humano é fundamental. Para que esse respeito ocorra, temos de ser capazes de aceitar formas de pensar e viver muito distintas. Perguntaram-me na TV sobre qual é nossa posição em relação a famílias de homossexuais e de pais divorciados. Não há posição para ter. A dignidade das crianças e das famílias é a mesma, o respeito é o mesmo. Misericórdia cristã é o respeito mútuo vertical, não horizontal.
ÉPOCA – Como se desenvolve o pensamento crítico do aluno? Madre Montserrat – É preciso uma mudança sistêmica no colégio, que vise instaurar a reflexão crítica em todos os níveis da escola, da gestão ao aluno. Para isso, existe uma série de protocolos. O resultado são instrumentos que transformam as aulas numa aula de pensamento. Quando isso se estabelece, não há como ter uma aula igual à outra. Na prática, isso se dá da seguinte forma: depois de cada novo aprendizado em qualquer disciplina – física, química, matemática ou história –, o aluno faz uma reflexão sobre o que aprendeu daquele momento, de que forma será feita a aplicação daquilo em sua vida ou em seu dia a dia na escola. Essa reflexão é posta em seu portfólio. Junto a isso, temos também uma discussão diária, na qual um dos alunos da turma tem 30 minutos para expor suas reflexões e questionamentos sobre questões éticas e humanas. Pegamos um tema que a criança estudou, como a aproximação diplomática entre Cuba e os Estados Unidos ou o assassinato de Osama bin Laden. Nossa experiência mostra que esse é um exercício poderoso de desenvolvimento de pensamento crítico em relação a tudo o que se passa na escola – e na vida desse estudante.
ÉPOCA – O professor está preparado para essa tarefa? Madre Montserrat – A formação é contínua. A própria dinâmica diária é um treinamento em curso. Trabalhei na formação de 6.012 professores. Em minha experiência, o indispensável é o professor estar disposto a sair da zona de conforto, do pedestal. A postura dele tem de ser a mesma do aluno: de estar disposto a aprender todos os dias e mudar de acordo com as necessidades que seus alunos apresentam. Isso é facilitado quando os professores percebem os resultados nos alunos e passam a sentir prazer, verdadeiramente, no ato de ensinar. Uma questão crítica ocorre quando o professor adota a postura de considerar os outros – os alunos, o sistema, a escola – como um problema. A resistência dos professores à mudança é o maior empecilho que uma escola pode enfrentar em qualquer mudança pedagógica. Em meus treinamentos, observei que 5 mil professores conseguiram mudar. Os demais não conseguiram ou não quiseram se desvencilhar dos padrões antigos.
ÉPOCA – E o que fazer com o professor que não muda sua postura? Madre Montserrat – Demita-o i mediatamente. Pense nas crianças e não perca tempo. O professor é o núcleo da escola e da vida do aluno. Professores ruins devem sair.
ÉPOCA – No Brasil, os professores da escola pública têm estabilidade de emprego. O que a senhora pensa disso? Madre Montserrat – Esse modelo não tem como funcionar. Não há como ter melhora no ensino se não podemos mudar os professores ruins. O mau professor sabota a qualidade do ensino. Em nossas escolas, o aluno escolhe um professor para ser seu tutor. O professor que não é escolhido por nenhum aluno é demitido. O raciocínio é simples: se em um ano dando aula para dezenas de crianças o professor não conquistou a confiança de nenhuma delas, não se conectou com elas, então ele não pode estar ali. Sou muito rigorosa com isso. Temos de ser objetivos. Não é porque um professor é uma pessoa amiga e querida na vida pessoal que ele deve ser poupado. Parece um absurdo, mas isso é algo amador que ocorre com muita frequência nas escolas. A criança vem primeiro. A cada ano que deixamos um professor ruim na sala de aula, prejudicamos dezenas de alunos.
ÉPOCA – No Brasil, pesquisas mostram que crianças de mães com mais anos de educação se saem melhor na escola. É possível superar a diferença que essa e outras influências familiares têm nos segmentos mais pobres? Madre Montserrat – Nossa obrigação como educadores é dar condições para que o aluno cultive o melhor de si dentro das condições em que vive. A criança deve ser comparada a ela mesma e a ninguém mais. Trabalhei na África, com comunidades miseráveis, e tenho convicção de que, se a criança tiver oportunidade, ela progredirá até chegar a seu rendimento máximo, mesmo em situações de miséria. Quando alcança esse desenvolvimento pleno (em relação a si mesma), a criança está apta a enfrentar qualquer realidade porque desabrochou em suas potencialidades. Sua autonomia e sua autoestima estão despertas. Muitos alunos inteligentes, com vida confortável e boa base, não chegam ao melhor de si mesmos e, por isso, não descobrem a autonomia que podem ter perante o mundo.
ÉPOCA – Qual sua opinião sobre o ensino das emoções na escola? Madre Montserrat – Quando se tem um professor capaz de pensar no aluno, a educação socioemocional se dá naturalmente a todo momento – porque esse professor o ajudará a lidar com dificuldades, com perdas e com seus limites.
ÉPOCA – O que a senhora pensa da internet na educação? Como ensinar a criança a selecionar o que é confiável ou não na internet? Madre Montserrat – Minha experiência diz que a internet é uma fonte de aprendizagem para os alunos, ao mesmo tempo que é também uma fonte de vícios. Não se deve proibir o acesso à internet na escola ou em casa. Eu, como educadora, tenho de ser capaz de garantir que o aluno não se conecte a conteúdos nocivos na escola. A educação é a ferramenta para isso. Temos de formar um cidadão digital. Essa é a tarefa que temos. Negá-la, enquanto professores ou pais, não é uma opção. A questão não é proibir conteúdos. Mas, sim, mostrar os riscos que cada ação do aluno traz. É o aluno, por fim, que tomará a decisão de como agir na web. Caso se comporte mal, ele deve ser punido de alguma forma – ficando sem internet por um tempo ou seja o que for. Ele tem de responder por seus atos. É assim que uma sociedade justa funciona.