O bolsonarismo sai dessas eleições até um pouco maior que o próprio Jair, consolidando-se como uma força política, com potencial de ser encarnada por novas figuras políticas
Em outubro de 2018, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial que consagrou Jair Bolsonaro como o 38º presidente do Brasil, fui convidado pela revista Época para escrever um artigo apresentando a perspectiva da direita sobre o pleito. Naquele momento, convém lembrar, a mera candidatura do ex-capitão do Exército já era denunciada como “ameaça à democracia” por toda a classe falante esquerdista, em narrativa fraudulenta que, como numa profecia autorrealizável, viria em seguida a se cristalizar em recorrentes episódios de perseguição político-judicial contra os assim estigmatizados como “bolsonaristas” e “antidemocráticos”. Foi assim que, sob o pretexto da defesa de uma democracia supostamente ameaçada por Bolsonaro e apoiadores, autoridades do Poder Judiciário, em aliança espúria com setores da extrema esquerda partidária e da velha imprensa, atribuíram a si poderes excepcionais, não previstos na Constituição, passando a violar sistematicamente o Estado de Direito e, consequentemente, a própria democracia.
Naquele artigo, intitulado “A vez da direita”, ilustrei o argumento sobre o apelo popular e a representatividade de Bolsonaro com uma anedota. Versava sobre uma procissão da Sexta-Feira da Paixão ocorrida em Copacabana, por mim testemunhada da portaria de um prédio na movimentada Rua Barata Ribeiro. Ali, então, o contraste entre o silêncio reverente dos procissantes — apenas interrompido pelo bater intermitente do bumbo — e o burburinho boêmio nos bares do entorno pareceu-me um bom símbolo para a distância entre a falastrona intelligentsia progressista encastelada nas universidades e nas redações, fechada com o candidato lulopetista, e a maioria silenciosa do povo brasileiro, a qual, conservadora e cristã, pela primeira vez em décadas se fazia representar pela singular e inédita candidatura de direita encarnada por Jair Bolsonaro.
Inédita porque, até então, o eleitorado conservador era forçado a optar pelo candidato um pouquinho menos à esquerda (ao menos em aparência) no nosso espectro político formado por 50 tons de vermelho. Naquele arranjo que o saudoso professor Olavo de Carvalho batizou pioneiramente como “teatro das tesouras”, restava ao eleitor de direita a inglória tarefa de votar em candidatos tucanos (social-democratas) contra os petistas (socialistas). E é sintomático que, quatro anos depois, o namorico então reservado às coxias tenha atravessado as cortinas e, revelando-se ao público em toda a sua lascívia, resultado no casamento entre Lula e Alckmin, na chapa jocosamente apelidada de “caipirinha de chuchu”.

Mas a representatividade de Bolsonaro jamais foi reconhecida pela maioria da imprensa e pelo establishment político e cultural do país. Sua vitória eleitoral foi tida por aberrante, fruto não de um apoio orgânico e espontâneo da maior parte da sociedade, mas de toda sorte de manipulação. Surgiram as narrativas do “disparo de fake news”, do “gabinete do ódio”, das “milícias digitais”. A pandemia exponenciou o mecanismo de deslegitimação do presidente, bem como do seu eleitorado. O “consórcio” midiático passou a representar o chefe de Estado como um criminoso, um pária internacional, um inimigo da “ciência”. Também os seus aliados e apoiadores o foram assim estigmatizados. Ministros de Tribunais Superiores não hesitaram em assumir o papel de opositores, apelando a uma retórica política vulgar, em que não faltaram acusações de genocida, comparações com o nazismo e participações em eventos políticos em favor da queda do presidente. Inconsolável desde que se anunciou o vitorioso de 2018, o establishment se reorganizou e passou a coordenar um ataque sem precedentes ao presidente da República e, sobretudo, à grande parcela da sociedade que o elegeu e o seguiu apoiando à espera da implementação da agenda eleitoralmente vitoriosa.
Hoje, a direita brasileira tem uma forte base social e um conjunto estabelecido de valores e ideias
Apesar de todo o bombardeio — ou, antes, por causa dele —, e diferente do que tende normalmente a acontecer, a identificação entre o eleitorado conservador brasileiro e Jair Bolsonaro não se desfez ao longo dos seus quatro anos de mandato, mas, ao contrário, se intensificou. Durante um tempo, acreditou-se que essa identificação se dava essencialmente pela negativa, graças ao antipetismo. Mas, quando parte das forças políticas antipetistas (notadamente o MBL e o lavajatismo) rompeu com Bolsonaro, o aspecto positivo da representatividade popular de Bolsonaro ficou mais nítida.
Em maio de 2019, por exemplo, quando da mobilização das manifestações em prol da reforma da previdência, a imprensa já fazia o de sempre, acusando previamente os manifestantes de antidemocráticos e extremistas. Naquela ocasião, o MBL já trilhara o caminho do antibolsonarismo (caminho que, como prova o resultado do pleito de 2022, praticamente aniquilou o movimento). Acreditando na autoimagem de grande força de mobilização para os atos pró-impeachment de Dilma Rousseff, imaginaram que a sua ausência fosse desidratar as manifestações bolsonaristas em apoio à reforma. Ledo engano. Os atos do dia 26 de maio foram gigantescos (e, como sempre, pacíficos), já indicando a tendência que, dali em diante, só viria a crescer, levando às ruas multidões cada vez maiores (e mais engajadas) de apoiadores de Bolsonaro, e culminando nos atos do último 7 de Setembro, provavelmente os maiores da nossa história, imantados de um sentimento coletivo de pertencimento, patriotismo e esperança muito raro na vida política nacional.
Por uma série de razões que vão desde méritos pessoais do político até circunstâncias históricas favoráveis, Jair Bolsonaro foi a figura-símbolo de todo esse movimento orgânico e espontâneo, que o establishment tentou ostracizar sem sucesso, e que os institutos de pesquisa aparelhados fizeram questão de não compreender. Mas, de certa forma, justamente por ser orgânico e espontâneo (lembrando que o ex-capitão do Exército jamais contou com respaldo partidário consistente), o bolsonarismo sai dessas eleições até um pouco maior que o próprio Jair, consolidando-se como uma força política inescapável, com potencial de ser encarnada por novas figuras políticas.
Em contraste, a esquerda brasileira é hoje muito mais personalista que a direita, dependendo exclusivamente da figura de Luiz Inácio Lula da Silva. Graças ao assistencialismo passado e ao coronelismo renitente, o ex-presidiário ainda tem no Nordeste um poderoso curral eleitoral. Como mostrou a votação que teve nessa região do país, a popularidade do ex-metalúrgico continua significativa, mesmo com todo o passado de líder do maior esquema de corrupção da história brasileira. Convém lembrar, todavia, que, ao contrário de Bolsonaro, o político petista sempre contou com a força cultural do partido, que adotou com sucesso a estratégia gramsciana de aparelhamento da sociedade civil (universidades, editoras, imprensa, indústria do entretenimento), e, por meio de seus intelectuais orgânicos, conseguiu “preparar” a sociedade para recebê-lo de braços abertos.
Ainda assim, em termos de partido, o PT parece retornar às suas dimensões originais de partido da intelligentsia progressista. Por muito tempo, o partido mostrou-se orgulhoso dessa sua base social mais “esclarecida” (ou “refinada”, como diria hoje o candidato petista). No ano 2000, por exemplo, um estudo coordenado por André Singer, intelectual orgânico do PT, mostrava que, enquanto o povão tendia a se identificar com a direita e com a manutenção da ordem, era especialmente a classe média universitária de escolaridade que formava o eleitorado da esquerda e do PT em especial. Nos dois governos Lula, esse quadro foi excepcionalmente alterado, quando uma sorte de assistencialismo sebastianista (nem de perto comparável, por óbvio, ao “assistencialismo” prestado aos bancos e às empreiteiras) fez do ex-presidiário algo como um “santo” popular no Nordeste, situação cujo resíduo eleitoral ainda hoje se observa. Situação que, todavia, só se sustenta enquanto durar a persona política de Luiz Inácio Lula da Silva.
Hoje, a direita brasileira tem uma forte base social e um conjunto estabelecido de valores e ideias. Já a esquerda — elitizada, desenraizada, incapaz de mobilização popular e carente de ideias frescas (embora não das habituais frescuras) — acha-se mortalmente dependente de uma figura que, mesmo se vitorioso nesse segundo turno, vive o seu ocaso físico, político e moral. E é justamente esse quadro que, a curto prazo, pode fazer dele uma grande ameaça à democracia, à paz social e ao desenvolvimento do país.
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Revista Oeste

