domingo, 2 de agosto de 2020
Corrida pela vacina da covid-19 explica fundamentos de Economia
Desde que estourou a pandemia do novo coronavírus diversas medidas de precaução foram tomadas.
A impressão que se tem é de que a vida só voltará efetivamente ao normal quando houver uma vacina eficaz contra o vírus chinês, covid-19.
A corrida pela vacina, porém, é emblemática para explicar como funciona a economia.
Veja a seguir:
Desde que estourou a pandemia do novo coronavírus diversas medidas de precaução foram tomadas: isolamento social, adoção do home office e do ensino remoto e até mesmo o fechamento de fronteiras foi determinado por diversos países com o objetivo de conter a propagação da doença. Por mais que em muitas localidades a reabertura das atividades já esteja ocorrendo, a impressão que se tem é de que a vida só voltará efetivamente ao normal quando houver uma vacina eficaz contra a covid-19.
Nesta semana, foi anunciado que três pesquisas, vindas do Reino Unido, China e Estados Unidos, tiveram resultados positivos registrados: foram as vacinas produzidas pela Universidade de Oxford, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca; pelo Instituto de Biotecnologia de Pequim; e pela farmacêutica americana Pfizer, que trabalha em parceria com a empresa alemã de biotecnologia BioNTech.
Além disso, a Rússia afirmou que em duas semanas devem registrar um imunizante – nenhum dado científico, contudo, foi divulgado pelas autoridades russas.
Não há dúvidas que a indústria farmacêutica é uma das mais competitivas e polêmicas do mundo – alegações de que ela é movida somente pelo lucro, sem se preocupar de fato com o bem-estar dos consumidores, não faltam. Fato é que a corrida pela vacina que seja capaz de imunizar com eficácia a sociedade contra o novo coronavírus é emblemática para explicar como funciona a economia.
Concorrência
Quando se fala em “corrida”, é natural pensar em “concorrência”. Trata-se, de forma resumida, de uma disputa entre empresas de um determinado segmento de mercado pelos clientes, podendo se dar via preço (uma empresa tenta conquistar o cliente oferecendo valores mais baixos pelo produto ou serviço), pela diferenciação do produto (com melhorias ou características exclusivas) ou valorização da marca (os consumidores atribuem à marca uma melhor qualidade, seja ela real ou não), comum quando o foco são produtos de grife.
O professor Paulo Dutra Costantin, coordenador do curso de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), esclarece que a concorrência pode ser explicada da “menor para a maior”: monopólio, que pode ser natural ou decorrente de legislação; duopólio, com duas empresas competindo entre si ou fazendo acordos de preços entre elas; oligopólio, que pode ou não ser concentrado, quando algumas poucas empresas têm uma participação muito grande do mercado (cerca de 70 ou 80% do domínio); concorrência monopolística, que se trata de uma concorrência imperfeita, quando várias empresas são as únicas produtoras de sua própria marca, que podem ser facilmente substituídas umas pelas outras; e, por fim, há a concorrência perfeita, quando nenhum participante de mercado tem poder suficiente para definir o preço de um mesmo produto. O caso da vacina da covid-19 é, provavelmente, de concorrência monopolística.
“Mas ainda não temos noção de como essa concorrência vai ocorrer, quais serão os efeitos da vacina, se uma única dose será suficiente para conferir imunização por toda a vida. Teremos várias empresas produzindo vacinas com, exatamente, o mesmo efeito? Se for assim, a concorrência será relevante para que haja a redução de preços e ganho maior de mercado”, pontua o professor. “Como as fórmulas serão patenteadas – cada empresa tem a sua -, será uma concorrência monopolística. Não podemos falar também que é uma concorrência igual para todos, pois vários laboratórios estão recebendo subsídios de governos”, complementa.
Lucro de monopólio e escassez total
Ocorre que, por um momento, é provável que tenhamos apenas uma vacina disponível – é praticamente impossível que todas as candidatas a vacina sejam patenteadas e colocadas o mercado exatamente no mesmo tempo. Nesse período em que houver apenas um produto disponível, portanto, será verificado um lucro de monopólio.
“Isso vai ocorrer enquanto uma farmacêutica for a única produtora do imunizante, para o qual não haverá, até aquele momento, substitutos próximos. Esse é o sonho de todo empreendedor: ser monopolista na venda de um produto desejado pelo mundo inteiro. Com isso, ele ganha poder de mercado, ou seja, consegue aumentar o preço do seu produto acima do ‘normal’, sem ter receio de perder clientes para outros vendedores”, diz Guilherme Stein, economista e professor da Escola de Gestão e Negócios da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
O economista também lembra que, quanto à vacina da covid-19, encontramo-nos não numa situação de escassez, quando há disparidade entre a demanda por um produto e serviço e sua quantidade disponível, mas de escassez total, visto que, apesar de haver uma enorme demanda potencial pelo produto, ele, simplesmente, ainda não existe.
Preço
Provavelmente não há uma pessoa no mundo que não esteja ansiosa pela vacina que vai imunizar contra o novo coronavírus. Junto com a ansiedade, contudo, vem a dúvida (bastante justa, aliás): quanto será que vai custar uma dose? Se estivermos diante de uma situação de monopólio, afinal, ainda que por um curto período de tempo, a empresa poderá influenciar o preço do bem comercializado. Alguém terá coragem de esperar outra vacina surgir para daí ser imunizado?
Stein diz que a formação de preço numa economia de mercado se dá por dois componentes: custo de produção e a disposição que os consumidores têm quanto ao pagamento pelo produto ou serviço. Segundo o professor da Unisinos, é o segundo fator que acaba tendo maior influência na indústria farmacêutica.
“No caso do mercado de medicamentos e vacinas, os maiores custos de produção são os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), que são gastos na etapa anterior a produção do medicamento. Uma vez descoberta a vacina, o custo de produção de uma dose adicional é provavelmente muito baixo, o que faz com que o custo médio de produção de uma dose tenda a ser decrescente. Por esse motivo, o principal fator determinante do preço não é o custo de produção da dose, mas sim a disposição a pagar dos consumidores. No caso da covid-19, a disposição a pagar dos consumidores por uma dose da vacina provavelmente é muito alta e pouco sensível ao preço. Isso será verdade, principalmente se não houver substitutos próximos a vacina em questão”, afirma.
Assim, o preço tenderia a ser elevado num mercado no qual os consumidores são compradores individuais. Tudo indica, porém, que grande parte da compra de vacinas contra o coronavírus seja feita por governos, o que muda um pouco o jogo. Isso porque a presença de poucos e grandes compradores tenderá a reduzir o poder de mercado da empresa que produz a vacina.
O papel da inovação
O que a corrida pela vacina da covid-19 nos mostra é que a concorrência é um ingrediente quase que fundamental para a inovação. É por meio da diferenciação entre produtos ou da criação de novos é que as empresas conseguem se livrar ou ter vantagem sobre seus concorrentes.
“O bilionário Peter Thiel, fundador do PayPall e investidor-anjo do Facebook, costuma dizer que o empresário bem-sucedido deve buscar ser o monopolista naquilo que vende. É o medo da concorrência acirrada que motiva o empreendedor a a inovar. Ele faz isso para justamente fugir da concorrência, buscando a tranquilidade, mesmo que temporária, do monopólio. Em certo sentido, o processo de inovação é uma consequência ‘não intencional’ da concorrência, uma vez que, se houvesse uma forma mais fácil de ter poder de monopólio naquilo que vende – por exemplo, conseguido privilégios estatais – o empresário não inovaria”, opina Stein.
Paulo Dutra Costantin concorda. Na área da saúde, o professor lembra do desenvolvimento da penicilina, capaz de evitar que as pessoas morressem em decorrência de gripes simples (não como a causada pelo coronavírus, obviamente). Na “guerra de inovação tecnológica”, as empresas que saírem na frente conseguirão aumentar de forma significativa a sua reputação.
“Eu gosto também de usar o exemplo da Fórmula 1; podemos ver a quantidade de inovações que são colocadas mensalmente nas corridas, como melhorias nos carros, testes, mecanismos, que ocorrem de um Grande Prêmio para o outro. No setor farmacêutico, temos muitas demandas: câncer, doenças do coração, doenças degenerativas… Mas nada que trouxesse uma quantidade de mortes tão grande e num curto período de tempo quanto a covid-19, o que estimulou ainda mais a inovação”, diz.
Valorização das ações
E inovar acaba tendo como consequência quase que lógica a valorização da empresa. As ações da empresa alemã BioNTech, que trabalha com a Pfizer no desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus, mais que triplicaram desde que a corrida pelo composto começou.
Os especialistas explicam que o preço fundamental da ação de uma empresa, de forma resumida, diz respeito à expectativa dos lucros futuros da companhia. Se a percepção de que uma empresa passará a lucrar mais futuramente, é natural que o processo de competição pela compra de uma parcela da empresa – um lote de ações – faça com que o preço dela acabe subindo.
“O aumento no preço das ações das empresas que estão desenvolvendo vacinas para a covid-19 é causado pela expectativa de que, caso elas sejam bem-sucedidas nesse processo, seus lucros futuros aumentarão significativamente. Para explicar essa lógica, podemos usar a seguinte analogia: imagine que você tem um bilhete da Mega Sena e que, até agora, dos quatro números sorteados, todos estão em seu bilhete. Se você quisesse vender o seu bilhete naquele exato momento para outra pessoa, muito provavelmente ela estaria disposta a pagar um bom valor. Agora, suponha que uma quinta dezena seja sorteada e ela corresponda a mais um número que você escolheu. O valor pelo qual o seu bilhete poderia ser vendido subiu muito, não é mesmo? Isso ocorre porque houve um aumento na
expectativa de que ele seja premiado. Da mesma forma, quanto mais perto uma empresa estiver da vacina, é mais provável que seus lucros futuros aumentem e, portanto, maior será a demanda por um pedaço dessa empresa”, pontua Guilherme Stein.
Imaginário popular
Sobre os possíveis louros que serão colhidos pela empresa que conseguir ser a primeira a colocar um imunizante do coronavírus no mercado, os professores entrevistados pontuam, em primeiro lugar, a já comentada valorização de mercado. Isso por dois motivos: o primeiro se trata do efeito direto da descoberta da vacina, enquanto o segundo está ligado à valorização da marca.
“Ter descoberto uma vacina para a covid-19 colocará a marca no imaginário de toda a população mundial e, com isso, não só a sua vacina, mas todos os seus produtos se tornarão mais diferenciados, o que aumenta o poder que a companhia tem para formar seus próprios preços sem se preocupar muito com a concorrência”, opina Stein.
No mesmo sentido, Paulo Dutra Costantin, da Faap, diz que o primeiro laboratório a vender doses da vacina terá uma demanda inelástica, o que faz com que a empresa coloque no produto o maior preço possível, se assim desejar. Ele acredita, porém, que o monopólio do imunizante da covid-19 tende a durar pouco tempo.
“Imagino que as farmacêuticas vão acabar desenvolvendo essas vacinas em um período de tempo muito curto entre elas, porque todas estão buscando desenvolver isso rapidamente. A primeira a conseguir vai acabar ficando, apenas, com a reputação de ter sido a primeira, mas não vai ter tempo hábil de ter um retorno como monopolista”, acredita.
Murilo Basso, O Estado de São Paulo