Moraes, o próprio Estado a punir até os mais humildes dissidentes, insurge-se demasiada e desproporcionalmente contra homens muito mais fracos
D o céu, calhou de cair o cuspe covarde na corajosa careca. O fato aconteceu na última quinta-feira do mês de fevereiro do ano da desgraça de 2025 quando, debaixo do Cristo na cruz, reuniam-se os 12 — contando com o procurador-geral da República e apesar da presença virtual do ministro Alexandre de Moraes (tão remoto do seu lugar à mesa quanto Judas Iscariotes ao sair mais cedo da ceia Naquele Tempo) — para, celebrando a nova aliança que rompera com os mandamentos da velha lei brasileira, defenderem-se a si mesmos em vez de julgarem defesas alheias.
On-line, Moraes estava na mesma nuvem onde o jazido cuspe perderase faz quase ano e meio; parado ali desde o dia 14 de setembro de 2023, isto é, desde o momento em que foi lançado às alturas pelo próprio Moraes junto da humilhante reprimenda que dirigira a um advogado:
“É patético e medíocre que um advogado suba à Tribuna do STF com um discurso de ódio com um discurso para postar depois nas redes sociais, porque veio aqui para agredir o STF, talvez pretendendo ser vereador no ano que vem. […]. Hoje, [os estudantes de Direito presentes na sessão] tiveram uma aula do que o advogado constituído não deve fazer pra prejudicar o seu constituinte. Ou seja, esquecer o processo e querer fazer uma média com os ‘patriotas’. Realmente, é muito triste. E só não seria mais triste — ou é mais triste —, porque, ainda, confundiu O Príncipe, de Maquiavel, com O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que são obras que não têm absolutamente nada a ver. Mas, obviamente, quem não leu nem uma nem outra vai no Google e, às vezes, dá algum problema.”
Em que pesem as violações legais na descortesia do magistrado, bem como o estranhamento acerca da “aula do que o advogado constituído não deve fazer para prejudicar o seu constituinte” (isto é, o fato de Moraes ter querido ensinar ao advogado como prejudicar o seu cliente a partir do que ele “não deve fazer”), e, por fim, a despeito da sua orgulhosa e imperiosamente sacrossanta ignorância em francês — pronuncia-se /antoan/ para Antoine ou, para lusófonos como Aldo Rebelo, /antoíne/, pronúncia muito distante de seu junino /antoniê/ —, o cuspe em análise representa os predicados “patético e medíocre”.
Se, para o Peritus Peritorum tupiniquim, “é patético e medíocre” todo profissional do Direito que menciona, via Google e sem que as tenha lido diretamente, obras literárias, ou Moraes carece de razão e está equivocado nessa sentença ou, caso esteja completamente certo, ele é, segundo ele mesmo, “patético e medíocre”.
Eis o próprio cuspe a colidir com a sua testa sem fronteiras no último dia 27 de fevereiro: “Deixamos de ser colônia em 7 de setembro de 1822. E, com coragem, estamos construindo uma República independente e cada vez melhor. Uma República independente e democrática com a Constituição de 1988. E construindo com coragem, pois, como sempre lembrado pela nossa eminente ministra Cármen Lúcia, citando Guimarães Rosa, ‘o que a vida quer da gente é coragem’.”
Foram as palavras da sua danação. Ao se esquecer do processo que julgava para fazer uma média com os colegas ministros e vituperar-se em elogios de boca própria, o que já seria muito triste, Moraes confundiu não apenas paráfrase com citação, mas também trocou eu lírico por autor e recorreu a um trecho de Grande Sertão: Veredas para fundamentar um posicionamento pessoal diametralmente contrário ao sentido da obra de Guimarães Rosa. Obviamente, na esteira do que dissera em 14 de setembro de 2023, ele nunca leu o livro, foi ao Google e, agora, lascou-se.
Cumpre destacar que Moraes é, conforme sua própria afirmação, muito, mas muito, muito mais “patético e medíocre” que o advogado repreendido, pois, se o advogado tão somente confundira-se, uma única vez, com os títulos semelhantes de duas obras mundialmente famosas, Moraes, por seu turno, sequer confunde: ele erra; erra feio.
Em primeiro lugar, tomando como base as 604 páginas do único romance de Guimarães Rosa na 19ª edição de Grande Sertão: Veredas, reimpresso pela editora Nova Fronteira em 2001, não se encontra, ipsis litteris, em lugar nenhum do texto, a frase “o que a vida quer da gente é coragem”. A citação de Moraes é fake news, é pura e daninha desinformação, pois uma citação consiste na reprodução literal e fiel das palavras do autor mencionado. Logo, não poderia estar “citando”.
Segundo erro, mesmo que citação houvesse, é inadmissível que um professor tão titulado não saiba distinguir o eu lírico, personagem fictício que narra o romance em primeira pessoa, do autor da obra literária, que pode em nada comungar das suas convicções. Ora, a falsa citação de Moraes que ele falsamente atribui a Guimarães Rosa (autor) se insere no seguinte trecho da narrativa do ex-jagunço Riobaldo (personagem eu lírico) à página 334 da mencionada edição:
“A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso — o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
Nesse sentido, teria feito o ministro uma paráfrase em vez de uma citação? Não. Moraes nem sequer poderia estar “parafraseando”, já que a paráfrase implica não apenas a reescrita, sem copiar a linguagem exata do autor, de um conteúdo com palavras próprias, mas também a preservação do sentido original, uma vez que deve demonstrar a compreensão da essência da obra.
O terceiro erro de Moraes, portanto, está no desconhecimento, incompreensão ou desvirtuamento do real sentido da palavra “coragem” no contexto literário dentro do qual ela é inserida. O real sentido exsurge na mesma página 334, quando Riobaldo revela compartilhar convicções com Zé Bebelo: “Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente”.
Tudo o que se pode saber sobre Zé Bebelo encontra-se resumido nas páginas 294 e 295 do romance nas palavras do próprio personagem:
“Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra… Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. […] Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados… Coisa que eu queria era proclamar outro governo […]. Não obedeço ordens de chefes políticos. […] … Agora perdi. Estou preso. […]. Julgamento — isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para que? Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem que não tenho medo… Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço. Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte.”
Trocando em miúdos, a ideia de “coragem” — deturpada como a Constituição de 1988 na falsa e insidiosa citação de Moraes —, em Grande Sertão, está na confissão de fé daquele que se insurge contra homens fortes e nunca contra mais fracos (covardia), que briga de igual para igual e sem trapaças, que não gosta do governo e das autoridades que somente tiram do povo e, por isso, as desobedece mesmo estando em desvantagem. Coragem é não ter medo de ser julgado
Por óbvio, Moraes, o julgador universal, jamais julgado, nunca poderia parafrasear tal “coragem”. Moraes, o paladino das instituições, é, na verdade, inimigo da coragem como virtude nos sertões. Moraes, o excepcional, trapaceia. Moraes, o próprio Estado a punir até os mais humildes dissidentes, insurge-se demasiada e desproporcionalmente contra homens muito mais fracos. Quanto mais detém o monopólio da mais severo é Moraes, de maneira que é possível citar (apropriadamente) o velho refrão de Bezerra da Silva:
“Você, com revólver na mão, é um bicho feroz; feroz. Sem ele, anda rebolando e até muda de voz”. Disso se extrai o erro de número quatro: chamar de coragem a sua patente covardia. Poderíamos recorrer ao Górgias ou Protágoras, ambos de Platão, para demonstrar que coragem (virtude) e covardia (vício) são inconfundíveis, mas dissuadir um covarde do seu delírio de coragem é tarefa tão inglória quanto ensinar etiqueta a uma tarambola. De duas, uma: ou Moraes é, em seus próprios termos, patético e medíocre ou pretende esvaziar a palavra “coragem” para rotular a sua covardia da mesma forma que esvaziou “democracia” para travestir o seu fascismo — o que também é, a qualquer plateia alfabetizada, patético e medíocre. Ou ambas?
Tiago Pavinatto - Revista Oeste