Economista Felipe Ohana - IPEA
O teto é uma maneira de controle das despesas do setor
público que não encontra amparo teórico, se aplicado separadamente, sem outro
tipo de política fiscal. A literatura fornece os seguintes argumentos para vigorar:
a) forma operacional de lidar com o controle fiscal; b) medida que evita
acomodação dos pedidos políticos para ampliação de despesas; c) instrumento
prático como guia do compromisso fiscal. Nada substancial.
Países como Finlândia (2003), Holanda (1994) e Suécia (1997)
empregaram o teto de gastos com algumas variações. A Finlândia adotou o teto de
quatro anos e excluiu as despesas de juros, as despesas originadas de ciclos
(seguro desemprego), despesas previdenciárias e alguns investimentos em
infraestrutura.
A Holanda implantou três subtetos que se compensam:
Governamental propriamente, Saúde e Previdência. O teto de Governo incluiu
juros, mas em 2006 foi retirado. As despesas com recursos vinculados entram sob
o teto de forma líquida, após descontar a receita (são as despesas circulares).
A Suécia é a mais restritiva de todos, mas não inclui juros no teto.
Há várias formas de se aplicar o teto. Uma delas com valor
exógeno e fixo, outra como proporção do PIB esperado e, ainda, com valor
indexado à taxa de inflação, como no Brasil.
Essencialmente, o Executivo propõe o modelo de limitação de
gastos no Governo Central e o Congresso aprova.
Equilíbrio fiscal
Como ensinado nas escolas de economia, o desequilíbrio
fiscal (déficit) impacta as expectativas sobre a economia porque pode conduzir
(por excesso de demanda) à elevação da taxa de juros e, a partir daí, ao freio
na atividade econômica (a elevação da taxa de juros reduz a capacidade de
alavancagem do capital de giro). De outra forma, o aumento da demanda, se
acomodado com ampliação de crédito, pode conduzir ao aumento dos preços. Em
suma, desequilíbrio fiscal permanente não é boa política econômica.
Os alunos são ensinados que a relação dívida pública em
proporção do PIB é um dos principais indicadores para a estabilidade econômica.
Esta relação depende do resultado fiscal primário, razão que leva este
demonstrativo ao centro da atenção da política econômica.[1]
Mas a nova abordagem no manejo da política fiscal, como no Brasil, parece ter
substituído este indicador pelo teto de gastos.
Voltando às origens, o resultado fiscal primário (RP) se
origina da diferença entre receita fiscal (RF) e gastos fiscais (GF):
RP = RF – GF
Os gastos podem ser definidos em termos de despesas sob o
teto (TT) e despesas fora do teto (ET). E os gastos são restringidos pelo
contingenciamento (CT) aplicado ao orçamento, a cada dois meses em que são
apresentadas as avaliações das receitas e despesas fiscais. Ou seja:
GF = TT + ET – CT
Dessa maneira,
RP = RF – TT – ET + CT. Esta fórmula simples pode ser
apresentada como (rearranjando os termos):
CT = RP -RF +TT +ET. O contingenciamento depende do comportamento
da arrecadação.
TT é dado e
tem máximo. RP é meta fixa na LDO, ou seja, um valor dado. Portanto, a
fixação do teto não elide a necessidade de se observar a flutuação da receita
(RF). Caso insuficiente para atingir o RP da meta, o modelo fecha aplicando-se o
contingenciamento (CT). Por exemplo, se a meta de RP for zero (equilíbrio
fiscal primário) e o total da receita empatar com o total da despesa
orçamentada (planejada), CT será zero.
Pode-se, então, acalmar os alunos de economia. Os
fundamentos da análise fiscal não foram abalados pela alquimia do teto de
gastos. A literatura não mudou, só a forma de apresentar.
As Contas em 2019
Ao início do ano, a receita foi estimada de maneira
independe (R$ 1299,7 bilhões). O teto 2019 foi resultado da correção monetária
do teto de 2018 (R$ 1 407,2 bilhões). E a despesa total resulta da estimativa
de despesas fora do teto (segundo a Emenda Constitucional 95). A partir daí,
surge a estimativa de déficit primário de R$ 139 bilhões (meta para o ano).
Em 2019, houve receitas extraordinárias oriundas de
concessões, o que elevou a receita em R$ 47,1 bilhões. O Governo contingenciou
R$ 14,7 bilhões (contingenciamento ocioso) e deixou de gastar R$ 34 bilhões do
teto (dentro dos R$ 34 bilhões estão os R$ 14 bilhões do contingenciamento). Em
suma, com aumento da receita em R$ 47,1 bilhões e aumento na despesa de R$ 3,15
bilhões, a meta de déficit se tornou um resultado R$ 43, 95 bilhões menor, vale
dizer, caiu para R$ 95,05 bilhões.
O que é o teto
Nada mudou na substância da administração das contas
públicas. O resultado primário segue sendo a meta principal, a depender do
comportamento da arrecadação e do contingenciamento.
O teto é, então, uma forma de conferir visibilidade às
despesas que ideologicamente se quer cortar das contas públicas. Esta
visibilidade é ordenada por montante de despesa. A maior despesa é a de
Previdência que, embora sendo uma despesa circular (no sentido holandês),
seguiu sob o teto (diferentemente da Holanda), pois o objetivo era reduzi-la.
O holofote localizado no teto ilumina, desta vez, a
remuneração dos servidores, segunda maior despesa no ordenamento. Para a
redução cunhou-se o termo “furar o piso”, em bom português, remunerar menos os
servidores que custam, na esfera federal, 2,53% do PIB e, no âmbito dos ativos
(grupo que toca a máquina pública) 1,78%,
sendo que 66% deles estão alocados nos segmentos funcionais de saúde e
educação.
Pode-se interpretar que, em 1988, a sociedade demandou mais
serviço público, mediante a reforma sanitária (SUS), previdenciária,
educacional, além de outros seguros sociais com impacto no assistencialismo.
Pode-se dizer que a Constituição foi uma reação política ao período de governos
militares, entendidos como de orientação antissocialista. Neste entendimento,
explica-se a razão de a Constituição trazer mais Estado para vida política
brasileira.
Consequentemente, a demanda de mais serviço de Estado
implica a necessidade de máquina operacional competente para arrecadar fundos
(Receita Federal), para administrar as finanças (Tesouro), para supervisionar
as áreas bancária e monetária (Banco Central), para pesquisas de melhores
políticas (IPEA, EMBRAPA, etc.), não menos relevante, que controle a corrupção (Ministério Público
e Polícia Federal) e, sem esgotar o tema, para controlar a governança (TCU). Todos
estes serviços são originários do perfil funcional instituído pela Constituição
e têm funcionado muito bem, a ponto de manter erguida a estrutura desenhada em
1988.
Pode-se, ou não, gostar da organização da sociedade
brasileira originada em 1988. O gasto funcional com assistencialismo é o que
mais aumentou entre 2014 e 2020, por valor autorizado, seguido pelo de Defesa
Nacional, no mesmo período.[2]
Se este perfil será alterado, cabe à instância política, responsável pelo
desenho da Constituição, se pronunciar. Mas, contrário a isto, são os
economistas que estão a liderar o processo de desmonte das determinações
constitucionais. E fazem isto atacando a base de funcionamento do Estado
Federal, os servidores.
Pretendem baratear o gasto com servidor, ao tempo em que a
reforma da Previdência acolheu despesas, na forma de subsídio, de R$ 120
bilhões por ano para financiar a aposentadoria rural. Este montante é o que se
gasta com toda a folha de pagamento com os servidores civis ativos, por ano.
A política fiscal baseada em teto não precisa existir, no
Brasil, pois o regime de meta de primário sempre funcionou e sempre bem aceita
no âmbito legislativo. A meta de resultado primário ainda é a guia da
estabilidade. Não é o teto. O teto é um instrumento para amedrontar os
políticos com a necessidade de pagar pouco aos servidores, o que reduzirá a
atratividade do serviço público e, inevitavelmente, a qualidade do serviço. Uma
vez derrotado o Estado, por esta via, é fácil alterar a Constituição que trouxe
o Estado para prestar serviço ao cidadão. Se o objetivo é retirar o Estado da
vida do País, é o que se deve fazer por meio de medidas diretas e transparentes
no âmbito político, em vez de primeiro quebrar as pernas do Estado, ao diminuir
a capacidade de trabalho do servidor público.
[1] d
= b (r – g) + rp, onde d é a relação dívida/PIB, b é a dívida pública em
proporção do PIB, r é a taxa de juros real e g a taxa real de crescimento do
PIB. rp é o resultado primário em
proporção do PIB.
[2] Os
gastos com Assistência Social aumentaram 437%, no período; Defesa Nacional 109%
e Previdência Social 44%. Áreas de Atuação do Governo. Portal da Transparência.
CGU. 2020.