O juiz Carlos Eduardo Ribeiro Lemos defende o reconhecimento de facções criminosas como terroristas
O juiz Carlos Eduardo Ribeiro Lemos vive há mais de duas décadas sob escolta. A mulher quase foi sequestrada, e um colega — o também juiz Alexandre Martins de Castro Filho — acabou sendo executado com três tiros, em Vila Velha. Desde então, Lemos se dedica a entender e enfrentar o avanço do crime organizado no Brasil, uma guerra que, segundo ele, o próprio Estado insiste em negar.
Professor titular da Faculdade de Direto de Vitória e juíz do Tribunal de Justiça do ES, é especialista em Direito Civil, Processual Civil, Direito Penal e Processual Penal. Em julho deste ano, Lemos lançou o livro “Terrorismo à Brasileira”.
Mal sabia ele que poucos meses depois a população do Rio de Janeiro seria surpreendida com uma megaoperação policial contra o Comando Vermelho para tentar recuperar o domínio de territórios abandonados por anos de omissão estatal. Na obra, Lemos expõe os motivos pelos quais o Brasil não reconhece o óbvio: o PCC e o Comando Vermelho são grupos terroristas. O juiz sustenta que o país já vive sob a lógica do terrorismo doméstico, com facções criminosas dominando territórios, impondo toques de recolher e desafiando a soberania nacional
Na entrevista, o magistrado critica a omissão do Estado e a cultura da bandidolatria, comenta o envolvimento de advogados cooptados por facções, denuncia o financiamento político do PCC e analisa as brechas da Lei Antiterrorismo de 2016, que, segundo ele, blindou grupos criminosos sob o pretexto de proteger movimentos sociais.
A que o senhor atribui esse crescimento de grupos criminosos no país?
À omissão do Estado. Criou-se uma cultura da bandidolatria, do vitimismo do criminoso, que só ajudou o crime a se fortalecer. Tráfico de drogas tem no mundo inteiro, mas domínio de território como existe no Brasil, não tem em outro lugar. Hoje, cerca de 50 milhões de pessoas estão subjugadas por esses grupos criminosos. O Estado não entra nesses locais. Numa realidade assim, não existe mais soberania nacional, nem democracia plena.
A Lei 13.260/2026, que disciplina o terrorismo no Brasil, só reconhece a ação de grupos terroristas quando há motivação política ou religiosa. Foi uma brecha proposital?
Nossa legislação sobre esse tema é absolutamente fora da realidade. Se fizer uma análise histórica, a lei foi aprovada em 2016, ano de intensos movimentos sociais e da realização das Olimpíadas no país. O objetivo claro da lei foi proteger os movimentos sociais, que inclusive praticaram atos terroristas. Lembra do caso de um criminoso que jogou uma bomba e matou um repórter? [Caio Silva de Souza foi condenado pela morte de Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes atingido por um rojão durante um protesto no Centro do Rio de Janeiro, em 2014]. Em qualquer lugar do mundo, essa ação seria considerada terrorista. Mas para blindar os movimentos, inseriram filtros ideológicos que também blindaram as facções criminosas. De 2016 até hoje, só tivemos uma condenação no Brasil por terrorismo: a Polícia Federal descobriu um grupo de rapazes programando um suposto ataque, durante as Olimpíadas no Rio, em defesa do Estado Islâmico.
A que se deve essa omissão legislativa e essa blindagem direcionada a determinados grupos?
As facções têm bancada, têm políticos que representam seus interesses. Em 2023, a Polícia Federal identificou que o PCC movimentou R$ 8 bilhões para financiar campanhas políticas no interior de São Paulo. O PCC comanda prefeituras. E é por isso que consegue explorar vários serviços públicos como limpeza urbana, transporte, fraudes em licitações. Desde 2016, o PCC já demonstrava uma sofisticação financeira. Naquele ano, matou o líder de uma facção que dominava o Paraguai. Com isso, dominou a produção de maconha naquele país, as rotas de cocaína vindas da Bolívia e conseguiu uma vantagem financeira expressiva na venda das drogas. O Brasil virou a grande rota de cocaína para o mundo. A imagem do Brasil hoje já é de um narcoestado. Existem paraísos fiscais no mundo inteiro. Hoje, o Brasil é um grande paraíso jurídico no mundo. Os maiores líderes da máfia italiana, da máfia russa, colombiana estão sendo presos no Brasil. Eles correm para cá justamente porque o país é conhecido por ter uma legislação frouxa. O Brasil está para o mundo, como o Rio de Janeiro está depois da ADPF 635 [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental], conhecida como ADPF das favelas. Todos os líderes de facção criminosa no Brasil estão escondidos no Rio, protegidos e blindados nas comunidades cariocas por determinação judicial.
“Existem paraísos fiscais no mundo inteiro. Hoje, o Brasil é um grande paraíso jurídico no mundo.”
O atual governo é radicalmente contra classificar facções criminosas como terroristas. E aposta na aprovação da lei antifacção, proposta pelo Executivo. Como o senhor avalia essa proposta?
O projeto de lei antifacção tentou copiar o modelo italiano, mas não tem conexão com a realidade brasileira. O modelo italiano tem três pilares: penas realmente altas, inclusive com previsão de prisão perpétua; a colaboração premiada, mas com uma única chance de benefício e o isolamento rigoroso dos envolvidos com esses grupos criminosos, com restrição de visitas de familiares e de advogados. Na versão brasileira, excluíram todas as regras que endurecem as punições previstas na legislação italiana. Veja, a pena mínima hoje para quem integra uma organização criminosa é de três anos. A proposta sobe para cinco anos. Mas criou-se uma causa de diminuição de pena, que chamo ironicamente de ‘grupo organizado privilegiado’, que estabelece a pena mínima para um ano e oito meses. Essa é a legislação que se propõe a fazer um enfrentamento mais duro do crime no país?
Há também o projeto de lei antiterrorismo, em discussão na Câmara, de autoria do deputado federal Danilo Forte (União-CE). A proposta pode ajudar no enfrentamento do crime organizado?
O Brasil é signatário de tratados internacionais de combate ao terrorismo. E consequentemente, deveria seguir as diretrizes internacionais. No mundo inteiro, o conceito de terrorismo não é igual ao que temos no Brasil. Só pelo fato de a legislação brasileira abranger aspectos relacionados a questões religiosas e ideológicas, já fere os tratados aos quais somos signatários. Nos Estados Unidos, qualquer ato perigoso à vida humana, destinado a intimidar ou coagir a população civil, independentemente da motivação ideológica, é terrorismo. Precisamos ajustar nossa lei para retirar o filtro ideológico, porque ela ignora o terrorismo doméstico que existe no Brasil. Hoje, a queima de ônibus, a execução de delegados e juízes, a existência de toque de recolher para comunidades inteiras, não são consideradas ações terroristas. Se a legislação conseguir corrigir esse conceito, será um avanço e uma ferramenta a mais de combate ao crime.
O Brasil teria acesso a toda a rede de inteligência de países que já trabalham com o terrorismo. Sabemos que o PCC está em 28 países e lava dinheiro também nesses lugares. Pelas inteligências internacionais, o Brasil teria acesso à localização dessas pessoas, do dinheiro, realização de bloqueio. Ainda que a lei brasileira tenha entraves, a legislação internacional permitiria o bloqueio de capitais de forma muito mais rápida.
Revista Oeste