sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Paula Leal - 'O Brasil é o maior paraíso jurídico do mundo’

O juiz Carlos Eduardo Ribeiro Lemos defende o reconhecimento de facções criminosas como terroristas


Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, juiz criminal e autor do livro "Terrorismo À Brasileira" | Foto: Reprodução/TJES


O juiz Carlos Eduardo Ribeiro Lemos vive há mais de duas décadas sob escolta. A mulher quase foi sequestrada, e um colega — o também juiz Alexandre Martins de Castro Filho — acabou sendo executado com três tiros, em Vila Velha. Desde então, Lemos se dedica a entender e enfrentar o avanço do crime organizado no Brasil, uma guerra que, segundo ele, o próprio Estado insiste em negar.

Professor titular da Faculdade de Direto de Vitória e juíz do Tribunal de Justiça do ES, é especialista em Direito Civil, Processual Civil, Direito Penal e Processual Penal. Em julho deste ano, Lemos lançou o livro “Terrorismo à Brasileira”. 

Mal sabia ele que poucos meses depois a população do Rio de Janeiro seria surpreendida com uma megaoperação policial contra o Comando Vermelho para tentar recuperar o domínio de territórios abandonados por anos de omissão estatal. Na obra, Lemos expõe os motivos pelos quais o Brasil não reconhece o óbvio: o PCC e o Comando Vermelho são grupos terroristas. O juiz sustenta que o país já vive sob a lógica do terrorismo doméstico, com facções criminosas dominando territórios, impondo toques de recolher e desafiando a soberania nacional


Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, juiz criminal e autor do livro “Terrorismo À Brasileira” | Foto: Reprodução/TJES 


Na entrevista, o magistrado critica a omissão do Estado e a cultura da bandidolatria, comenta o envolvimento de advogados cooptados por facções, denuncia o financiamento político do PCC e analisa as brechas da Lei Antiterrorismo de 2016, que, segundo ele, blindou grupos criminosos sob o pretexto de proteger movimentos sociais. 

A seguir, os principais trechos da entrevista. 

O que motivou o senhor a escrever um livro com o título “Terrorismo à Brasileira”? 

Foi uma inquietação de quem acompanha o problema há muito tempo. Nos anos 2000 o Espírito Santo estava dominado pelo crime organizado. Era um cenário bastante complicado, com envolvimento do governador do Estado e do presidente da Assembleia Legislativa, às voltas com o jogo do bicho. Do outro lado, grupos de extermínio comandados por policiais, principalmente, e facções dominando o sistema prisional. Nesse contexto, fui convocado pelo presidente do Tribunal de Justiça para trabalhar numa missão especial de enfrentamento do crime organizado. Convidei o juiz Alexandre Martins de Castro Filho para trabalhar comigo na operação, que era complexa. O presidente da Assembleia foi preso, bem como vários chefes de organização criminosa e policiais, e passamos a receber ameaças. Tentaram sequestrar minha mulher. E mataram o juiz Alexandre a tiros em Vila Velha.

Como o Estado brasileiro enxergava a questão da segurança pública nessa época? 

Nos anos 2000, o Estado negava a existência de facções criminosas. Ainda hoje nega que essas ações são terroristas. E a gente está pagando o preço dessa negação. Estamos em guerra? Sim. E negar a guerra não ajuda. A gente corre o risco de perder a guerra sem nem mesmo dar um nome a ela. Lembro de conversas que tive com o Alexandre, porque nós recebíamos muitas ameaças. Lembro de ele dizer: ‘Eles não têm coragem de matar um juiz. Se matar um juiz, aí o mundo inteiro vai se rebelar’. No fundo, a gente não acreditava que eles tivessem essa ousadia. E tiveram.

Ainda assim, o senhor continuou a trabalhar no enfrentamento do crime organizado?  

Sim, segui com o trabalho, mas minha família está sob proteção há 23 anos. Meu filho mais novo já nasceu escoltado. Durante muitos anos, conduzi o processo que apurava a morte do Alexandre e tive mais contato com essas organizações. E também com o sistema prisional. As facções nascem lá dentro, onde se retroalimentam e de onde são comandadas. Por exemplo, a determinação de ataques a 70 presídios de uma só vez, como aconteceu em São Paulo, com ordens vindas das celas. 

Como funciona essa dinâmica de ordens decretadas por criminosos de dentro dos presídios? 
Só em Vitória já foram presos mais de 40 advogados. A OAB não admite essa discussão, mas é um grande gargalo da segurança pública do Brasil hoje. A lei diz que o advogado pode falar com seu cliente a qualquer hora do dia, a qualquer momento. Sabe o que acontece? 

Os líderes de facção recebem 11, 12 advogados por dia. Pode ser às 3h da manhã, às 2h da tarde. Com isso não é possível interromper o fluxo de informação, de comando. São principalmente advogadas recémformadas. Porque, em tese, a mulher chama menos a atenção. Eles oferecem um bom dinheiro no início de carreira. A pessoa é seduzida pelo valor e, quando vê, está cooptada pela facção, levando e trazendo informação. Quem faz isso não é advogado, é membro de quadrilha. 

Como está a situação atual do Espírito Santo na área de segurança pública? 

O Espírito Santo está saneado economicamente, nosso sistema prisional é o melhor do Brasil. Mas a segurança pública é um problema nacional. O Estado pode fazer a melhor política de investimento em segurança. Mas, como no Brasil, as facções só crescem, a migração para nosso Estado é inevitável. Só para ter uma ideia, em 2010, nenhum fuzil foi apreendido no Espírito Santo. Em 2005, foram 10. Em 2024, foram 19, 280 metralhadoras e 80 submetralhadoras. Chegamos a outubro deste ano com 27 fuzis apreendidos. Nessa proporção, em cinco anos, serão em média 100 fuzis apreendidos no Espírito Santo. E todas essas armas têm identificação de facções do Rio de Janeiro. São armas emprestadas para as franquias ou filiais das facções, para dominação de território.

A que o senhor atribui esse crescimento de grupos criminosos no país? 

À omissão do Estado. Criou-se uma cultura da bandidolatria, do vitimismo do criminoso, que só ajudou o crime a se fortalecer. Tráfico de drogas tem no mundo inteiro, mas domínio de território como existe no Brasil, não tem em outro lugar. Hoje, cerca de 50 milhões de pessoas estão subjugadas por esses grupos criminosos. O Estado não entra nesses locais. Numa realidade assim, não existe mais soberania nacional, nem democracia plena. 


Capa do livro “Terrorismo À Brasileira”, de Carlos Eduardo Ribeiro Lemos | Foto: Reprodução

A Lei 13.260/2026, que disciplina o terrorismo no Brasil, só reconhece a ação de grupos terroristas quando há motivação política ou religiosa. Foi uma brecha proposital? 

Nossa legislação sobre esse tema é absolutamente fora da realidade. Se fizer uma análise histórica, a lei foi aprovada em 2016, ano de intensos movimentos sociais e da realização das Olimpíadas no país. O objetivo claro da lei foi proteger os movimentos sociais, que inclusive praticaram atos terroristas. Lembra do caso de um criminoso que jogou uma bomba e matou um repórter? [Caio Silva de Souza foi condenado pela morte de Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes atingido por um rojão durante um protesto no Centro do Rio de Janeiro, em 2014]. Em qualquer lugar do mundo, essa ação seria considerada terrorista. Mas para blindar os movimentos, inseriram filtros ideológicos que também blindaram as facções criminosas. De 2016 até hoje, só tivemos uma condenação no Brasil por terrorismo: a Polícia Federal descobriu um grupo de rapazes programando um suposto ataque, durante as Olimpíadas no Rio, em defesa do Estado Islâmico. 


A que se deve essa omissão legislativa e essa blindagem direcionada a determinados grupos? 

As facções têm bancada, têm políticos que representam seus interesses. Em 2023, a Polícia Federal identificou que o PCC movimentou R$ 8 bilhões para financiar campanhas políticas no interior de São Paulo. O PCC comanda prefeituras. E é por isso que consegue explorar vários serviços públicos como limpeza urbana, transporte, fraudes em licitações. Desde 2016, o PCC já demonstrava uma sofisticação financeira. Naquele ano, matou o líder de uma facção que dominava o Paraguai. Com isso, dominou a produção de maconha naquele país, as rotas de cocaína vindas da Bolívia e conseguiu uma vantagem financeira expressiva na venda das drogas. O Brasil virou a grande rota de cocaína para o mundo. A imagem do Brasil hoje já é de um narcoestado. Existem paraísos fiscais no mundo inteiro. Hoje, o Brasil é um grande paraíso jurídico no mundo. Os maiores líderes da máfia italiana, da máfia russa, colombiana estão sendo presos no Brasil. Eles correm para cá justamente porque o país é conhecido por ter uma legislação frouxa. O Brasil está para o mundo, como o Rio de Janeiro está depois da ADPF 635 [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental], conhecida como ADPF das favelas. Todos os líderes de facção criminosa no Brasil estão escondidos no Rio, protegidos e blindados nas comunidades cariocas por determinação judicial. 


“Existem paraísos fiscais no mundo inteiro. Hoje, o Brasil é um grande paraíso jurídico no mundo.”


O atual governo é radicalmente contra classificar facções criminosas como terroristas. E aposta na aprovação da lei antifacção, proposta pelo Executivo. Como o senhor avalia essa proposta? 

O projeto de lei antifacção tentou copiar o modelo italiano, mas não tem conexão com a realidade brasileira. O modelo italiano tem três pilares: penas realmente altas, inclusive com previsão de prisão perpétua; a colaboração premiada, mas com uma única chance de benefício e o isolamento rigoroso dos envolvidos com esses grupos criminosos, com restrição de visitas de familiares e de advogados. Na versão brasileira, excluíram todas as regras que endurecem as punições previstas na legislação italiana. Veja, a pena mínima hoje para quem integra uma organização criminosa é de três anos. A proposta sobe para cinco anos. Mas criou-se uma causa de diminuição de pena, que chamo ironicamente de ‘grupo organizado privilegiado’, que estabelece a pena mínima para um ano e oito meses. Essa é a legislação que se propõe a fazer um enfrentamento mais duro do crime no país? 


Há também o projeto de lei antiterrorismo, em discussão na Câmara, de autoria do deputado federal Danilo Forte (União-CE). A proposta pode ajudar no enfrentamento do crime organizado? 

O Brasil é signatário de tratados internacionais de combate ao terrorismo. E consequentemente, deveria seguir as diretrizes internacionais. No mundo inteiro, o conceito de terrorismo não é igual ao que temos no Brasil. Só pelo fato de a legislação brasileira abranger aspectos relacionados a questões religiosas e ideológicas, já fere os tratados aos quais somos signatários. Nos Estados Unidos, qualquer ato perigoso à vida humana, destinado a intimidar ou coagir a população civil, independentemente da motivação ideológica, é terrorismo. Precisamos ajustar nossa lei para retirar o filtro ideológico, porque ela ignora o terrorismo doméstico que existe no Brasil. Hoje, a queima de ônibus, a execução de delegados e juízes, a existência de toque de recolher para comunidades inteiras, não são consideradas ações terroristas. Se a legislação conseguir corrigir esse conceito, será um avanço e uma ferramenta a mais de combate ao crime.


A instalação da CPI do Crime Organizado - Foto: Andressa Anholete/Agência Senado 


O Brasil teria acesso a toda a rede de inteligência de países que já trabalham com o terrorismo. Sabemos que o PCC está em 28 países e lava dinheiro também nesses lugares. Pelas inteligências internacionais, o Brasil teria acesso à localização dessas pessoas, do dinheiro, realização de bloqueio. Ainda que a lei brasileira tenha entraves, a legislação internacional permitiria o bloqueio de capitais de forma muito mais rápida. 

A CPI do crime organizado, instalada no Senado nesta semana, pode ser útil no combate ao crime organizado? 

Sou um eterno otimista, senão já teria desistido do meu trabalho. Temos de aguardar e acompanhar se as figuras que lá estão irão atender aos anseios populares. Uma coisa é certa: o político se conduz de acordo com as ruas. Como a população está pedindo socorro, é possível que a Comissão consiga realizar um bom trabalho. 

Revista Oeste