O Jornalismo chora ao ver no que se transformou o jornalismo.| Foto: Inteligência Artifical
Já estou deitado, à espera de um sono capaz de calar meus pensamentos intranquilos. Amanhã, depois de um mês de férias, volto a trabalhar. Sobre o que escreverei? Meus dilemas, porém, são interrompidos por três batidas na janela do quarto. O que é bem estranho, uma vez que moro no sétimo andar. Sonolento e irritado, e tomando todo cuidado do mundo para não acordar minha mulher, me levanto, abro a janela e me deparo com ele, o Jornalismo.
Ou com o que sobrou dele depois das eleições de 2022, quando Jornalismo ganhou todas as manchetes ao se lançar no abismo da militância e do ativismo – e quase morreu. Mas essa é outra história e para esta crônica funcionar vou precisar que você feche os olhinhos e imagine o Jornalismo todo esbaforido depois de escalar, pelo lado de fora!, sete andares para vir falar comigo. Por que comigo, meu Deus?
– Porque você está voltando das férias e não sabe o que escrever, ora bolas! – diz ele, como se lesse meus pensamentos escritos em itálico. E, antes que me esqueça: sim, o Jornalismo de que falo é das antigas, do tipo que ainda fala “ora bolas” e “bacana” e “criado-mudo” e até “denegrir”. Um Jornalismo bem-humorado e sem compromisso com as pautas identitárias. Um Jornalismo que fiscaliza o poder. Um jornalismo preocupado com o leitor, ouvinte ou espectador. Um Jornalismo verdadeiramente livre.
(O que me leva a suspeitar do que aconteceu no dia em que ele supostamente se lançou no abismo da militância e do ativismo. Algo me diz que o Jornalismo pode ter sido vítima de uma tentativa de celsodanielização. Será?).
Em que posso ajudá-lo?, pergunto ao Jornalismo, e só agora me ocorre que deveria ter dado a mão, ajudado a entrar pela janela, oferecido café, essas coisas. Que mal-educado sou! Tomara que minha mãe não esteja me lendo neste momento. Mas como é que eu ia saber que o Jornalismo que eu tinha diante de mim era esse com jota maiúsculo, e não aquela versão apequenadíssima que, diante de todo mundo, todo mundo mesmo, se jogou no abismo da militancia do ativismo em 2022?
– Preciso que você use seu espaço na Gazeta do Povo para dizer aos seus leitores que eu, o Jornalismo, estou envergonhado. E peço desculpas – diz ele.
– Preciso que você use seu espaço na Gazeta do Povo para dizer aos seus leitores que eu, o Jornalismo, estou envergonhado. E peço desculpas – diz ele. Sei muito bem ao que Jornalismo se refere. Mas preste atenção que agora vou fingir que passei mais trinta dias alheio ao noticiário: do que é que você tá falando, cara? Vergonha de quê? O que foi que meus colegas aprontaram desta vez? Como era de se prever, diante da possibilidade de expressar a verdade o Jornalismo se empolga:
– Não tá sabendo? Tava fora do Brasil, mermão? – pergunta ele. Também não entendi o porquê do sotaque carioca aqui, mas deixa quieto. – Tô falando do jornalismo que se transformou em assessoria de imprensa do regime petista. Dos jornalistas-entre-aspas que tratam a operação de busca e apreensão de dois deputados federais, um deles líder da oposição, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Até riem e debocham da ilegalidade usada contra os adversários ideológicos. Tô falando daquela moça... É, é, aquela loirinha que está sempre com o celular na mão e fala como se estivesse tendo uma síncope.
A Daniela?, penso, mas não falo. Só penso.
– Ela mesma! Então. Ao falar da operação de busca e apreensão de que foi alvo um dos filhos do ex-presidente, a moça, sempre naquele tom de voz muitas oitavas acima da sanidade, primeiro disse que Bolsonaro tinha fugido e depois que Carlos Bolsonaro estava com um computador da Abin em sua casa. Duas informações logo desmentidas. Duas mentiras que nenhum jornalista digno do diploma inútil propagaria sem ter certeza. E é por essas e outras, muitas outras, que preciso pedir desculpas.
Então pede aí, ué. A casa é sua. Fique à vontade. Só não vale usar mesóclise nem caluniar, difamar ou injuriar, digo e logo percebo. Ah, mas o que é que estou dizendo! O Jornalismo conhece as regras do jogo honesto.
– Obrigado. Muito gentil da sua parte. Pois então, caro leitor deste espaço. Meu nome é Jornalismo. Você deve se lembrar de mim em episódios marcantes da política brasileira, como as receitas de bolo e trechos dos Lusíadas na capa do Estadão e a entrevista de Pedro Collor à Veja. Pois bem. De uns tempos para cá, pessoas sem escrúpulos têm me usado como porta-voz do regime petista. Essas pessoas usam o poder do microfone para justificar as trapalhadas de Lula, para defender barbeiragens econômicas de Haddad, para celebrar a perseguição de adversários ideológicos e para exaltar a atuação vexatória dos ministros do STF.
Por isso, peço desculpas. Peço desculpas pela militância, pelo ativismo, pela desonestidade intelectual, pelo deboche, pelo cinismo e até pela sanha persecutória. Nunca imaginei que veria jornalistas pedindo censura, mas... É o que temos hoje. E, se não for demais, peço também que vocês jamais tomem a parte pelo todo. Isto é, jamais confundam esse jornalismo com jota minúsculo que andam fazendo por aí com o Jornalismo com jota maiúsculo que fui um dia – e cujo legado me esforço para defender...
Melhor parar por aqui. Tá ficando cafona isso aí, hein, Jornalismo?, digo. Ele dá de ombros e, com esse gesto descuidado de desprezo por meu apurado senso estético, se solta da janela e cai sete andares. Tadinho. Lá de baixo, porém, um Jornalismo todo quebrado e moribundo ainda arranja forças para gritar que... Paulo, acorda! Você tá roncando. Demais! Assim não consigo dormir. Você precisa ir ao médico ver isso, hein! Assim você vai acabar morrendo.
* * *
Abro a porta bem devagar. As dobradiças rangem uma melodia fantasmagórica. Está tudo escuro e... isso é cheiro de mofo, hein? Tateando, encontro o interruptor e acendo a luz. A sala está vazia. Vazia demais. Do teto, pendem intrincadas teias de aranha. Nos cantos, caixas guardam um mês de ideias descartadas, títulos jamais usados, argumentos que não foram desenvolvidos. Entro e vou correndo abrir as janelas para arejar o ambiente. Voltei das férias!
Paulo Polzonoff Jr., Gazeta do Povo