Horas antes do relator da comissão especial de impeachment da Câmara dos Deputados, Jovair Arantes (PTB- GO), apresentar relatório favorável ao impedimento da presidente Dilma (com o sinal de mercúrio do termômetro político, em Brasília, batendo nos 40 graus), a mandatária desembarcou em Salvador, na manhã de quarta-feira, 6, debaixo de chuva fina que foi engrossando com o passar das horas. Algo não previsto, na véspera, nem por Maria Júlia Coutinho, a Majú do Jornal Nacional da TV Globo.
Mal (ou bem?) comparando, a atual prisioneira do Palácio do Planalto - enquanto se decide se o seu impedimento vai ou não vai - largou, por alguns instantes, a sua atual ocupação de oradora de comícios "interna corporis" (usando uma expressão jurídica bem da moda no Brasil, deste começo de outono de 2016). Desceu no Nordeste, em seguida, numa "passagem de quem vem buscar fogo", como se dizia antigamente em meu sertão do Rio São Francisco.
Ao desembarcar na Bahia, a mandatária petista mais parecia uma representação feminina do personagem enigmático, encarnado por Charles Bronson, nas cenas de abertura do filme policial de suspense "O Passageiro da chuva " (Le Passanger de La Pluie), um "Cult" para os amantes de cinema (do tipo deste jornalista) desde o lançamento, nos anos 70, até hoje. Recomendo efusivamente aos que nunca viram e aos que precisam rever esta jóia da sétima arte.
"Coisas da Bahia", disseram alguns sem algo mais interessante e original para dizer, à guisa de explicação para a brusca virada meteorológica, quando Dilma desembarcou trazendo debaixo das asas o seu ministro da Defesa, o comunista do PC do B, Aldo Rebelo. Acompanhada, também, do ex-governador Jaques Wagner, atual chefe do Gabinete Pessoal da presidente, - o "coringa" deste mandato de Dilma, - segundo definição do "ABC do poder no Brasil", em reportagem do jornal chileno "El Mercúrio"; ou "o Galego de Lula" , como preferem os petistas e linhas auxiliares.
Ao grupo palaciano de Brasília juntaram-se, em Salvador, o atual e indecifrável esfinge petista que governa o estado, Rui Costa, e o pentapresidente da Assembleia Legislativa, Marcelo Nilo, que acaba de desembarcar do PDT baiano, em busca de novo pouso partidário onde possa continuar desfrutando das benesses dos palácios de Ondina e do Planalto e, quem sabe, emplacar um sexto mandato consecutivo em seu império preferido, no Centro Administrativo da Bahia.
"Coisas da nossa Bahia”, como costumava dizer o ex-governador, ex-senador e falecido imortal historiador da Academia Brasileira de Letras, Luiz Viana Filho.
Pelo menos, no caso das chuvas de quarta-feira, parece ter ocorrido um apagão geral de memória na comitiva da presidente. Afinal, é de conhecimento secular entre os soteropolitanos: março e abril são meses de grandes catástrofes pluviais e desabamentos na capital baiana, a exemplo dos registradas ano passado. Um dos mais trágicos deles, bem ao pé do famoso Elevador Lacerda e da Praça Cayru.
A menos de 100 metros da sede do II Distrito Naval, onde Dilma esteve em sua visita relâmpago (juro que há segunda intenção ou outro subentendido qualquer na frase retórica). E a menos de 500 metros do Porto de Salvador, onde a mandatária entregou um novo barco à Marinha do Brasil, em cerimônia apontada como razão principal e única da visita presidencial.
O prefeito de Salvador, ACM Neto, do DEM, defensor do impeachment e apontado, em todas as pesquisas até aqui, como "Pule de 10" para ser reeleito nas municipais e continuar mandando na capital, foi mantido afastado das cerimônias no Distrito Naval – coalhado de militares e políticos federais e estaduais – e no Porto, para onde foram arregimentados militantes petistas, de linhas auxiliares e do PC do B, além de sindicalistas e saudosistas da UNE, aos gritos de "Não vai ter golpe”. ACM Neto (que, provavelmente, não esqueceu dos sustos que teve e dos desgastes sofridos com os desabamentos e mais de 20 mortes, do ano passado), se lá estivesse, talvez falasse sobre o temido período de chuvas na cidade que ele administra, e das vítimas, incluindo um marinheiro, morador do casarão que desabou na histórica Ladeira da Preguiça. Mas o assunto não mereceu uma palavra sequer no discurso da presidente.
Olhando com atenção para o ambiente da solenidade, logo seria possível perceber, com clareza meridiana, apesar do temporal, o sentido político mal escondido, sob a agenda administrativa do navio recauchutado, "doca multipropósito" (a denominação só pode ser uma ideia do ministro Aldo Rebelo!), batizado com o nome "Bahia" pela mandatária.
No discurso em Salvador, a presidente, sob ameaça de impedimento, evitou o seu atual refrão preferido dos comícios no Planalto: "impeachment é golpe". Preferiu começar com acenos aos quartéis: "O Brasil de hoje é um país com fronteiras nacionais consolidadas e que convive em harmonia, cooperação e paz com nossos vizinhos. Não podemos, no entanto, descuidar da defesa de nossa soberania, motivo pelo qual é necessário investir sempre e mais na capacitação das nossas Forças Armadas. Por isso, mesmo em uma fase de ajustes, como a que estamos atravessando, temos nos esforçado para dar sequência aos projetos estratégicos das Forças Armadas”, falou como uma passageira da chuva que oferece presentes.
Completou a fala aos militares: “Na proposta de lei orçamentária de 2016, que enviamos ao Congresso Nacional em março, incluimos o abatimento na meta de superavit de R$3,5 bilhões destinados ao Ministério da Defesa para garantir a continuidade desses projetos. O cenário fiscal que enfrentamos é difícil. Estamos trabalhando diuturnamente para superá-lo, mas devemos superá-lo sem sacrificar projetos que são fundamentais para a retomada do desenvolvimento e para o futuro do Brasil”, Aldo Rebelo e Jaques Wagner sorriram mais que os oficiais fardados presentes.
Do lado de fora dos portões do Porto de Salvador, na área do Comércio da Cidade Baixa, chegavam os gritos da militância debaixo do temporal: "Não vai ter golpe!" Dilma não resistiu. Do ancoradouro da embarcação dirigiu aos molhados militantes os seus acenos derradeiros na capital baiana: "Queria agradecer a todos os manifestantes que se colocam aqui debaixo de chuva defendendo a nossa democracia e defendendo a institucionalidade do nosso país."
Depois pegou um helicóptero para a Base Aérea e de lá retornou às pressas para a efervescente Brasília. Tão repentinamente como começara de manhã, o sol e o calorão do indefinido começo de outono voltaram a Salvador.
"Amaldiçoado seja aquele que pensar mal dessas coisas", diriam os franceses. Eu encerro como o saudoso colunista Ibrahim Sued: "Olho vivo, que cavalo não desce escadas!"