sábado, 25 de junho de 2022

'Há nuances negligenciadas entre o medo do comunismo e a onda rosa na América Latina', por Leonardo Coutinho

 


Foto: Reprodução/Twitter


Há duas tendências básicas que buscam explicar o movimento político na América Latina que ganhou força com a eleição do esquerdista Gustavo Petro na Colômbia, no último fim de semana. De um lado, estão aqueles que veem na eleição do ex-guerrilheiro do M-19 o avanço devastador do comunismo sobre o continente. Do outro, estão aqueles que, com o coração cheio de candura, justificam a vitória de Petro como a confirmação de uma reação em cadeia, iniciada em 2018 com a eleição de Andrés Manuel Lopez Obrador, no México, e que passou pelas conquistas de Alberto Fernández, na Argentina; Luis Arce, na Bolívia; Pedro Castillo, no Peru; Gabriel Boric, no Chile; e que deverá atingir o seu ápice com a eleição de Lula no Brasil.

Entre o pânico do comunismo e a euforia da “onda rosa”, há uma série de nuances negligenciadas. A leitura da cobertura dos resultados das eleições colombianas não deixa dúvida sobre como o medo e a empolgação impedem não só prever o que está por vir, mas enxergar o que já está acontecendo.

Muitos analistas recorreram à figura da “onda rosa” como forma de expressar que o retorno da esquerda ao poder na região não representa e não representará um repeteco das aspirações revolucionárias lideradas pelo finado Hugo Chávez e endossadas pelos seus parceiros bolivarianos – entre os quais estavam Lula e Dilma Rousseff.

A teoria da esquerda light se baseia no princípio de que a nova safra de esquerdistas que chega ao poder não tem em seu favor um boom de comodities – como a fortuna petroleira que permitiu a Chávez financiar o caos dentro e fora da América Latina. Esses novos líderes também não teriam mais as condições para refundação de seus países ou a sanha revolucionária socialista, que sempre resultou na destruição da democracia e na fundação de economias quebradas e regimes ditatoriais.

Será?

Considerar a quebradeira da economia formal como um limitador dos governos bolivarianos é um pecado que resvala na inocência. A economia do ilícito é uma força crescente na região e, em alguns casos, dominante. Não existe exemplo mais bem acabado que o da Venezuela de Nicolás Maduro. Com uma produção de petróleo que hoje é inferior àquela medida nos anos 30 do século passado, o país mergulhou na maior crise econômica e humanitária do Ocidente. O tráfico de drogas, contrabando de ouro, corrupção e a lavagem de dinheiro preencheram os espaços deixados pelo colapso das atividades legais e se tornaram uma poderosa fonte de receita e de poder.

A Bolívia dos cocaleiros de Evo Morales é outro exemplo. O poder do tráfico e o poder político se misturam de tal maneira que é uma tarefa complexa separar o que é uma coisa ou outra. Quando se olha para as atividades empresariais, há uma tenebrosa zona cinzenta, onde personagens conhecidos do mundo da política e do tráfico de drogas coabitam com o setor produtivo nacional.

Podem faltar recursos para fazer o que deveria ser feito (sob a ótica de governos regulares), mas não falta dinheiro para que estes governos façam o que eles precisam fazer para continuar no poder.

A economia do ilícito também mostra a sua força no Peru. Para muitos, o Castillo presidente parece ter se convertido em uma versão light do Castillo candidato. Mas, em silêncio, o Peru vai mergulhando em um modelo de tráfico de drogas muito mais intenso. Assim como no México de AMLO, o Peru tem expandido os cultivos de papoula para produção de heroína.

E a pressão para legalizar a produção de drogas, sob o pretexto de que colocará fim no tráfico, basicamente serve para trazer para dentro do caixa oficial o dinheiro que circula por fora.

No caso colombiano, o próprio candidato derrotado Rodolfo Hernandéz chegou a prometer droga grátis como resposta ao tráfico. Como medida de contenção, o Estado ia torrar o dinheiro dos contribuintes para bancar o vício de alguns e encher os bolsos dos fornecedores. Uma ideia de jerico sem tamanho.

Petro não fará muito diferente. Especula-se que fará pouco na política de repressão ao tráfico e deverá se esforçar pela descriminalização. Com AMLO com o mesmo tipo de pensamento no México, a combinação pode ser explosiva.

Nos próximos dias, a comissão destinada à “justiça reparatória” publicará seu relatório final. Um dos rascunhos pede uma nova Constituição para a Colômbia. O texto será a faca e o queijo na mão para Petro dizer que está apenas seguindo os conselhos de uma comissão que busca consolidar a paz no país.

Vai sair de bacana, mas vai fazer o mesmo que já foi feito no passado pelos tais bolivarianos extintos. Reinventar o país por meio de uma nova carta magna.

O tal pragmatismo que os novos líderes de esquerda empreenderão nada mais é que a esperteza de fazer melhor (na perspectiva deles) o que eles precisam fazer para se manter no poder, sem repetir os erros e atropelos.

O comunismo que a direita latino-americana vê como grande ameaça existe no campo das ideias, mas sua concretização – se podemos chamar assim – se dá por meio da convergência com o crime que tem avançado sobre a política em velocidade e capacidades jamais vistas.

Por fim, há um fator que está sendo negligenciado. À exceção dos casos de AMLO e Fernández, todas as outras vitórias eleitorais da esquerda se deram em um ambiente de terra arrasada, em consequência da pandemia de Covid-19. Nenhuma região do mundo foi tão castigada pelo coronavírus como a América Latina. Será nesse contexto que os brasileiros irão às urnas em outubro. Quem está no poder larga na desvantagem de ter governado em condições muito desfavoráveis.

A impressão que fica é que diante das urnas os eleitores exerceram mais o poder de castigar que o de escolher. E se isso for correto, a esquerda voltou por meio da vingança e com desejo de vingança.


Gazeta do Povo