A incompetência de governos no enfrentamento do crime organizado tem facilitado a expansão das facções terroristas sobre o território brasileiro
D urante uma entrevista coletiva a jornalistas estrangeiros em Belém (PA), nesta terça-feira, 4, o presidente Lula qualificou de “matança” a operação contra o Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro (RJ). O petista prometeu ainda uma investigação para esclarecer tudo. “Eu acho que é importante a gente verificar em que condições essa ação se deu, porque até agora nós temos uma versão contada pela polícia e pelo governo do Estado”, disse. “E tem gente que quer saber se tudo aquilo aconteceu do jeito que eles falam ou se teve alguma coisa mais delicada na operação. Eu acho que ela foi muito desastrosa.” Mais uma vez, a declaração de Lula esconde boa parte dos fatos.
O mais importante deles é que a ação nos complexos da Penha e do Alemão registrou apoio de 70% dos moradores do RJ, conforme a mais recente pesquisa Genial/Quaest, divulgada no começo desta semana. A maior parte das pessoas também se manifestou a favor de medidas de endurecimento de penas a criminosos. Além disso, a ação dos agentes do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), sob as ordens do governador Cláudio Castro, teve um ano de planejamento antes de ser executada e não conseguiu sequer apoio da Polícia Federal (PF) ou das Forças Armadas. O saldo: 120 óbitos, entre eles, quatro policiais. Do total, segundo levantamento da Secretaria Estadual de Segurança, 97 mortos tinham ficha suja, principalmente passagem por tráfico de entorpecentes. As declarações hostis de Lula ao governo fluminense reacenderam o debate sobre o poder das facções e a conivência do Estado. Enquanto o petista ataca a polícia, o crime organizado vai se expandindo pelo País.
Rede do crime
Divulgada no ano passado, uma pesquisa da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, revelou dados preocupantes, os quais mostram que o CV e o Primeiro Comando da Capital (PCC) são apenas a ponta de um gigantesco iceberg. Segundo o documento, o Brasil tem 88 facções criminosas com presença confirmada em pelo menos uma das 27 unidades federativas. O levantamento identifica grupos de alcance nacional, regional e local, que disputam rotas de tráfico, controle de presídios e até mesmo influência política.
O CV rompeu o cordão umbilical depois de nascer nas prisões do Rio de Janeiro na década de 1970. Ao alcançar a maioridade, expandiu-se para o Norte e o Nordeste, mantendo forte presença no Amazonas, Pará, Maranhão e Ceará. Para essa facção, o narcotráfico passou a ser uma atividade secundária. A maior fonte de renda vem do domínio de territórios e do controle de favelas. Nesses locais, o gás, a luz, a internet, a telefonia e o transporte pertencem aos criminosos. Também são eles que comercializam produtos como cervejas, carvão e cigarros.
Já o PCC, criado em São Paulo, adota outro modelo: em vez de ocupar as favelas, comanda operações de tráfico e lavagem de dinheiro em escala internacional. A facção atua sobretudo nas rotas que passam pelo Paraguai e pela Bolívia, com base operacional em Santa Cruz de La Sierra e influência direta sobre o Porto de Santos, o principal corredor de exportação de cocaína para a Europa. É por essa razão logística que o PCC mantém presença pontual na periferia do Guarujá, no litoral paulista, cidade vizinha a Santos.
Ainda segundo o levantamento da Senappen, na região Norte a Família do Norte (FDN) disputa com o CV o controle das rotas fluviais da Amazônia, enquanto no Acre o Bonde dos 13 atua como aliado logístico do CV. No Nordeste, grupos como o Trem Bala e o Okaida mantêm domínio em presídios do Ceará e do Maranhão, com estrutura armada e crescente poder de recrutamento. Essas organizações, segundo a Senappen, firmam alianças temporárias e trocam armas e drogas por rotas e proteção, formando uma rede que nenhum governo conseguiu desarticular.
O relatório também identifica facções de médio porte que controlam presídios e rotas locais. No Centro-Oeste, o Comando Classe A, de Mato Grosso do Sul, mantém ligação direta com o PCC. No Sul, o Primeiro Grupo Catarinense expandiu influência para o Paraná e o Rio Grande do Sul, focalizando o tráfico de armas e a lavagem de dinheiro. No Sudeste, o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade e o Comando Democrático da Liberdade funcionam como braços autônomos do PCC, e, no Nordeste, o Comando da Paz (BA) e o Sindicato do Crime (RN) atuam como aliados do CV.
Essas facções regionais compartilham uma lógica comum: mesmo com estruturas menores, replicam a disciplina, a contabilidade e o modelo de expansão dos grandes comandos nacionais. Juntas, elas criam uma malha de criminalidade que sustenta o poder de lideranças centrais, garantindo reposição constante de seus recursos e efetivos.
Política de omissão
Desde o início dos anos 2000, o Brasil assiste ao avanço constante do crime organizado sob governos de diferentes partidos — principalmente, PT e PSDB. Em 2006, o PCC mostrou ao país o que o crime é capaz de fazer quando o Estado é omisso. Em apenas três dias, a facção paralisou São Paulo, provocando mais de 500 ataques e 150 mortes. O episódio ocorreu durante a gestão do então governador Geraldo Alckmin, que se afastou naquele ano para disputar a Presidência, sendo sucedido por Cláudio Lembo. Além do sistema prisional dominado pelos bandidos, a situação revelou mais uma fraqueza do Estado: a falta de estrutura capaz de evitar os ataques promovidos pelo PCC.
No Rio de Janeiro, tentou-se recuperar o controle das favelas com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criadas em 2008, no governo de Sérgio Cabral. As incursões iniciais contaram com o apoio da Força Nacional e do Exército, que participaram das operações de retomada de territórios dominados pelo tráfico, especialmente nos complexos do Alemão e da Penha. O projeto buscava restabelecer a presença do Estado em morros controlados por facções. No auge, entre 2013 e 2014, as UPPs chegaram a 38 unidades, com policiamento fixo em mais de 260 favelas. A partir de 2016, a falta de recursos reduziu a presença policial e paralisou programas sociais. Em 2018, o governo Pezão iniciou a desativação das UPPs e, em 2020, o programa foi oficialmente extinto. Hoje, nenhuma unidade funciona no formato original: as bases físicas permanecem como postos convencionais da PM, sem presença social nem planejamento comunitário.
As declarações hostis de Lula ao governo fluminense reacenderam o debate sobre o poder das facções e a conivência do Estado.
O fracasso das UPPs consolidou o retorno das facções aos morros. A Favela do Moinho, em São Paulo, seguiu o mesmo roteiro: ocupada por forças de segurança e logo devolvida ao tráfico. Em todo o País, os exemplos se repetem. A presença do Estado, quando existe, é pontual e reativa — desaparece assim que a operação policial termina. Criada em 2004, a Força Nacional atua de forma episódica e reativa, mobilizada apenas em situações emergenciais, como crises prisionais, conflitos fundiários ou grandes eventos. Apesar de dispor de efetivo e estrutura, não integra uma política permanente de segurança pública, o que reforça a ausência de coordenação nacional no combate às facções.
Para o coronel Fábio Cajueiro, ex-comandante das UPPs dos complexos do Alemão, da Penha e de Manguinhos, o Estado perdeu parcialmente o monopólio da força em áreas dominadas por facções. “Há microsoberanias do narcotráfico no Rio, com cerca de 530 quilômetros quadrados sob controle armado e 3,7 milhões de pessoas submetidas a normas paraestatais”, explicou. “Essas facções formam um poder paralelo com densidade e capilaridade incompatíveis com o monopólio estatal pleno.” Cajueiro constatou que essas organizações não apenas controlam o território, mas também exercem funções típicas de governo, como impor regras, punir moradores e intermediar conflitos. “O tráfico dita a lei, regula o comércio, decide quem pode abrir ou fechar um negócio e até quem vive ou morre dentro da comunidade”, disse. “É um poder paralelo que atua de forma permanente, enquanto o Estado só aparece de maneira episódica ao realizar operações.”
No plano federal, a omissão se repetiu por anos. Durante o primeiro e o segundo governos Lula (2003–2010), o país não teve uma política nacional de combate às facções. A prioridade era o discurso de que programas de inclusão social seriam suficientes para reduzir a criminalidade. A estrutura de segurança permaneceu pulverizada e sem coordenação entre Estados e União. O mesmo se repetiu com a sucessora de Lula, Dilma Rousseff.
Somente no governo Michel Temer (2016–2018) o tema começou a ganhar contornos institucionais. Diante do avanço do crime e da crise nos presídios, Temer criou o Ministério da Segurança Pública, que passou a formular ações específicas para o setor. Sob o governo Bolsonaro (2019–2022), a pasta foi integrada ao Ministério da Justiça, com ênfase em cooperação federativa, inteligência policial e combate ao crime organizado. Nesse período, o então ministro Sergio Moro coordenou operações integradas entre a PF e forças estaduais e reforçou a estrutura de inteligência nacional voltada ao combate às facções. Foram avanços limitados, mas marcaram o primeiro esforço real de valorização da segurança pública em âmbito nacional.
Hoje, no terceiro mandato de Lula, o mesmo padrão do passado se repete. Enquanto o CV amplia o domínio territorial e o PCC expande sua rede de lavagem de dinheiro, o governo federal encara com complacência ao crime e hostilidade às forças de segurança. A reação encontra eco em parte da velha imprensa. Um áudio vazado na GloboNews, durante um comentário sobre a operação no Rio, revelou o desconforto de jornalistas ao discutir a alta aprovação popular e as críticas de Lula à ação policial. Na gravação, um deles pergunta: “Algum problema em falar sobre isso, Vivi?”, em referência à repercussão positiva da operação. O episódio reforçou a percepção de distanciamento entre o noticiário e a realidade das ruas.
O jornal O Estado de S. Paulo foi um dos poucos veículos da mídia tradicional que não compactuou com essa linha. Publicado em 3 de novembro, um editorial sintetizou a realidade do governo frente à bandidagem. “A sociologia de Lula romantiza o crime e transfere a culpa da violência à sociedade”, escreveu o jornal. “Ao tratar o criminoso como vítima da desigualdade, o governo ignora quem vive sitiado pelo medo.” A crítica se estende, implicitamente, a todos os governos que escolheram apenas a retórica no lugar da ação.
A contradição permanece. Lula deixou claro que o Planalto rejeita o uso da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) — dispositivo constitucional que autoriza o emprego temporário das Forças Armadas — em apoio às forças de segurança em áreas dominadas por facções, mas aplicou a mesma medida para a COP30, em Belém (PA), e destinou quase 8 mil militares para a capital. O impasse também se reflete no Judiciário.
Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). A decisão impôs restrições severas às operações policiais no Rio de Janeiro, exigindo autorização prévia do Ministério Público e limitando incursões a situações “excepcionais”. Na prática, a medida engessou a ação das forças de segurança em favelas controladas pelo tráfico, o que dificultou a reação do Estado em áreas dominadas por facções. Recentemente, o STF voltou a se debruçar sobre a ADPF e estabeleceu uma série de critérios para a ação da polícia, entre eles, o uso de câmeras de segurança.
O procurador de Justiça Marcelo Rocha Monteiro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, avaliou que as restrições criadas pelo STF excederam os limites constitucionais. “O maior obstáculo hoje não é a falta de tecnologia, mas as amarras jurídicas impostas à atuação policial”, afirma. “A ADPF 635 extrapolou a função judicial e criou restrições sem base legal. O Supremo substituiu a aplicação da lei por uma visão ideológica de segurança pública, o que resultou na paralisia das forças policiais.” Para Monteiro, o caso simboliza o ativismo judicial que se sobrepôs à autoridade dos governos estaduais. “O que era um processo judicial virou um instrumento político que, na prática, deslocou o comando da segurança do Rio de Janeiro para gabinetes em Brasília. O governador eleito perdeu espaço para um poder que não tem mandato nem competência executiva.”
Pauta prioritária
O Brasil chegou a um ponto em que a inércia se tornou rotina. A ausência de uma política nacional de segurança pública transformou o combate à criminalidade em uma responsabilidade fragmentada, disputada por governos que se alternam sem coordenação ou continuidade. As brechas legais e a morosidade judicial favorecem as facções, que hoje operam com mais disciplina e recursos do que o próprio poder público. A Lei de Execução Penal (LEP), em vigor desde 1984, tornou-se um dos principais gargalos do sistema. As regras de progressão de regime e as saídas temporárias permitem que criminosos perigosos deixem o presídio e reassumam posições de comando fora dele. Além disso, a falta de integração entre as polícias e o sucateamento das forças estaduais ampliam a vantagem do crime organizado.
A leniência legislativa segue o mesmo caminho. Agora senador, Moro (União Brasil-PR) criticou nas redes sociais o projeto de lei antifacção proposto por Lula, que reduz a pena mínima para integrantes de organizações criminosas de três anos para um ano e oito meses. “O governo Lula não consegue abandonar a ideia do criminoso coitadinho, mesmo com a escalada da violência e do crime organizado no país”, escreveu Moro.
O enfrentamento das facções exige continuidade de políticas de Estado, integração entre União e governos locais e reformas na LEP. Também depende de reforço de inteligência, monitoramento de fronteiras e cooperação internacional para conter as rotas do narcotráfico. Casos como o da Colômbia, que conseguiu enfraquecer os cartéis nos anos 1990 ao unir Forças Armadas, polícia e Judiciário sob um comando nacional de segurança, mostram que a vitória é possível.
O PCC, hoje com rede de advogados, políticos e empresários, ilustra a sofisticação das facções.Atiradores e Caçadores (CACs), mas o governo Lula insiste em restringir o armamento civil. Desde a operação, Bope e Polícia Civil mantêm presença intermitente nos complexos do Alemão e da Penha, mas o domínio ainda é instável.
O Brasil não pode recuar. A operação no Rio de Janeiro contra o CV é mais uma chance de avançar no enfrentamento das facções e evitar que o país se transforme em um narcoestado. A segurança pública tende a dominar o debate das eleições de 2026, ao lado da economia. Se as coisas permanecerem como estão, o resultado será para sempre o de um país que, ao longo de sucessivas administrações e intervenções judiciais, se especializou em debater a violência — e não em combatê-la. Nenhuma das armas apreendidas na operação do Rio era registrada em nome de Colecionadores,
Origem do PCC e do Comando Vermelho
Por Eliziário Goulart Rocha
Nos anos 1970, criminosos comuns e presos políticos dividiam espaço no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ). Dessa convivência, os detentos perceberam que, para sobreviver na cadeia aos outros detentos e ao “sistema” — era preciso se organizar. Também aprenderam métodos e táticas de guerrilha que poderiam ser úteis em suas atividades criminosas. Foi nesse ambiente que nasceu, por volta de 1979, a Falange Vermelha, grupo que dizia combater a violência nas prisões, mas logo transformou o discurso em crime organizado.
Na década seguinte, a Falange evoluiu para o Comando Vermelho Rogério Lemgruber (CVRL) — nome dado em homenagem a um de seus fundadores, morto em 1985.
A facção ficou conhecida simplesmente como Comando Vermelho (CV). O caixa era abastecido por uma espécie de “dízimo” cobrado de criminosos em liberdade. No início da década, o grupo migrou do roubo de bancos para o tráfico de drogas, aproveitando o Rio de Janeiro como centro de distribuição da cocaína vinda da Colômbia.
O CV consolidou o domínio de favelas e passou a impor suas próprias leis. Seu líder mais conhecido, Fernandinho Beira-Mar, foi preso pelo Exército colombiano em 2001 e deportado para o Brasil, onde cumpre pena até hoje. Outro chefe histórico é Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, atualmente detido na Penitenciária Federal de Catanduvas (PR).
Maior organização criminosa do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu em 31 de agosto de 1993, na Casa de Custódia de Taubaté (SP), no anexo conhecido como “Piranhão”. Seus fundadores haviam sido transferidos da capital paulista, daí o nome da facção.
Hoje presente em 23 Estados e no Distrito Federal, com cerca de 30 mil integrantes e faturamento estimado em até R$ 1 bilhão por ano, o PCC começou como um grupo de proteção mútua dentro das prisões. Durante um jogo de futebol, seus membros mataram um dos presos mais temidos, garantindo o domínio da cadeia.
Inspirado pelo massacre do Carandiru (1992), o grupo se apresentou como defensor dos presos e opositor da opressão do sistema. Assim como o CV, sustentava-se com o “dízimo” pago por criminosos em liberdade. Dois de seus líderes se tornaram símbolos da facção: Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra, morto em 2004, e Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, preso no Regime Disciplinar Diferenciado da Penitenciária Federal de Brasília desde 2019.
A maior demonstração de força do PCC ocorreu em maio de 2006, quando o governo paulista anunciou a transferência de Marcola e outros chefes para presídios de segurança máxima. Em reação, a facção promoveu rebeliões em 74 unidades prisionais e uma onda de ataques contra policiais e prédios públicos, que deixou centenas de mortos e feridos.
Em 2023, a Polícia Federal desarticulou um plano do PCC para assassinar autoridades, entre elas o senador Sergio Moro. Tamanha insolência confirma que, passadas três décadas, o poder de articulação do bando esbanja solidez dentro e fora das cadeias.
Cristyan Costa - Revista Oeste