No começo do século passado, quando surtos de tuberculose eram constantes pelo mundo, algumas cidades norte-americanas recorreram a um estratagema para manter as escolas em funcionamento. Providenciaram a abertura de grandes janelas para fazer circular o ar em salas de aula ou transferiram os alunos para tendas em parques e espaços ao ar livre no teto de edifícios. Foi preciso recorrer a aquecedores durante o inverno, mas a aprendizagem não ficou prejudicada nem se registraram casos de contágio. Num país de imigrantes, que lutavam para ascender na vida, a educação era considerada valiosa demais para ser deixada em segundo plano. Como continua a ser o caso, ainda hoje, em países avançados, que restabeleceram as aulas tão logo superado o pico da pandemia.
Já no Brasil, onde crianças e adolescentes podem circular por shoppings e lanchonetes, mas escolas são consideradas perigosas, a polêmica sobre a retomada do ensino se arrasta em meio a decisões judiciais contraditórias, informações desencontradas e interesses políticos. Apesar dos estudos que indicam um risco de contágio escolar muito inferior ao das situações de convívio social, e da recomendação de organizações internacionais no sentido de priorizar a reabertura, a maioria da população, segundo pesquisas, prefere adiar o reinício das aulas para após a descoberta de uma vacina contra o coronavírus. Ou seja, para sabe-se lá quando.
Em ano de eleições, esta tornou-se a deixa para que políticos de visão míope tentem prolongar o confinamento enquanto podem. Mas a conta, alertam os especialistas, será alta. Um prejuízo brutal não só para cada estudante da geração covid-19, mas sobretudo para o futuro do país. Tanto pelo impacto na economia a médio e longo prazo quanto pelo retrocesso na qualidade da educação, que já estava em situação calamitosa e deverá despencar ainda mais.
Os efeitos do lockdown escolar na economia global se estenderão até o final do século
“A população brasileira valoriza a educação da boca para fora”, lamentou em entrevista a O Estado de S. Paulo uma das mais respeitadas autoridades no assunto, a presidente-executiva da coalizão Todos pela Educação, Priscilla Cruz. “O Brasil pagará um preço muito alto por escolher abrir bar antes da escola.” Nesse sentido, o fato de o país seguir na contramão das melhores práticas educacionais, com uma das mais longas quarentenas escolares do mundo, e quase 50 milhões de estudantes desassistidos por mais de seis meses, é o retrato acabado da nossa incapacidade de superar o atraso pela via do conhecimento.
O impacto da educação, ou da falta dela, no desenvolvimento econômico e social já está mais do que estabelecido há tempos. Não apenas por estudos, mas também pelo exemplo de países como a Coreia do Sul, a Finlândia, a Irlanda, e mais recentemente a Estônia, que conseguiram alavancar seu crescimento com investimentos bem aplicados na formação de novas gerações. Mas essa correlação acaba de ser demonstrada mais uma vez, de forma contundente, em recente trabalho da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, OCDE, segundo o qual os efeitos do lockdown escolar na queda de produtividade da economia global se estenderão pelas próximas oito décadas, ou seja, nada menos do que até o final do século.
Por essas projeções, a perda de capacidades causada pela interrupção do ensino poderá encolher o PIB mundial ao longo do período em até 1,5%, em média. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, isso representaria uma redução de US$ 15,3 trilhões. E, embora o estudo não projete dados específicos para o Brasil, pode-se inferir o tamanho da encrenca para uma economia já travada há décadas por políticas equivocadas e disfunções estruturais.
Quando se muda o foco para a escala de cada criança ou adolescente, o custo das sequelas psicológicas e emocionais, alertam os educadores, também não será desprezível. Afinal, a escola não é somente o lugar em que se aprendem conteúdos, mas o espaço para a construção de habilidades sociais, redes afetivas e senso de pertencimento. Para os milhões de estudantes de baixa renda, representa ainda garantia de se alimentar e a segurança contra a violência em casa e nas ruas.
Mas é quando se projetam os prejuízos para o plano macro da educação e o futuro do país que o cenário se mostra mais catastrófico. Pois mesmo que se conseguisse voltar a alguma normalidade ainda este ano — o que parece improvável pela necessidade de adaptação a classes com menos alunos e outras normas sanitárias — não haveria muito a celebrar. Afinal, o “normal” da educação brasileira nunca foi normal, visto que nunca atendeu às expectativas. A despeito do aumento significativo dos investimentos nas últimas décadas, do gigantismo do Ministério da Educação, MEC, com seu quase meio milhão de funcionários, e do palavrório rebuscado de um sem-número de planos, fundos, normas e comissões, nossa educação já era reconhecidamente um desastre muito antes da pandemia.
O país caiu em matemática e, em leitura, metade dos estudantes mostrou-se incapaz de identificar a ideia geral de um texto
Nas últimas décadas, ampliou-se o acesso ao ensino fundamental, mas não se consegue reter os jovens nas salas de aula e a baixa qualidade do ensino define nosso estado civilizatório. Reflete-se no desemprego, na produtividade e na competitividade baixas, na violência urbana e até nas condições sanitárias. Que futuro esperar de um país no qual 27% da população em idade produtiva — mais do que uma em cada quatro pessoas entre 15 e 64 anos — é analfabeta funcional? Onde 43% dos jovens acima dos 25 anos não completaram o ensino médio e a quase totalidade dos que logram concluí-lo, 93%, sai da escola sem noções básicas de matemática?
Essa falência das políticas educacionais ficou atestada sem retoques, aliás, em dezembro passado, com a divulgação dos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes — Pisa, na sigla em inglês. Realizadas a cada dois anos pela OCDE, com 600 mil jovens de 15 anos de 80 países ou regiões, com foco nas disciplinas de linguagem, matemática e ciências, essas avaliações representam um vexame recorrente para o Brasil. Desta vez, quase metade dos participantes brasileiros (43%) não conseguiu atingir o nível mínimo de proficiência em qualquer das três disciplinas. Caímos no ranking de matemática, com um dos dez piores desempenhos do mundo. Ficamos na rabeira em leitura, já que metade dos estudantes se mostrou incapaz de identificar a ideia geral de um texto. E despencamos em ciência para o final da fila, atrás de 65 outros países ou regiões.
Há alguns dias, celebraram-se com duvidosa euforia pequenos avanços registrados nos primeiros anos do ensino fundamental por outro parâmetro, o Ideb, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Inep, do MEC. O indicador mensura a evolução da aprendizagem em português e matemática nas três etapas do ensino. A proposta é monitorar progressos a partir de metas estabelecidas com o objetivo de alcançar o patamar dos alunos dos países desenvolvidos até 2022, ano do bicentenário da Proclamação da Independência. Os dados, no entanto, mostram que só se atingiu a meta de qualidade para 2019 nos anos iniciais do ensino fundamental. Pela quarta rodada seguida, ficou-se aquém nos anos finais dessa etapa, e também nos do ensino médio.
É esse quadro já trágico que o lockdown prolongado vai tingir de tintas ainda mais sombrias, pela dificuldade de recuperar o tempo perdido. E porque o colapso da economia contribuirá para enxugar as verbas para a educação. Incluindo as do recém-aprovado Fundo Nacional de Educação Básica, o Fundeb, saudado como um remédio quase milagroso por descentralizar investimentos e possibilitar aumento do valor aplicado por aluno nos municípios. Pelos cálculos do Instituto Unibanco e do Todos pela Educação, essa redução média do investimento anual por estudante poderá chegar até R$ 1.339,00. E o dinheiro escasseará justamente quando será necessário bancar despesas extras com a implantação de ensino a distância, a redução do número de alunos por classe e adaptações de infraestrutura. Além de aumentar a oferta de vagas para acolher alunos provenientes das escolas particulares, devido ao fechamento de milhares delas ou à incapacidade das famílias de bancar mensalidades.
Não há fomento para o ensino técnico, como se uma nação se sustentasse apenas com bacharéis
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A conta não fecha, e o resultado será aumento da evasão escolar, aprofundamento das desigualdades, e um retrocesso generalizado mesmo nas pífias conquistas dos últimos anos. Há cerca de um século, a intelectual norte-americana Gertrude Stein popularizou o termo Geração Perdida, ouvido de um mecânico francês que o usava para referir-se aos jovens sobreviventes da 1ª Guerra Mundial, que carregavam lacunas em sua formação. Correremos o risco de uma situação comparável? E será que algo poderia ser feito para minorar esses danos?
Afinal, há consenso de que nossas carências educacionais já não podem ser atribuídas à escassez de verbas. O país investe em torno de 6% do PIB em educação, porcentagem comparável à de países desenvolvidos, sendo que a parcela dos gastos públicos dedicada a educação chega a ser superior à média dos próprios países da OCDE, que adotamos como referência. O desastre, portanto, resulta de outras variáveis, que incluem políticas equivocadas, descontinuidade administrativa, falta de planejamento e de gestão na aplicação dos recursos. Um daqueles típicos nós em que o Brasil acabou enredado e que parecem impossíveis de desatar sem contrariar corporativismos poderosos.
Mas não se requer um doutorado em educação para identificar as principais distorções. E elas vão muito além da ideologização do ensino, embora seja inquestionável que o pensamento marxista norteia a maioria das lideranças educacionais do país, para as quais A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, lançado há 52 anos, ainda tem o status de Bíblia Sagrada. Para começar, o Brasil privilegia investimentos no ensino superior em detrimento do básico, quando parece óbvio que uma base sólida na etapa fundamental é pressuposto para o desempenho nas seguintes. Não se investe em creches, embora esteja mais do que provado que os primeiros anos de vida são determinantes para o desenvolvimento de capacidades intelectuais futuras. Também não há fomento para o ensino técnico e profissionalizante, como se uma nação se sustentasse apenas com bacharéis, a única vocação de valor.
Ensina-se a questionar antes que os estudantes tenham desenvolvido a capacidade de pensar
O currículo adotado é outro problema, já que não prioriza a competência em disciplinas essenciais — como português, matemática, ciências e história —, a exemplo dos países avançados e do que faz Portugal, que em pouco mais de uma década saltou do final da fila dos países europeus para superar a campeã Finlândia em vários índices. Fruto de anos de discussões bizantinas, nossa Base Nacional Curricular favorece as chamadas disciplinas transversais, voltadas à cidadania e ao pensamento crítico. Em suma, ensina-se a questionar antes que os estudantes tenham desenvolvido a capacidade de pensar.
Acima de tudo, porém, e ao contrário do que fazem todos os países de alto desempenho, o Brasil precisaria valorizar o magistério, garantindo não apenas salários à altura das responsabilidades do ofício, mas também condições de formação e trabalho adequadas. Na educação, repete-se a distorção característica do funcionalismo público em geral, pela qual o servidor que atua na ponta da prestação de serviços ao cidadão ganha substancialmente menos do que as elites administrativas. Assim, a remuneração dos professores passa longe da dos estamentos superiores da burocracia educacional lotada nos ministérios, secretarias e seus anexos.
Ou seja, consertar o rumo da educação brasileira — e, por conseguinte, o futuro do país — exigiria ir muito além das medidas emergenciais voltadas para a retomada do ensino. Demandaria uma reestruturação radical de políticas, do sistema e de mentalidade. Especialmente em vista das transformações provocadas pela revolução digital na economia e no mercado de trabalho, que demandará daqui para a frente profissionais capazes de atuar de forma autônoma e continuar aprendendo ao longo da carreira. Afinal, parece comprovado que Marx se equivocou ao teorizar que a luta de classes seria o motor da história. A realidade tem evidenciado que o verdadeiro dínamo da evolução humana é o conhecimento.
Revista Oeste