O Globo
Inflação elevada é apontada como um dos principais problemas da economia
BUENOS AIRES e RIO - Apesar de negar que seu país deu calote, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, enfrenta a crise econômica e financeira mais difícil da era kirchnerista. O cenário mistura recessão, inflação alta, perda de empregos, restrições no mercado cambial e, agora, a crise da dívida. Economistas locais afirmam que a situação não pode ser comparada ao cenário de 2001-2002, quando o Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e serviços produzidos no país) despencou 11%, mas destacam o perigoso processo de deterioração da economia.
Como a Argentina chegou a esta nova crise? Na opinião do economista Federico Muñoz, da consultoria Muñoz e Associados, "o vício primário e fundamental" do kirchnerismo foi não ter preservado um ativo importante, a estabilidade dos preços.
- A partir de 2007, a inflação começou a se instalar, com a cumplicidade de todos. Esse foi o pecado original. Com uma inflação mais alta do que os juros, o governo desincentivou a poupança em moeda local, estimulou a compra de dólares e acabou tendo de aplicar fortes restrições no mercado cambial pela fortíssima escassez de divisas, que deverá se aprofundar com o calote - explicou Muñoz.
Em fevereiro de 2007, o então presidente Néstor Kirchner ordenou a intervenção no Indec (o IBGE local), medida que provocou polêmica e derrubou a credibilidade do país. A inflação oficial foi mantida abaixo dos dois dígitos, enquanto consultoria privadas, que começaram a ser perseguidas judicialmente, já estimavam aumento de preços superior a 20%. Em 2008, a inflação calculada pelos economistas privados chegou a 28%, tornando escandalosa a atuação do Indec. Estima-se que a taxa acumulada nos últimos 12 meses chegue a 40%.
Para analistas brasileiros, a raiz do problema argentino está no modelo de governo populista, que optou pelo confronto com instituições financeiras, inclusive Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), o que contribuiu para isolar o país.
- Ao invés de bater de frente e demonizar o mercado, a Argentina devia ter buscado apoios. O governo argentino sacrificou o setor externo, alijou os empresários, limitou exportações e importações, numa política populista que diz, por exemplo, que a carne e o trigo produzidos lá serão consumidos no país. Agora não adianta dizer que o diabo está nos outros, ter arroubo de choro, apelar ao sentimentalismo, numa volta ao peronismo clássico. A classe média está com fadiga de material, as pessoas estão cansadas do kirchnerismo - diz Cláudio Frischtak, presidente da Inter.B Consultoria Internacional de Negócios.
Nos primeiros quatro anos de governo de Cristina, cerca de US$ 70 bilhões saíram do mercado financeiro. O dólar foi o refúgio preferido das economias de muitos argentinos, o que obrigou a Casa Rosada a restringir a compra de moeda americana. A sangria de reservas foi grande: no início do segundo mandato, o BC tinha cerca de US$ 52 bilhões. Em janeiro passado, US$ 26 bilhões. Hoje, após uma maxidesvalorização do peso, o montante voltou a cerca de US$ 30 bilhões.
- Esta é uma crise feita em casa. Não adianta querer culpar a economia mundial, os "fundos abutres" nem o juiz americano, porque todo este problema teria sido evitado se o país tivesse aproveitado o benefício excepcional de reduzir sua dívida em 75% (na época da reestruturação) para corrigir a política macroeconômica. A estratégia de politizar a dívida é uma estratégia suicida - diz Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da FGV e ex-presidente do BC.
A argentina Marina Dal Poggetto, economista-chefe do estúdio Bein, concorda:
- A situação que estamos vivendo foi autogerada por uma política econômica inconsistente. O governo perdeu o equilíbrio fiscal e comercial e perdeu reservas. Houve um uso e abuso do Banco Central, no lugar de recuperar o crédito e a estabilidade das contas públicas.
Quando foi decretado o calote de 2002, a dívida pública argentina atingia US$ 144 bilhões. Hoje está em US$ 182 bilhões, ou 30% do PIB. É menos do que os 60% de 12 anos atrás. Para especialistas, porém, o maior problema não é o tamanho da dívida, mas a perda de confiança, que deixa o país sem financiamento externo, afugenta investimentos estrangeiros e aprofunda a atual recessão.