sexta-feira, 19 de maio de 2023

‘Missão dada, missão cumprida’, por Ana Paula Henkel

Ministro Benedito Gonçalves | Foto: José Alberto/STJ

O cenário de absoluta promiscuidade jurídica no Brasil deixa bem claro que Deltan não foi apenas cassado. Ele foi também caçado


Aditadura do Judiciário, agora claramente estabelecida no Brasil, tem a sua mais nova vítima: o deputado Deltan Dallagnol.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou na noite de terça-feira, 16 de maio, o mandato do ex-coordenador da Lava Jato em Curitiba que se elegeu deputado federal em 2022 pelo Estado do Paraná com mais de 344 mil votos. O julgamento que cassou Dallagnol teve como relator o ministro Benedito Gonçalves, sim, aquele dos tapinhas na cara.

O relator companheiro de Lula foi o único a votar de facto. A leitura do voto, que durou cerca de 40 minutos e que teve decisão proferida em escandalosos 66 segundos, retratou a tese de que Dallagnol tentou burlar a Justiça ao deixar o Ministério Público durante o período em que, segundo o magistrado, respondia a processos administrativos que poderiam resultar em condenação, transformando-o em “ficha suja”. O ministro que recebe tapinhas na cara (de pau) em público de ex-presidiário afirmou que o que Deltan fez foi apenas uma “manobra para driblar a inelegibilidade”.

O cenário de absoluta promiscuidade jurídica no Brasil deixa bem claro que Deltan não foi apenas cassado. Ele foi também caçado. A sanha autoritária que tomou conta do Brasil há alguns anos, e que firmou passos rápidos desde 1º de janeiro de 2023 com a posse do corrupto favorito do STF, deixou claro nesta semana que cassará — e caçará — todos aqueles que são e foram contra o sistema. A tal ditadura que disseram que Jair Bolsonaro implementaria no Brasil, com censura e perseguições políticas, não aconteceu durante os quatro anos de seu governo, mas finalmente chegou. 

O processo de caçação — sim, com “ç” — de Deltan se deu, como de praxe hoje no Brasil, de maneira inconstitucional, desrespeitando mais uma vez a autonomia e independência dos Poderes da República. Os ativistas de plantão, que aplaudem o atropelo das leis para a derrubada de oponentes políticos, clamam que o desfecho do julgamento do TSE foi correto, uma vez que Deltan Dallagnol ao se exonerar do cargo de procurador teria processos disciplinares pendentes no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o que o tornaria inelegível. No entanto, quando Deltan saiu do Ministério Público, a certidão do CNMP mostra não haver processos disciplinares e, por isso, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná autorizou sua candidatura em 2022.


Deltan Dallagnol | Foto: Wikimedia Commons

A tese que consta no recurso que cassou Deltan alega que a exoneração “antes da instauração de um possível processo disciplinar (PAD)” atrairia inelegibilidade. No entanto, não cabe à Justiça Eleitoral avançar para examinar o conteúdo de processos preliminares e realizar um juízo se eles resultariam ou não em uma hipotética e não sabida punição. Se essa for a nova regra, basta que alguém formule inúmeros pedidos de providências antes de um juiz ou membro do MP pedir exoneração para alegar a inelegibilidade depois. O advogado Fabricio Rebelo, entrevistado algumas vezes no Oeste Sem Filtro, simplificou muito bem todo o cenário: “Imagine ter de explicar juridicamente como um procurador SEM processo disciplinar aberto não pode ser candidato, pela possibilidade de que algum venha a ser instaurado, enquanto políticos tradicionais que efetivamente respondem a inúmeros processos ficam tranquilos. Traduzindo a cassação de Deltan Dallagnol: é como alguém começar a cumprir a pena ainda na fase do inquérito policial, antes de sequer se saber se houve mesmo um crime ou muito menos existir uma ação penal. É o ápice de um estado policialesco, regido pelo direito penal do inimigo”.

Saímos de uma aura de justiça da “República de Curitiba” para a “República Soviética do Brasil”

Ou seja, Dallagnol se tornou o primeiro parlamentar cassado por uma suposição, por um possível crime no futuro. A barbaridade cometida pelo TSE nesta semana vai muito além de uma mera interpretação errônea de uma lei — o Supremo Tribunal Eleitoral no país supôs que Deltan pediu exoneração do Ministério Público para escapar “talvez quem sabe um dia no futuro” de algum processo administrativo disciplinar que poderia ser aberto, instaurado e julgado. O precedente do TSE é gravíssimo e acarreta perigo sistêmico, uma vez que a interpretação extensiva do tribunal poderá ser aplicada a outros casos por juízes eleitorais em todo o Brasil, inclusive para outras hipóteses de inelegibilidade previstas na Lei da Ficha Limpa.

O que o TSE fez nesta semana foi mais um evento grave desse insano regime totalitário ao qual foi submetido o Brasil, uma anulação forçosa e inconstitucional da vontade popular: 344.917 pessoas foram caladas em uma canetada vergonhosa, em mais um abjeto caso de perseguição política de quem claramente discorda do sistema podre que está implodindo a República e transformando o Brasil em um absoluto regime totalitário.

Os juízes de Berlim

Saímos de uma aura de justiça da “República de Curitiba” para a “República Soviética do Brasil”. E creio que podemos ir além da aura persecutória dos bolcheviques para retratar o sentimento e o medo justificado que estamos vivendo. Salvaguardado todo o respeito às vítimas e à proporção do mal feito pelos nazistas ao mundo, ler sobre “lei e a justiça” no Terceiro Reich traz arrepios com as pequenas semelhanças com um sistema no Brasil que não usa mais as leis, o processo legal e o amplo direito de defesa como o único norte possível em uma nação séria — mas a vontade de juízes. Não podemos esquecer — jamais — que há um deputado preso que teve um perdão presidencial constitucional extirpado de seus processos, e foi condenado a oito anos de prisão por palavras proferidas em um vídeo no YouTube.


Daniel Silveira, condenado a oito anos de prisão | Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

É profundamente incômodo visitarmos a história e nos depararmos com as páginas que mostram que, no Terceiro Reich, o estado policial é caracterizado pela detenção arbitrária e encarceramento de opositores políticos e ideológicos. Com a reinterpretação de “guarda protetora” (Schutzhaft) em 1933, o poder de polícia tornou-se independente dos controles judiciais. Na terminologia nazista, “custódia protetora” significava a prisão — sem revisão judicial — de opositores reais e potenciais do regime.

O Terceiro Reich foi também chamado de dual state, ou estado duplo, já que o sistema judicial normal coexistiu com o poder arbitrário de Hitler e da polícia. No entanto, como a maioria das áreas da vida pública após a ascensão nazista ao poder em 1933, o sistema de Justiça alemão passou por uma “coordenação”, para maior alinhamento com os objetivos nazistas. Associações profissionais envolvidas com a administração da Justiça foram fundidas na Liga Nacional Socialista de Juristas Alemães. Em abril de 1933, Hitler aprovou uma das primeiras leis antissemitas, expurgando judeus e também juízes, advogados e outros oficiais do tribunal de suas profissões. Além disso, a Academia de Direito Alemão e os teóricos jurídicos nazistas, como Carl Schmitt, defendiam a nazificação da lei alemã, limpando-a da “influência judaica”. Os juízes foram obrigados a deixar que o “sentimento popular saudável os guiasse em suas decisões”, e não as leis.

Hitler então decidiu aumentar a confiabilidade política dos tribunais. Em 1933, ele estabeleceu tribunais especiais em toda a Alemanha para julgar casos “politicamente delicados”. Insatisfeito com os veredictos de “inocente” proferidos pela Suprema Corte no Julgamento do Incêndio do Reichstag, Hitler ordenou a criação do Tribunal do Povo em Berlim em 1934 para julgar traição e outros “casos políticos” importantes.


Adolf Hitler (centro) e líderes nazistas, em 1930 | Foto: Wikimedia Commons

Desde a sua fundação, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães lutou contra o estado de direito. A aquisição nacional-socialista também representou uma vitória do direito penal autoritário sobre o direito penal liberal. A criação dos Tribunais Especiais em 1933 e do “Tribunal do Povo” em 1934 foram marcos importantes nas terríveis páginas da história nazista contra a humanidade.

Depois de 1938, todos os atos criminosos e, depois de 1939, todos os delitos menores poderiam ser processados perante os Tribunais Especiais. Esses tribunais consistiam em três juízes profissionais, e o veredicto que proferiam era o primeiro e último estágio de apelação. Com a nomeação do juiz Roland Freisler como presidente do “Tribunal do Povo” em 1942, os julgamentos perderam sua última aparência de procedimentos legais legítimos. Freisler humilhou e ridicularizou os réus. A redação das leis foi sistematicamente mal interpretada e sentenças de morte foram “justificadas” por motivos apresentados em menos de duas páginas de texto, textos que poderiam ser lidos em 66 segundos, e o “Tribunal Popular” foi autorizado a cometer assassinatos judiciais.

O regime nazista teve juízes leais que voluntariamente transformaram a lei liberal alemã em um instrumento de opressão, discriminação e genocídio. Isso foi conseguido sem interferir substancialmente no funcionamento dos tribunais e sem aplicar medidas disciplinares aos juízes. Mas nem todos os juízes eram servidores congeniais do regime — alguns resistiram na qualidade de juízes e honraram suas togas e dever com o povo alemão. É claro que não estamos diante de um estado judicial visto nas páginas da Alemanha de Hitler. Ainda. O que nos preocupa, no entanto, é o desrespeito histórico às nossas leis e o silêncio que foi conivente a muitos que hoje, com razão, gritam por justiça diante do episódio com Deltan Dallagnol.


Foto: Shutterstock

Durante quatro anos, assistimos atônitos à complacência da imprensa no Brasil e à quebra do ordenamento jurídico no país, afinal, era para derrubar o “Bozo”, o “novo Hitler”, o “ditador”, o “autoritário”. Até os ditos e autoproclamados conservadores e liberais demonizaram e desumanizaram Jair Bolsonaro porque “ele não é conservador” no checklist burkeano dos hipócritas do Instagram que surfaram e nadaram de braçadas na onda conservadora empurrada por Bolsonaro. Muitos elogiavam o presidente para vender cursos e livros, para depois posarem de limpinhos que “não se misturam com essa gente bolsonarista”. Permaneceram em absoluto silêncio durante 2020, 2021 e 2022 enquanto nossa Constituição era estuprada diariamente, afinal, “oh well… são bolsonaristas sendo perseguidos e presos. Inconstitucionalmente, sim. Mas ainda são bolsonaristas”. 

Jair Bolsonaro, assim como Donald Trump, foi um fenômeno reativo da sociedade que estava estafada de tanta corrupção, aparelhamentos, acordos. Sabíamos que a eleição de 2022 era muito, muito além de Bolsonaro ou Lula. O próprio Deltan Dallagnol, homem que lutou bravamente no MP contra um sistema carcomido, julgou o presidente Bolsonaro de maneira injusta e sem se ater a críticas pontuais e pertinentes. O dano agora está feito. O monstro de alma autoritária e caneta tirânica virá para todos.

Quero acreditar que a verdadeira missão de Deltan Dallagnol, muito além da Lava Jato e do mandato de deputado, tenha apenas se iniciado. Sua cassação irregular ao arrepio da lei pode ter mobilizado quem ainda pensava que sairia ileso de um projeto de poder totalitário. O presidente da Câmara, Arthur Lira, tem uma histórica oportunidade de retomar as rédeas institucionais da Casa do Povo e mostrar que a autonomia entre os Poderes não pode suportar mais uma grave interferência de um Judiciário ativista que recebe tapinhas na cara de um ficha suja. A prerrogativa de cassação de um mandato de um deputado que já foi empossado é exclusivamente da Câmara. Se Arthur Lira vai peitar o sistema, duvido. Gostaria de estar errada. 


Arthur Lira | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Benedito Gonçalves, como um bom servidor do projeto de poder do partido mais corrupto da nossa história, mostrou nesta semana que sua célebre frase proferida a Alexandre de Moraes, “missão dada, missão cumprida”, não é mote exclusivo dele, mas de todo um sistema que agora se arma contra o povo em projetos de censura, mordaça, intimidações, perseguições, prisões, desmandos, imoralidades e inconstitucionalidades.

Cabe a nós, assim como as páginas da história claramente ensinam, que o silêncio e o medo não possam mais ser uma opção. A história, dificilmente, não se repete.

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Revista Oeste