sábado, 22 de fevereiro de 2025

'Um hino à liberdade', por Ubiratan Jorge Iorio

O vice-presidente norte-americano foi bem claro ao dizer à elite globalista europeia que não adianta papaguear sobre valores

O vice-presidente dos EUA, JD Vance, faz um discurso na Conferência de Segurança de Munique (MSC) em Munique, Alemanha, em 14 de fevereiro de 2025 - Foto: Reuters/Leah Millis

U m movimento político distinto começou a ganhar força na Europa, especialmente depois de o empresário Elon Musk conclamar o apoio dos europeus. É muito semelhante ao MAGA (Make America Great Again), que levou o presidente Donald Trump à vitória nos Estados Unidos. Trata-se do MEGA (Make Europe Great Again), que pretende fazer a Europa voltar a ser a velha e boa Europa de sempre. O objetivo é lutar pela soberania dos países, pela segurança, pelo crescimento da economia e pela identidade cultural, social e religiosa do Velho Continente. Esses valores vinham sendo atacados pela invasão que os “progressistas” desencadearam nos costumes, até então quase sem resistência dos conservadores. Mas o jogo mudou. Desde a sua formação, o MEGA se insurgiu contra o globalismo que infestou a União Europeia, contra o excesso de regulamentações, contra a obsessão das “mudanças climáticas” e, de resto, contra a centralização, o patrulhamento politicamente correto, a abertura indiscriminada de fronteiras e os demais componentes da agenda woke progressista. 

As patotas que se acham donas da verdade e do mundo — globalistas arrogantes, bilionários pedantes, ONGs petulantes, governos mendicantes e jornalistas militantes — estão em polvorosa, sob uma chuva de ameaças. É uma atrás da outra: primeiro, Trump ganha a eleição. Logo em seguida, vem Musk e revela as barbaridades cometidas pela Usaid. Depois, vem o Homem Laranja e diz que vai conversar com Putin para colocar um fim à guerra da Ucrânia sem dar a mínima para Zelensky e a Otan. E, logo em seguida, para piorar tudo, o vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, aparece e faz um discurso simplesmente épico — e, claro, tremendamente tétrico para a turma progressista — na Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha. Coincidentemente, o discurso ocorreu um dia depois de mais um atentado terrorista naquela cidade, desta vez com um carro avançando sobre uma multidão e deixando 28 pessoas feridas. 


Trump anunciou o fechamento da Usaid na terça-feira, 4 | Foto: Reprodução/Redes sociais


Vance simplesmente entrou no recinto das hienas e apontou o dedo em seus focinhos. Ele disse, entre outras verdades, que atualmente a maior ameaça à Europa não vem da China nem da Rússia. Vem da própria Europa, que está abandonando progressivamente os seus valores fundamentais, entre os quais a liberdade plena de expressão. O discurso de Vance, em tom calmo, porém firme e extremamente corajoso, foi um estrondoso tapa na cara da elite de Bruxelas. Trata-se de um recado memorável, uma demarcação de terreno bem precisa e um desfile de fatos que tinham de ser mencionados e destacados. Mas Vance foi além: 

“Por anos, nos disseram que tudo que financiamos e apoiamos é em nome de nossos valores democráticos compartilhados. Tudo, desde a nossa política na Ucrânia até a censura digital, é anunciado como uma defesa da democracia. Mas, quando vemos tribunais europeus cancelando eleições e altos funcionários ameaçando cancelar outras, devemos nos perguntar se estamos nos mantendo em um padrão apropriadamente alto”.

Ou seja, foi bastante claro ao dizer à elite globalista — que de uma hora para a outra se viu órfã de Biden e dos dólares da Usaid — que de nada adianta papaguear incessantemente sobre valores democráticos, pois o que realmente importa é viver esses valores na prática. Os líderes europeus ali presentes tiveram também de ouvir que, se a democracia norte-americana conseguiu suportar dez anos de reclamações de Greta Thunberg, os europeus podem muito bem aguentar alguns meses de Elon Musk. E, ainda, que nenhuma democracia, seja norteamericana ou europeia, pode sobreviver à pretensão da elite globalista de afirmar “a milhões de eleitores que seus pensamentos e suas preocupações, suas aspirações e seus pedidos de alívio são inválidos ou indignos de serem considerados”. É simplesmente impossível, porque a voz do povo é importante e não pode ser descartada sob nenhum pretexto. Em suma, o discurso foi um hino à liberdade. 

Como era de se esperar, as reações dos globalistas foram imediatas. Antes mesmo da palestra de Vance, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, já alertara para o “perigo” que as políticas de Trump representam para a democracia global, já que são baseadas em uma visão de mundo muito diferente da seguida pelos seus companheiros. A estoniana Kaja Kallas, que chefia os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança da União Europeia, disse que, ao invés de comprar briga com a Europa, o governo norte-americano deveria preocupar-se com “questões mais urgentes, como a guerra na Ucrânia”. Urgentes por que e para quem?


Elon Musk tem aumentado sua influência na Casa Branca | Foto: Reprodução/X

O chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, cuja popularidade anda em baixa, logo no dia seguinte dirigiu duras críticas ao discurso de Vance. Disse que o seu governo não aceitará que estrangeiros interfiram na democracia e no processo de formação de opinião democrática alemão. E esperneou: “Como nossa democracia prosseguirá é algo que nós decidiremos por nós mesmos”. Scholz ainda rebateu a crítica de Vance sobre o consenso entre os principais partidos da Alemanha, que visa a isolar a direita. “Estamos absolutamente certos de que a extrema direita deve ficar de fora do processo de tomada de decisão política e que não haverá cooperação com eles”, vociferou o chanceler alemão. Como um genuíno “progressista”, traz a palavra democracia sempre na boca para brandi-la como suposto argumento em qualquer eventualidade, mas dificilmente a coaduna com as suas ações, ao se lixar para a opinião da maioria quando esta diverge da sua. Poucas coisas são tão previsíveis como os recursos supostamente argumentativos de esquerdistas. São campeões de falácias. 

Ainda no dia anterior, o ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, acusou Vance de distorcer a realidade em sua interpretação sobre os valores democráticos europeus. “O vice-presidente dos Estados Unidos questionou a democracia em toda a Europa”, constatou. 

“E, se o entendi corretamente, ele está comparando as condições em partes da Europa com as de regiões autoritárias. Isso não é aceitável. Essa não é a Europa e não é a democracia na qual vivo e na qual estou fazendo campanha atualmente.” 

Ora, quer dizer então que democrático é só aquilo que ele e a sua turma dizem que é democrático? E, sendo assim, se eles afirmam que é democrático alijar a direita do processo eleitoral, então o assunto está encerrado? No Reino Unido, o porta-voz de Relações Exteriores do Partido Liberal Democrata, Calum Miller, também criticou Vance. Ele afirmou que o seu país não aceitará sermões sobre liberdades políticas do acólito de um presidente que supostamente tentou minar a democracia norteamericana. Esquerdistas são mesmo cansativos. 

Vance dissera apenas que no Reino Unido o retrocesso nos direitos de consciência pôs as liberdades básicas dos britânicos religiosos, em particular, sujeitas a ataques. É uma afirmativa absolutamente verdadeira, haja vista a inacreditável condenação de um cidadão à prisão simplesmente porque estava rezando silenciosamente perto de uma clínica de aborto. Como então Trump quis minar a democracia? 

Trata-se do mesmo tipo de narrativa que acusa, por exemplo, Bolsonaro de ter ameaçado a nossa democracia durante o seu mandato. Essa gente não tem nenhuma criatividade e seus argumentos têm a solidez dos castelos de cartas.


O chanceler da Alemanha, Olaf Scholz | Foto: Divulgação/Parlamento Europeu (EP)

Ao saber que Trump iniciaria negociações com a Rússia sobre a guerra na Ucrânia sem levar em conta as preocupações da turma de Bruxelas, o presidente francês, Emmanuel Macron, que anda brigando com a popularidade na França e que se julga o “convocador-mor” da Europa, conclamou os líderes da região para uma reunião em Paris, no início desta semana, para deliberar sobre algo como “uma defesa contra a Rússia”. Como era de se antever, o resultado da reunião pode ser resumido assim: muitas perguntas e nenhuma resposta concreta sobre o que a Europa fará. 

A verdade é que, com a vitória de Trump e sua demonstração imediata de que está mesmo disposto a cumprir as promessas que fez ao longo da campanha, a guerra em nível mundial entre globalistas e defensores da soberania nacional entrou em uma nova fase — ao que tudo indica, decisiva. O globalismo, enfim, está acuado e ameaçado de derrota. Com efeito, depois da saída de cena de Biden e da rejeição veemente pelos eleitores às políticas esquerdistas e globalistas do Partido Democrata, houve uma alteração decisiva no campo de batalha: antes, Europa e Estados Unidos alinhavam-se no front globalista, tendo a Rússia como principal oponente e a China, como sempre, tendendo mais para o pragmatismo. 

Agora, com a guinada promovida por Trump, a Europa ficou isolada e, além de perder recursos provenientes dos Estados Unidos, vem enfrentando problemas políticos em diversos países. Essa crise tem origem na insatisfação das populações com as medidas restritivas da liberdade de expressão, com as políticas migratórias de portas abertas, com as pautas da agenda woke, com a repressão aos valores do Ocidente e com a paranoia ambientalista e com os problemas que ela acarreta para a economia. 

Para o europeu, há problemas bem mais relevantes do que o surrado discurso globalista — e essa percepção vem desencadeando um crescimento das ideias conservadoras no continente, que parece estar acordando do pesadelo de destruição dos valores ocidentais. Trump veio reforçar esse sentimento, o que explica o fortalecimento do movimento MEGA, que teve suas origens no ano passado, no bojo dos protestos de agricultores contra as barbaridades regulatórias emanadas da União Europeia e agora cresce vertiginosamente. Em breve, a velha imprensa não poderá mais escondê-lo.



Emmanuel Macron, presidente da França | Foto: Divulgação 

Trata-se de uma guerra de princípios e valores. O que está em jogo, no fundo, é a liberdade dos cidadãos. Esse valor fundamental está sendo surrupiado pelo autoritarismo dos “donos do mundo”, juntamente com os direitos à vida e à propriedade. É, portanto, uma resposta natural da civilização ocidental aos ataques que vêm sendo desferidos há décadas contra os seus fundamentos mais caros. Cedo ou tarde, os cidadãos europeus teriam mesmo que reagir aos devaneios de engenharia social dos globalistas. Mas é evidente que essa reação está sendo impulsionada pelo “novo xerife de Washington”, a que se referiu Vance em seu discurso, ao acrescentar que se trata de um xerife que não só admite que se discorde de suas opiniões, como faz o possível para que todos exerçam o direito de discordar delas publicamente. 

Há várias lições a serem extraídas desses acontecimentos e arriscome a afirmar que a principal talvez seja a de que não se pode falar em democracia e, genericamente, em Estado Democrático de Direito, ao mesmo tempo em que se censura e pune os que pensam de modo diferente. Calar os críticos, ou mandá-los para a cadeia por terem vencido uma eleição (como na Romênia); prendê-los por terem rezado na rua ou em casa; persegui-los por terem, como jornalistas, relatado notícias desagradáveis para quem está no poder; empurrar goela abaixo de cidadãos as pautas woke e o ambientalismo radical, sem direito de discordância; e emudecer toda e qualquer voz divergente… Fazer tudo isso, e posar como defensor da democracia, é de uma hipocrisia gritante.

Como disse Vance, em Munique, “acreditar na democracia é entender que cada um dos nossos cidadãos tem sabedoria e tem uma voz. E, se nos recusarmos a ouvir essa voz, mesmo nossas lutas mais bem-sucedidas garantirão muito pouco”. Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. Instagram: @ubiratanjorgeiorio Rede X: @biraiorio  

Revista Oeste