sábado, 22 de agosto de 2020

"A nova religião dos anti-racistas", por Sean Collins, da Spiked

Nos EUA pós-protestantismo, a wokeness surge como a fé do branco culpado que se vê como um racista em desconstrução


O antirracismo encontrou sua vertente metafísica na wokeness, a religião que acredita numa culpa genética que todo branco carrega. Nos rituais da wokeness, pessoas brancas lavam os pés de pessoas negras e pedem perdão. Termos como “culpa branca” e “privilégio branco” são tratados como o Pecado Original costumava ser — coisas pelas quais a humanidade deve para sempre se redimir.

Uma pessoa que há bastante tempo tem investigado o fervor religioso da política cada vez mais moralista dos dias de hoje é o ensaísta e escritor Joseph Bottum. Seu livro An Anxious Age: The Post-Protestant Ethic and the Spirit of America, de 2014, parece quase profético. Nele, Bottum argumenta que o declínio do protestantismo tradicional nos Estados Unidos levou os progressistas a transferir suas paixões, seus hábitos e suas crenças religiosas para o universo da política, moralizando-o no processo. A wokeness é apenas um reflexo desse fenômeno. Nossa era do “pós-protestantismo”, segundo Bottum, erodiu o limite entre o religioso e o político, instilando na política o discurso e a metafísica típicos da religião.

Joseph Bottum recebeu a Spiked em sua casa, na região de Black Hills, em Dakota do Sul, para uma conversa sobre o momento político contemporâneo, o antirracismo woke e o fenômeno da cultura do cancelamento.

Eis a entrevista.

Como o senhor aponta em An Anxious Age, o colapso do protestantismo histórico (isto é, as denominações protestantes mais antigas, não evangélicas) nos Estados Unidos é impressionante. Em 1965, mais de 50% dos norte-americanos pertenciam a congregações protestantes. Agora são menos de 10%. Por que, a seu ver, esse colapso é tão significativo para a sociedade e a política dos Estados Unidos?

No livro A Democracia na América, Alexis de Tocqueville (1805-1859) identificou a corrente central dos Estados Unidos como fundamentada na moral e nos costumes. Por mais que muitas escolas rivais entrassem em disputa umas com as outras, havia esse eixo. E foram as igrejas do protestantismo histórico que forneceram aos Estados Unidos essa moral e esses costumes.

As igrejas históricas ajudaram a definir a cultura norte-americana de diversas maneiras. Em primeiro lugar, todas eram basicamente apolíticas, o que teve um efeito profundo na cultura. Por exemplo, nunca houve um grande romance político norte-americano. Uma prostituta francesa em um livro de Émile Zola (1840-1902) sabe mais de política que os heróis dos maiores romances norte-americanos. O que significa ser norte-americano? No auge do nível artístico, é estar preocupado com o cosmo e com o eu. A política é incidental em Moby DickA Letra Escarlate e As Aventuras de Huckleberry Finn. E isso se dá porque o protestantismo histórico tornou a política secundária ao que considera mais importante — a salvação e o eu.

Em segundo lugar, o protestantismo histórico definiu a estrutura da família e a forma da vida cotidiana — batismos, casamentos e funerais. Ele efetivamente moldou a vida social das comunidades. Quando Tocqueville fala sobre essas associações não governamentais nos Estados Unidos que considerou tão fascinantes, os dois exemplos que dá são departamentos de bombeiros voluntários e sociedades funerárias. As pessoas se juntavam para garantir que teriam fundos, e participantes, para o funeral umas das outras. Esse protestantismo também vai dar forma à ideia da família nuclear, oferecer uma noção de arco da vida e definir como pensamos a política. Então, quando 50% do país pertencia a essas igrejas, elas ainda estavam formatando a vida social.

A terceira coisa que o protestantismo nos deu foi uma linguagem compartilhada da Bíblia. Quando perguntaram a Adlai Stevenson (1900-1965), ex-governador democrata de Illinois, por que decidiu concorrer à Presidência uma segunda vez, em 1956, ele respondeu: “Não foi como Paulo e a estrada para Damasco”. Havia uma suposição cultural de que as pessoas entenderiam esse tipo de referência bíblica. Isso também conferia uma unidade à cultura norte-americana. Por mais que os luteranos não fossem iguais aos metodistas, e assim por diante, as igrejas tradicionais compartilhavam o que Tocqueville chamou de corrente central, a corrente principal da vida norte-americana.

Nos anos 1970, o protestantismo histórico começou a ruir. É quando emerge a questão sobre o que poderia substituir sua centralidade na cultura norte-americana. Entre os anos 1990 e 2000, o catolicismo parecia ter potencial para ocupar o espaço. Isso não aconteceu, principalmente porque o protestantismo liberal não desapareceu — ele só se transformou em pós-protestantismo.


“Não há como ver os ativistas se ajoelhando ou balançando enquanto seguram velas e não admitir que isso é movido por um desejo espiritual”

Então, agora vivemos nos Estados Unidos pós-protestantismo. Mas o senhor argumenta que as crenças, a mentalidade e os costumes que moviam o antigo protestantismo não foram abandonados e sim projetados no universo político. O pecado continua uma preocupação, embora redefinido como pecado social, preconceito e racismo?

Sim. Existe uma questão extraordinária aí. Walter Rauschenbusch [um teólogo norte-americano e figura-chave no movimento do Evangelho Social do fim do século 19 e começo do 20] lista seis tipos de pecado social. Se você percorre a lista, são exatamente as objeções dos radicais de agora: preconceito, ignorância dos não educados, poder, corrupção, militarismo e opressão. Isso se alinha perfeitamente à agitação dos ativistas do Black Lives Matter.

O que estamos vendo agora é uma amplificação do que escrevi há seis anos: uma intensa fome espiritual que não tem escoadouro. Não há como ver as pessoas ajoelhando-se, ou cantando “Mãos ao alto, não atire”, ou se balançando enquanto seguram velas, e não admitir que isso é movido por um desejo espiritual. Observei o fenômeno ao escrever sobre o movimento Occupy Wall Street. Há uma intensa fome espiritual que está se manifestando de modo violento. Porque para os pós-protestantes o mundo é uma afronta e somos todos pecadores.

Como uma continuidade a An Anxious Age, escrevi o ensaio “The spiritual shape of political ideas” [A forma espiritual das ideias políticas]. A primeira ideia que abordei foi a culpa — que existe uma culpa inerente que advém de ser branco. Essa ideia tem a mesma forma lógica e a mesma operação psicológica que o Pecado Original. O problema é que, diferentemente do Pecado Original, não existe salvação da culpa branca. Como você chega ao entendimento de que precisa de salvação? Pelo reconhecimento cada vez mais profundo do seu pecado. Daí, faz todo o sentido o ritual proposto pela wokeness.

Da mesma forma, há a proscrição e o ostracismo. A cultura do cancelamento é apenas a forma mais recente e virulenta da ideia religiosa da proscrição, em que as pessoas são forçadas a reconhecer sua culpa. Dois anos atrás, The Nation publicou um poema sobre um pedinte mais velho dando conselhos a um mais novo sobre como fazer as pessoas lhe darem dinheiro. As hordas do Twitter foram atrás do poema, sob o pretexto de que o poeta era um homem branco de Minnesota. A revista se desculpou e o poeta pediu perdão por ter escrito os versos. É isso que essa proscrição busca. Se você profana e é proscrito do Templo, a única maneira de voltar é tornar-se fanático. Terá de convencer as pessoas de que entendeu o tamanho de sua culpa. E mesmo assim não estou certo de que exista um caminho de volta.

Pelo menos, um dos efeitos da proscrição é assustar e manter todos em silêncio. Seu propósito é fazer com que as pessoas sejam demitidas, levá-las além do limite, tirá-las do campo de visão. Isso ocorre por duas razões. A primeira é garantir que não sejamos infectados por esse pecado. A segunda é uma declaração pública de nosso poder. Ela diz: “Veja como somos poderosos: podemos fazer o que quisermos com as pessoas”.

Vivemos tempos estranhos. Mas entender as raízes históricas desses radicais como pós-protestantes, bem como a fome espiritual que não tem vazão para eles, nos ajuda a entender o fenômeno.


“Se tudo é uma questão de mazelas sociais, então você sabe que é uma boa pessoa se se opuser a essas mazelas sociais, se for antirracista, mesmo que não faça nada”


Qual a ideia de salvação nessa era pós-protestantismo?

Vamos analisar a pergunta “Como você sabe que foi salvo?”. No passado, as pessoas diriam “Porque eu acredito em Cristo” etc. Mas a versão moderna dessa pergunta é “Como você sabe que é uma boa pessoa? E como pode comprovar sua bondade?”. No fim das contas, é a mesma pergunta de Max Weber (1864-1920) em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo — e Weber diz que essa ansiedade por salvação tem consequências econômicas e políticas. Vamos aplicar a análise weberiana e perguntar quais são as consequências de se preocupar com a salvação nos termos atuais. Se tudo é uma questão de mazelas sociais, então você sabe que é uma boa pessoa se se opuser a essas mazelas, se for antirracista, mesmo que não faça nada. Você está convencido da própria salvação, é um dos Eleitos se adotar essa postura de se opor aos grandes pecados.

Agora, os millennials não vão aceitar a hipocrisia de que você é uma boa pessoa mas não está fazendo nada de fato. Eles se tornaram violentos na cobrança das comprovações de que você é mesmo “do bem”.

Há, então, um choque geracional?

Sim. E os membros jovens dessa tribo dos Eleitos estão vencendo a elite mais velha. Millennials da equipe do The New York Times forçaram James Bennet, editor de opinião, a pedir demissão. E isso é inacreditável. Qualquer velho editor de jornal que conheci — em gerações antes da minha — teria olhado para uma carta assinada por centenas de funcionários jovens criticando uma decisão editorial e dito “Sinto muito que vocês estejam se demitindo”.

Sim, os líderes de hoje nas universidades e instituições culturais parecem carecer de espinha dorsal. Eles abraçaram a retórica politicamente correta por anos, mas é como se não acreditassem nela de fato e agora os mais jovens cobram ações radicais.

É isso mesmo. Os millennials não vão tolerar o que consideram hipocrisia. Isso é uma parte. A segunda parte é, quando veem velhas figuras de poder tremendo, começam a pensar: “Por que nós não estamos em posições de poder?”. O velho consenso liberal desapareceu por completo e a nova fala tornou-se muito radical.

Muita gente consegue ver como a política assumiu esse fervor religioso que o senhor identifica. Por outro lado, o despertar da fúria não poderia ser apenas uma reação racional à brutalidade policial racista?

A raça é o problema que nunca solucionamos nos Estados Unidos. Na era da reconstrução, na sequência da Guerra Civil, perdemos a vontade nacional de resolver a questão. A segregação foi perversa, perdendo apenas para a escravidão, mas não por muito. E o Estado do bem-estar da Grande Sociedade dos anos 1960 tinha claramente provado ser um fracasso. Então, nunca resolvemos esse desafio.

Minha objeção é à ideia de que um sentimento profundo será capaz de solucionar o problema da raça. Ou que ideias absurdamente utópicas como acabar com a polícia poderão ajudar. Não vivemos em uma utopia, e essas ideias só causarão mais problemas. Os Eleitos não foram chamados à responsabilidade. Seus membros estão apenas fazendo objeções por razões que são pelo menos 50%, provavelmente mais, emocionais. O que significa que só estão se manifestando para se sentir bem consigo mesmos. Olhando para isso de qualquer forma objetiva, trata-se de algo muito irresponsável. Isso vai gerar mais irresponsabilidade em nome da própria presunção. É o que chamo de autoamor ou auto-ódio. Significa “Sou um pecador tão grande, mas não sou maravilhoso por saber que sou um pecador?”. A irresponsabilidade surge porque eles não estão governando.


“Não importa se existe alguma verdade objetiva. A única coisa que importa é sua posição. Você é um de nós ou um deles?”


Uma pessoa branca declarar sua culpa, dizer “tenho privilégio branco, como na wokeness, não faz nada para lidar com a desigualdade racial ou mudar as circunstâncias materiais dos negros norte-americanos. Parece muito autocentrado, narcisista.

É uma maneira de dizer a si mesmo que você sabe que foi salvo, que é uma boa pessoa.

Também noto uma tendência de evitar análises detalhadas das condições econômicas e sociais, ou reformas políticas concretas. Em vez disso, a questão da raça depois de George Floyd é uma simples denúncia moral, uma referência vaga ao “racismo sistêmico. Você ouve “Por que preciso continuar explicando isso?”“Estou tão cansado” etc., como se a questão estivesse para além do debate.

Certo. Mas o mesmo ocorre com a definição da Igreja. É uma forma de dizer que ou você tem esse sentimento ou não tem. Se não tiver, é mau. Se tiver, é bom. A teologia cristã e sua prática espiritual lidaram com isso por milênios. Essa é a distinção que João Calvino (1509-1564) faria entre justificação e santificação. A ideia aqui é que não precisamos mais argumentar, porque qualquer discussão sobre isso é envolver-se com pessoas além do limite. Elas estão fora da Igreja, são profanas. Estão apenas erradas. Sobre o que estão erradas? Sobre o sentimento central de bondade moral. Essa é a tentativa de fazer que os outros se calem.

Estamos vivendo em uma era do ad hominem [falácia identificada quando alguém procura negar uma proposição com uma crítica ao autor]. A maneira fundamental de responder a uma questão é dizer algo sobre a pessoa que a fez. Como sabemos que os outros estão errados? Estão errados porque algumas pessoas ruins disseram a mesma coisa. Bari Weiss [ex-editora de opinião do The New York Times] deve estar errada [sobre o ambiente progressista do NYT], porque o senador Ted Cruz retuitou. No centro do debate não está o conteúdo do que foi dito, e sim quem disse. Não importa se existe alguma verdade objetiva ou não. A única coisa que importa é sua posição. Você é um de nós ou um deles?

Se eu puder mostrar que você é um deles, então sua única reação é pedir desculpas miseravelmente. Você não sabia que estava juntando seu dedo do meio com o polegar e fazendo um símbolo da supremacia branca. Mas isso não interessa. Um motorista hispânico que trabalhava para uma empresa de energia na Califórnia foi demitido porque sua mão estava fora da janela do carro, com o dedo médio tocando o polegar. Uma mulher o fotografou e o denunciou nas redes sociais como supremacista branco. A empresa o demitiu. É realmente espantoso.

O pior exemplo de jornalismo da minha vida apareceu no Washington Post em junho deste ano, sobre uma festa de Halloween que tinha ocorrido dois anos antes. Uma mulher foi à festa usando blackface. Qualquer editor do passado teria dito: “Essa é uma história antiga sobre uma figura anônima. Voltem e me tragam notícias de verdade”. Em vez disso, o jornal dedicou 3 mil palavras ao caso. Quando você chega ao fim da matéria, descobre que a mulher fora demitida. A empresa para a qual ela trabalhava tomou a decisão durante a apuração da matéria do Post, ao ser procurada pelos repórteres.

Não é suficiente ser um dos mocinhos, estar do lado certo. Você não pode ser atacado por nenhuma acusação. Precisa estar em constante expiação. O modo de contrição miserável permanente é mais bem compreendido em suas abordagens religiosas. É isso que você obtém quando a Igreja de Cristo se torna a igreja sem Cristo, e as antigas preocupações protestantes adentram a esfera pública, a política, separadas e liberadas de suas velhas amarras. Parafraseando G. K. Chesterton (1874-1936), o mundo está cheio de ideias cristãs que enlouqueceram.

Por que os Eleitos precisam chegar ao ponto do “cancelamento”?

Veja, você não iria querer que um adorador de Satã aparecesse na sua igreja num domingo. Você o expulsaria. Mas claro que essas pessoas não vivem mais em igrejas. É isso que acontece quando essas antigas ideias se liberam e se tornam modos de comportamento na política. Elas não querem essas pessoas em sua igreja, mas a igreja delas é a política. Sua congregação é o Twitter. Elas querem que essas pessoas não existam, que sejam banidas. É para isso que serve a proscrição, para fazer as pessoas confessar seus pecados, constatar sua pecaminosidade. É isso que estamos fazendo agora —  só que a igreja, o lugar de fé, não é mais sua congregação dominical. É a vida pública.

Essa demanda de que a política de alguma forma solucione tudo é uma noção religiosa e apocalíptica da política. Por centenas de anos, a jurisprudência dos Estados Unidos se preocupou com o impacto da religião na política. O que é de fato extraordinário é que a política está se tornando religiosa, embora isso seja feito em nome da antirreligiosidade.


Joseph Bottum é ensaísta, editor e autor de diversas obras de poesia, ficção e não ficção, incluindo An Anxious Age: The Post-Protestant Ethic and the Spirit of America e, mais recentemente, The Decline of the Novel.

Sean Collins é escritor e vive em Nova York. Visite seu blog, The American Situation.

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