sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

'Censura Oficial', Cristyan Costa

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock 


O julgamento da regulação das redes no STF caminha para cercear ainda mais a liberdade de expressão no Brasil 


“C cerco contra a liberdade de expressão depois de enquadrar big techs”, noticiou um jornal. “Restrições às redes sociais no Irã prejudicam trabalho e comunicação da população”, alertou uma agência de notícias. Possivelmente em breve, o Brasil estará em manchetes semelhantes. Isso porque o Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para regular as redes no país ao julgar três processos polêmicos. O caso foi pautado pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que justificou a decisão em virtude da “demora” do Parlamento em tratar desse tema. 

“Aguardamos um período bem razoável”, disse. As principais justificativas para o STF discutir a questão são o 8 de janeiro e os supostos “ataques terroristas” que a Corte estaria sofrendo há mais de cinco anos. Durante as duas primeiras sessões que ocorreram no STF para debater a questão, ministros reiteraram a importância de coibir a “tribalização” da sociedade e a necessidade de mitigar “discursos de ódio oriundos da extrema direita”. O fato mais recente usado como exemplo pelos magistrados é o suicida de Brasília. De acordo com os juízes do STF, o chaveiro Francisco Wanderley Luiz “atentou contra a democracia brasileira e o STF” por omissão dos gigantes de tecnologia. 


Ilustração: Shutterstock 

Regulação das redes e os alicerces do autoritarismo

Resumidamente, o tribunal analisa ações que interpelam o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Esse dispositivo determina que as plataformas só podem ser responsabilizadas por conteúdos postados por usuários caso descumpram uma ordem judicial de remoção. O tribunal também tem sinalizado que vai criar regras para o controle do discurso nas redes sociais, com o objetivo de obrigar que as plataformas removam proativamente alguns tipos de conteúdo que os próprios ministros deverão especificar nos próximos dias. Ainda há bastante incerteza. 

A norma consta na lei aprovada em 2014 com a finalidade de garantir a liberdade de expressão e evitar a censura na internet. A ideia é impedir que alguém que se sinta ofendido por alguma publicação possa pressionar a rede social ou o site a retirar conteúdos a partir de um pedido direto à plataforma. Dessa forma, o Congresso Nacional escolheu delegar o julgamento ao Poder Judiciário, que, ouvindo a defesa de quem postou aquele conteúdo, verifica se ele deve ser preservado, em respeito à liberdade de expressão do emissor, ou se sua mensagem configura um crime (como injúria, difamação ou calúnia) e, por isso, deve ser removido, em respeito à honra de quem se sentiu lesado. 

A lei estabeleceu duas exceções, no sentido de obrigar as plataformas a removerem conteúdo a partir de uma notificação direta das partes afetadas, sem necessidade de decisão judicial: em caso de divulgação de cenas de nudez ou sexo sem autorização da pessoa envolvida; ou em caso de violação de direitos autorais. 

Depois de dez anos, o que se discute agora é a ampliar essas hipóteses. Atualmente, parte do Judiciário, do mundo acadêmico e do governo Lula 3 passaram a considerar que as big techs também deveriam remover, a partir de provocação direta, ofensas que configurem crimes de discriminação e racismo, pornografia e abuso infantil. No entanto, o tribunal deve ir além e mandar remover posts ainda mais subjetivos, como de “discurso de ódio”, “desinformação” e “ataque às instituições”.

Impactos não calculados Entre outros pontos levantados sobre os efeitos da regulação está o das postagens críticas e legítimas a respeito de autoridades, como ministros do STF. Com as big techs na parede, é possível que determinados posts sejam propositalmente interpretados como crimes contra o “Estado Democrático de Direito” e, com isso, acabem censurados. Além disso, pelo que se discute agora, a própria rede social poderá sofrer algum tipo de punição, como multas milionárias, se não remover a publicação considerada ofensiva. 

Por isso, as próprias big techs já estudam criar departamentos voltados unicamente para monitorar os conteúdos potencialmente sensíveis e prejudiciais a ela. Nessa hipótese, o internauta receberá um aviso segundo o qual sua publicação acabou sendo excluída, sem muitas justificativas que o ajudem a compreender o que houve. “Entendo que uma possível regulação das redes vai gerar também a censura prévia”, constatou o advogado André Zonaro, do escritório Pinheiro Neto. 

“Não só as plataformas, mas todos que as usam vão ficar reticentes sobre o conteúdo que é publicado. Além disso, derrubar o artigo 19 do Marco é acabar com a estabilidade que ele trouxe à internet. Em breve, vamos ter não só ações judiciais no sentido de derrubar posts, mas também uma enxurrada de processos para restabelecer conteúdos legítimos que acabaram censurados por questões meramente subjetivas.” 

A preocupação é a mesma da Wikipédia. Durante uma sustentação oral no tribunal, o advogado Tiago Cortez disse que a direção da enciclopédia virtual, a Wikimedia Foundation, teria de interferir diretamente na produção de conteúdo, hoje sob responsabilidade de um grupo de editores voluntários, que também analisam diariamente novas páginas criadas por qualquer pessoa. A Wikimedia precisaria advertir seus colaboradores sobre o que se deve ou não publicar, contrariando seu modelo de negócios. Cortez advertiu ainda para o aumento da quantidade de ações judiciais contra a companhia, que, em dez anos, teve de responder a apenas dez processos, cuja maioria venceu. 

Outro modelo de negócios afetado seria o do Mercado Livre.Com a queda do artigo 19, o marketplace seria responsabilizado por veicular anúncios de terceiros apontados por qualquer pessoa como de caráter falacioso, ainda que esse material todo não contenha nada de errado.

Relator de um dos casos em julgamento, o ministro Luiz Fux revelou que o STF não tem noção do impacto real da regulação das redes e reforçou a tese segundo a qual o julgamento é totalmente político, cujo objetivo é unicamente amordaçar vozes dissonantes do establishment e controlar o que se pode ou não dizer. “Esse debate está adquirindo a amplitude que não era imaginada”, disse. “Estamos tendo uma sustentação que trata de plataformas mercadológicas, e que não estaria dentro, exatamente, da nossa temática, mas que vai acabar atingindo mais gente. Confesso que não tinha passado pela minha cabeça que uma declaração qualquer poderia atingir tantas plataformas dessa maneira.” 


Ministros do STF, como Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, já defenderam publicamente a regulação das redes sociais | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil 

Impactos não calculados 

Entre outros pontos levantados sobre os efeitos da regulação está o das postagens críticas e legítimas a respeito de autoridades, como ministros do STF. Com as big techs na parede, é possível que determinados posts sejam propositalmente interpretados como crimes contra o “Estado Democrático de Direito” e, com isso, acabem censurados. Além disso, pelo que se discute agora, a própria rede social poderá sofrer algum tipo de punição, como multas milionárias, se não remover a publicação considerada ofensiva. 

Por isso, as próprias big techs já estudam criar departamentos voltados unicamente para monitorar os conteúdos potencialmente sensíveis e prejudiciais a ela. Nessa hipótese, o internauta receberá um aviso segundo o qual sua publicação acabou sendo excluída, sem muitas justificativas que o ajudem a compreender o que houve. “Entendo que uma possível regulação das redes vai gerar também a censura prévia”, constatou o advogado André Zonaro, do escritório Pinheiro Neto. 

“Não só as plataformas, mas todos que as usam vão ficar reticentes sobre o conteúdo que é publicado. Além disso, derrubar o artigo 19 do Marco é acabar com a estabilidade que ele trouxe à internet. Em breve, vamos ter não só ações judiciais no sentido de derrubar posts, mas também uma enxurrada de processos para restabelecer conteúdos legítimos que acabaram censurados por questões meramente subjetivas.”  


Ministros do STF, como Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, já defenderam publicamente a regulação das redes sociais | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Liberdade de expressão em xeque 

Se o STF regular as redes, o Brasil poderá se tornar o primeiro país em que o Judiciário aprovou, por si próprio, as regras para o controle do pensamento nas plataformas. Nem mesmo países autoritários, como a Venezuela e a China, limitaram a liberdade de expressão por meio desse Poder — a censura se deu nos Parlamentos, apesar de controlados pelo regime em vigor. Embora o julgamento no Brasil ainda esteja em andamento, tudo aponta para o advento da censura já em 2025. 

Uma das poucas saídas para a volta da normalidade democrática será deputados e senadores aprovarem uma nova lei que possa restabelecer aquilo que os ministros do STF vierem a derrubar nos próximos meses. O advogado Eduardo de Mendonça, que representa o Google, assinalou que “o cerceamento à liberdade de expressão sempre começa com bons propósitos, mas ele, invariavelmente, degenera”. “A censura é comentário aristocrática”, constatou. 

“Ela parte da premissa de que as pessoas não são capazes de olhar por si, e que precisam de alguém que diga a elas algo que não podem assimilar. Se a proteção da democracia exigir que se crie todo o tipo de incentivo para remover conteúdos controversos, no final, talvez não sobre exatamente a democracia liberal como nós a conhecemos.” 

Ilustração: Paul Craft/Shutterstock

Cristyan Costa, Revista Oeste