O que podemos aprender com a Estônia, o país que se livrou do comunismo para tornar-se uma república digital
Segundo dados de 2019 divulgados pelo Banco Mundial, a Nova Zelândia é o país com a maior facilidade para fazer negócios. Os Estados Unidos estão em sexto lugar nesse ranking. A Rússia em 28º, a China em 31º. E o Brasil? Em 124º.
Nossa voraz máquina estatal oferece a quem quer investir aqui mais dificuldades do que países como Ruanda, Mongólia, Botswana, Paquistão e Egito. Até os palestinos da Faixa de Gaza enfrentam menos burocracia que nós. Segundo a organização Endeavor, uma empresa demora em média 117 dias para ser aberta no Brasil. A média mundial é 79,5 dias. Na Estônia, você abre sua firma em três. Horas.
Sim, você. E eu. Qualquer pessoa no mundo pode abrir uma empresa na Estônia. Para facilitar isso, foi criado o conceito de e-residence. Algo como “residência eletrônica”. (Que não deve ser confundida com cidadania.)
É difícil ser um e-residente na Estônia? Siga os seguintes passos: 1) tire cópias de seu RG, uma foto tipo passaporte, e preencha um questionário on-line. 2) Pague uma taxa de 100 euros com o cartão de crédito. 3) Espere entre seis e oito semanas até receber um e-mail do governo estoniano dizendo se foi aprovado ou não; 4) Se foi aprovado, você é convidado a comparecer a uma representação diplomática do país para deixar impressões digitais e apanhar sua carteirinha de e-Resident. Parabéns. Agora você pode abrir sua empresa em plena União Europeia e expandir seu negócio, participando de uma rede de e-residentes que soma 70 mil pessoas de 170 países. E pode administrar essa empresa de onde você quiser.
(A grande dificuldade para eventuais candidatos brasileiros é que não existe nenhum posto de entrega do kit de e-Resident em toda a América Latina. O posto mais próximo por enquanto é o de Nova York.)
Um backup da república digital é mantido em servidores em Luxemburgo
Os estonianos viveram a maior parte de sua história dominados por estrangeiros — alemães, poloneses, suecos, dinamarqueses e russos. Em 1940, a Estônia foi anexada juntamente com seus vizinhos bálticos (Letônia e Lituânia) pela antiga União Soviética, numa negociata entre Josef Stalin e Adolf Hitler (que tomou a Polônia). Passou 51 anos sob o domínio de Moscou. Em 1991, a União Soviética deixou de existir e a Estônia voltou a ser independente. Adotou uma política clara e decidida de livre mercado e privatizações. Em 2004, passou a fazer parte da aliança militar Otan e da União Europeia.
Essa adesão às alianças ocidentais e ao mundo capitalista exigiu muita coragem — e coragem nunca faltou aos estonianos. O país tem 294 quilômetros de fronteira com a Rússia. Um quarto de sua população é composta de russos. Em 2007, essa nova Estônia viveu sua maior crise por causa de um devastador ataque de hackers que paralisou o país e o isolou do resto do mundo. O governo da Estônia acusou diretamente o Kremlin pelo ataque. O presidente russo Vladimir Putin negou qualquer envolvimento.
Felizmente o processo de digitalização do país ainda estava bem no começo. Em vez de se sentirem atemorizados pelo ataque de hackers, os estonianos decidiram jogar na ofensiva das novas tecnologias. E se transformaram rapidamente na primeira república digital do mundo. Daí o apelido: “E-stônia”.
O ataque só incentivou o fortalecimento de suas defesas. A Otan instalou no país um centro de excelência contra ataques cibernéticos. Todos os dados coletados passaram a ganhar um backup num servidor localizado em Luxemburgo. Se ocorrer outra invasão russa (que seria a sexta desde o século 11), essa rede reserva se transformará numa espécie de governo virtual no exílio.
Presença física, em apenas três ocasiões: no casamento, no divórcio e na compra de propriedade
A Estônia é um país pequeno, pouco menor que o Estado do Espírito Santo, com 1,3 milhão de habitantes. As Forças Armadas em tempo de paz somam apenas 6 mil soldados. Sua maior defesa está sendo envolver nos negócios locais gente do resto do mundo, mesmo que remotamente, por meio da e-residência. Criaram um país digitalizado como nenhum outro: 99,6% das transações bancárias são realizadas eletronicamente. As escolas estabelecem a tecnologia como prioridade desde o ensino básico.
No país, 98% da população possui uma identidade digital única. Ela é usada em praticamente toda a vida de um cidadão estoniano, do nascimento à morte. Serve para segurança, transporte, educação, emprego, residência, vida bancária, conta de celular, eleições e imposto de renda. Todos os dados de cada habitante são centralizados numa plataforma virtual chamada X-Road.
A Estônia tem um forte caso de amor com a tecnologia digital — lá foi inventado, por exemplo, o Skype. Mas não é uma nação high-tech. Sua capital preserva a arquitetura medieval. Um empresário local, do ramo de casas pré-fabricadas, definiu bem o modo de vida dos estonianos: “Somos um povo introvertido. Não queremos ninguém por perto”. Como metade do território é ocupada por florestas, essa nova geração de empresários se instala em pontos isolados perto das árvores, onde podem trabalhar ultraconectados, mas a distância.
Pela lei, os estonianos só precisam estar fisicamente presentes em três ocasiões: no casamento, no divórcio e na compra de propriedade. O resto é tudo feito por meio de computador e aplicativos de celular. Calcula-se que dessa forma o sistema economize nada menos que 844 anos de trabalho “analógico” e 2% do PIB a cada ano que passa. Com a digitalização, tudo se tornou extremamente ágil, racional e barato.
A identidade digital oferece mais de 4 mil serviços a cada usuário. Um bom exemplo de como funciona está no sistema de saúde do país. Cada cidadão da Estônia tem todos os dados referentes a sua condição física e mental registrados num aplicativo chamado e-Ambulance: consultas, médicos, remédios que toma, medições de pressão e peso, radiografias, exames, vacinas, doenças crônicas, alergias etc. Consultas presenciais são evitadas desde 2011. O fluxo contínuo de dados sobre a condição de uma pessoa permite o monitoramento remoto de sua saúde.
Esse sistema foi posto em teste na crise da covid-19. A princípio, o país sofreu com a pandemia como todo o mundo. A diferença foi a eficiência e a agilidade na resposta à crise. Segundo depoimento do professor Erkii Karo, da Universidade de Tecnologia de Tallinn, à revista Wired, “uma vez que a crise começou, em poucas semanas criou-se uma plataforma específica em que todos os profissionais de saúde e locais de teste adicionavam dados”. Essa plataforma gerava cinco atualizações da situação por dia, permitindo a tomada de decisões detalhadas sobre a pandemia — e não apenas a exigência do generalizado “fique em casa”.
Um “juiz-robô” resolve causas que envolvem valores abaixo de € 7 mil
À primeira vista, o X-Road pode parecer um exemplo de controle social no estilo Big Brother. Não é o caso. “Os estonianos levam a privacidade muito a sério”, escreveu a consultora para transformação digital Anett Numa. “Para construir confiança, a Estônia usa transparência, assinaturas digitais e mensagens pessoais criptografadas. Mas quem é o dono real dos dados recolhidos pelas instituições governamentais? São os próprios cidadãos.” Tornou-se exemplar o caso de um policial que se serviu do sistema para vasculhar o prontuário de sua futura esposa. Ele foi apanhado rapidamente e punido com multa. Provavelmente perdeu a noiva também.
Um dos comandantes desse vasto complexo digital é um rapaz de 29 anos chamado Ott Velsberg. “Nós queremos que o governo seja o mais esbelto possível”, declarou Velsberg. Para isso, estão usando os recursos da inteligência artificial. Subsídios para fazendeiros manterem suas áreas de preservação são definidos pela análise de imagens de satélite, e não por burocratas sujeitos a corrupção. Aplicativos encaminham os desempregados para possíveis novos postos de trabalho. Cada criança que nasce é automaticamente registrada numa escola local para não precisar disputar vaga mais tarde.
O projeto mais ambicioso do governo na área de inteligência artificial é capaz de provocar pesadelos no cabidão de empregos de luxo do sistema judiciário brasileiro. Segundo a revista Wired, o Ministério da Justiça da Estônia pediu a Ott Velsberg que criasse um “juiz-robô”, capaz de resolver pequenas causas que envolvam valores abaixo de € 7 mil.
A equipe de Velsberg começou com um projeto-piloto focado em disputas contratuais. As duas partes mandam ao “juiz-robô” suas informações e documentos, acusações e defesas. O programa analisa os dados e dá o veredicto. Se uma das partes não o aceitar, pode haver apelação — e o caso vai então para um juiz de carne e osso.
A solução para quase tudo está no celular, no tablet ou no computador. Todo cidadão da Estônia tem acesso a um portal chamado “eesti.ee”, que oferece resposta às questões mais básicas da vida de qualquer um — “Fiquei doente.” “Comecei uma família.” “Nasceu meu filho.” “Estou mudando de residência.” “Quero criar uma empresa.”
Kaspar Korjus, um dos diretores do programa de digitalização do país, revelou ao site TED os planos conceituais da república digital: “O objetivo é ter 10 milhões de e-residentes até 2025, quase oito vezes a população da Estônia”. O país quer criar uma “economia da confiança” para empresários de todo o mundo — “uma bem iluminada antítese à dark web, o inferno digital infestado de traficantes de armas e drogas, pedófilos e criminosos. Queremos ser a Suíça do mundo digital. A Estônia não só está sendo governada na nuvem. Está tentando ser um país na nuvem, uma comunidade do século 21 com pessoas distribuídas mais pela rede de serviços do que pela geografia”.
A Estônia quer esmagar os focos de burocracia e distribuir o poder aos cidadãos
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O Brasil poderá um dia se tornar uma república digital? Bem, o Brasil não é a Estônia. Nossa população é 161 vezes maior; nossa realidade, muito mais complexa. Mas temos uma população que se adapta bem a novas tecnologias, mesmo em seus estratos mais pobres. E a necessidade empurra o país para a frente. Manchete do Estadão no domingo dia 13 de setembro: “Com pandemia, digitalização nas empresas [brasileiras] avança cinco anos em cinco meses”. Claro que o aparelho estatal, refém de setores privilegiados, é muito mais lento que o setor privado. Mas também vai ter de mudar. E já está mudando.
A questão levantada pela Estônia não é somente tecnológica. Existe uma filosofia de vida nesse salto dos estonianos para o futuro. Livres do comunismo, recriaram o país para que fosse capaz de resolver os problemas da população da maneira mais prática possível. Simples assim.
Nas palavras do arquiteto-chefe do Departamento do Sistema de Informação do país, Andres Kütt: “A Estônia quer esmagar os focos de burocracia e distribuir o poder aos cidadãos de maneira que o governo chegue a eles ao invés de eles terem de ir ao governo”. O bem-humorado presidente Lennart Meri transmitiu o cargo para o sucessor em 2001 com a seguinte frase: “A Estônia agora é um país normal e tedioso”.
Nos países mais bem-sucedidos, a população mal sabe o nome dos governantes. Neles, os cidadãos são os astros, não o governo. A sociedade é dinâmica. O governo é um tédio.
A propósito, a atual presidente da Estônia é uma mulher de 50 anos chamada Kersti Kaljulaid. Kersti é “de esquerda” ou “de direita”? Ela é digital.
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