segunda-feira, 14 de setembro de 2020

"Teto de gastos fiscais primários, a necessidade de furar o piso e os gatilhos", por Felipe Ohana


Teto de gastos públicos - YouTube


Economista Felipe Ohana - IPEA



O teto é uma maneira de controle das despesas do setor público que não encontra amparo teórico, se aplicado separadamente, sem outro tipo de política fiscal. A literatura fornece os seguintes argumentos para vigorar: a) forma operacional de lidar com o controle fiscal; b) medida que evita acomodação dos pedidos políticos para ampliação de despesas; c) instrumento prático como guia do compromisso fiscal. Nada substancial.

Países como Finlândia (2003), Holanda (1994) e Suécia (1997) empregaram o teto de gastos com algumas variações. A Finlândia adotou o teto de quatro anos e excluiu as despesas de juros, as despesas originadas de ciclos (seguro desemprego), despesas previdenciárias e alguns investimentos em infraestrutura.

A Holanda implantou três subtetos que se compensam: Governamental propriamente, Saúde e Previdência. O teto de Governo incluiu juros, mas em 2006 foi retirado. As despesas com recursos vinculados entram sob o teto de forma líquida, após descontar a receita (são as despesas circulares). A Suécia é a mais restritiva de todos, mas não inclui juros no teto.

Há várias formas de se aplicar o teto. Uma delas com valor exógeno e fixo, outra como proporção do PIB esperado e, ainda, com valor indexado à taxa de inflação, como no Brasil.

Essencialmente, o Executivo propõe o modelo de limitação de gastos no Governo Central e o Congresso aprova.


Equilíbrio fiscal

Como ensinado nas escolas de economia, o desequilíbrio fiscal (déficit) impacta as expectativas sobre a economia porque pode conduzir (por excesso de demanda) à elevação da taxa de juros e, a partir daí, ao freio na atividade econômica (a elevação da taxa de juros reduz a capacidade de alavancagem do capital de giro). De outra forma, o aumento da demanda, se acomodado com ampliação de crédito, pode conduzir ao aumento dos preços. Em suma, desequilíbrio fiscal permanente não é boa política econômica.

Os alunos são ensinados que a relação dívida pública em proporção do PIB é um dos principais indicadores para a estabilidade econômica. Esta relação depende do resultado fiscal primário, razão que leva este demonstrativo ao centro da atenção da política econômica.[1] Mas a nova abordagem no manejo da política fiscal, como no Brasil, parece ter substituído este indicador pelo teto de gastos.

Voltando às origens, o resultado fiscal primário (RP) se origina da diferença entre receita fiscal (RF) e gastos fiscais (GF):

RP = RF – GF

Os gastos podem ser definidos em termos de despesas sob o teto (TT) e despesas fora do teto (ET). E os gastos são restringidos pelo contingenciamento (CT) aplicado ao orçamento, a cada dois meses em que são apresentadas as avaliações das receitas e despesas fiscais. Ou seja:

GF = TT + ET – CT

Dessa maneira,

RP = RF – TT – ET + CT. Esta fórmula simples pode ser apresentada como (rearranjando os termos):

CT = RP -RF +TT +ET.  O contingenciamento depende do comportamento da arrecadação.

 TT é dado e tem máximo. RP é meta fixa na LDO, ou seja, um valor dado. Portanto, a fixação do teto não elide a necessidade de se observar a flutuação da receita (RF). Caso insuficiente para atingir o RP da meta, o modelo fecha aplicando-se o contingenciamento (CT). Por exemplo, se a meta de RP for zero (equilíbrio fiscal primário) e o total da receita empatar com o total da despesa orçamentada (planejada), CT será zero.

Pode-se, então, acalmar os alunos de economia. Os fundamentos da análise fiscal não foram abalados pela alquimia do teto de gastos. A literatura não mudou, só a forma de apresentar.

 

As Contas em 2019

Ao início do ano, a receita foi estimada de maneira independe (R$ 1299,7 bilhões). O teto 2019 foi resultado da correção monetária do teto de 2018 (R$ 1 407,2 bilhões). E a despesa total resulta da estimativa de despesas fora do teto (segundo a Emenda Constitucional 95). A partir daí, surge a estimativa de déficit primário de R$ 139 bilhões (meta para o ano).

Em 2019, houve receitas extraordinárias oriundas de concessões, o que elevou a receita em R$ 47,1 bilhões. O Governo contingenciou R$ 14,7 bilhões (contingenciamento ocioso) e deixou de gastar R$ 34 bilhões do teto (dentro dos R$ 34 bilhões estão os R$ 14 bilhões do contingenciamento). Em suma, com aumento da receita em R$ 47,1 bilhões e aumento na despesa de R$ 3,15 bilhões, a meta de déficit se tornou um resultado R$ 43, 95 bilhões menor, vale dizer, caiu para R$ 95,05 bilhões.

O que é o teto

Nada mudou na substância da administração das contas públicas. O resultado primário segue sendo a meta principal, a depender do comportamento da arrecadação e do contingenciamento.

O teto é, então, uma forma de conferir visibilidade às despesas que ideologicamente se quer cortar das contas públicas. Esta visibilidade é ordenada por montante de despesa. A maior despesa é a de Previdência que, embora sendo uma despesa circular (no sentido holandês), seguiu sob o teto (diferentemente da Holanda), pois o objetivo era reduzi-la.

O holofote localizado no teto ilumina, desta vez, a remuneração dos servidores, segunda maior despesa no ordenamento. Para a redução cunhou-se o termo “furar o piso”, em bom português, remunerar menos os servidores que custam, na esfera federal, 2,53% do PIB e, no âmbito dos ativos (grupo que toca a máquina pública)  1,78%, sendo que 66% deles estão alocados nos segmentos funcionais de saúde e educação. 

Pode-se interpretar que, em 1988, a sociedade demandou mais serviço público, mediante a reforma sanitária (SUS), previdenciária, educacional, além de outros seguros sociais com impacto no assistencialismo. Pode-se dizer que a Constituição foi uma reação política ao período de governos militares, entendidos como de orientação antissocialista. Neste entendimento, explica-se a razão de a Constituição trazer mais Estado para vida política brasileira.

Consequentemente, a demanda de mais serviço de Estado implica a necessidade de máquina operacional competente para arrecadar fundos (Receita Federal), para administrar as finanças (Tesouro), para supervisionar as áreas bancária e monetária (Banco Central), para pesquisas de melhores políticas (IPEA, EMBRAPA, etc.), não menos relevante,  que controle a corrupção (Ministério Público e Polícia Federal) e, sem esgotar o tema, para controlar a governança (TCU). Todos estes serviços são originários do perfil funcional instituído pela Constituição e têm funcionado muito bem, a ponto de manter erguida a estrutura desenhada em 1988.

Pode-se, ou não, gostar da organização da sociedade brasileira originada em 1988. O gasto funcional com assistencialismo é o que mais aumentou entre 2014 e 2020, por valor autorizado, seguido pelo de Defesa Nacional, no mesmo período.[2] Se este perfil será alterado, cabe à instância política, responsável pelo desenho da Constituição, se pronunciar. Mas, contrário a isto, são os economistas que estão a liderar o processo de desmonte das determinações constitucionais. E fazem isto atacando a base de funcionamento do Estado Federal, os servidores.

Pretendem baratear o gasto com servidor, ao tempo em que a reforma da Previdência acolheu despesas, na forma de subsídio, de R$ 120 bilhões por ano para financiar a aposentadoria rural. Este montante é o que se gasta com toda a folha de pagamento com os servidores civis ativos, por ano.

A política fiscal baseada em teto não precisa existir, no Brasil, pois o regime de meta de primário sempre funcionou e sempre bem aceita no âmbito legislativo. A meta de resultado primário ainda é a guia da estabilidade. Não é o teto. O teto é um instrumento para amedrontar os políticos com a necessidade de pagar pouco aos servidores, o que reduzirá a atratividade do serviço público e, inevitavelmente, a qualidade do serviço. Uma vez derrotado o Estado, por esta via, é fácil alterar a Constituição que trouxe o Estado para prestar serviço ao cidadão. Se o objetivo é retirar o Estado da vida do País, é o que se deve fazer por meio de medidas diretas e transparentes no âmbito político, em vez de primeiro quebrar as pernas do Estado, ao diminuir a capacidade de trabalho do servidor público.



[1] d = b (r – g) + rp, onde d é a relação dívida/PIB, b é a dívida pública em proporção do PIB, r é a taxa de juros real e g a taxa real de crescimento do PIB.  rp é o resultado primário em proporção do PIB.

[2] Os gastos com Assistência Social aumentaram 437%, no período; Defesa Nacional 109% e Previdência Social 44%. Áreas de Atuação do Governo. Portal da Transparência. CGU. 2020.