O STF continua a impedir o acesso ao inquérito secreto das fake news por parte dos advogados das dezesseis vítimas de prisões arbitrárias, ocorridas em julho. Muitas delas também sofreram suspensão de seus perfis nas duas redes sociais mais importantes, Twitter e Facebook.
As vítimas foram jornalistas, empresários e políticos, entre outros. Ninguém sabe o exato teor do inquérito, pois é sigiloso, mas o Min. Relator alega que foi instaurado para apurar notícias falsas, sem explicar quais foram elas.
A própria abertura do inquérito no Supremo Tribunal Federal – STF decorreu de uma interpretação errônea do art. 43, do seu Regimento Interno, que autoriza a instauração de inquérito pelo Presidente do STF quando ocorrer infração penal na área do Tribunal e cujo responsável seja “pessoa sujeita à sua jurisdição”.
Os regimentos são normas administrativas cuja função é, apenas, regular o exercício de competências previamente estabelecidas na Constituição ou nas leis, pois, no Brasil, vige o Princípio da Legalidade, expresso em inúmeros artigos constitucionais.
O Código de Processual Penal - CPP, em seus artigos 4º a 13, institui o procedimento do inquérito e atribui às autoridades policiais a competência para instaurá-los e conduzi-los. Em consequência, qualquer norma regimental que disponha em sentido contrário, atribuindo competência a juízes, por exemplo, colidirá com o CPP e será nula.
Ainda que fosse constitucional, o referido art. 43 seria aplicável apenas quando o pretenso crime fosse cometido com a participação das poucas autoridades diretamente submetidas à jurisdição penal do STF. Nenhuma delas consta entre as indiciadas, o que agrava a ilegalidade.
É lógico que qualquer processo criminal, em tese, um dia pode chegar à mais alta corte.
Contudo, se essa possibilidade justificar a instauração antecipada do respectivo inquérito no STF, o Supremo se transformaria no órgão policial único do país, o que não faz o menor sentido.
Cabe ao Legislativo tipificar os crimes, ao Executivo tentar impedi-los e investigar os cometidos e ao Judiciário julgar os responsáveis. Assim funciona o Princípio Estrutural da Separação entre os Poderes.
A conduta do STF usurpa as funções legislativa, porque acusa em relação a fatos que não constituem crime, executiva, na medida em que se arroga no direito de apurar administrativamente os alegados fatos, e até a função judiciária dos juízes de primeira instância, que seriam competentes para julgar os fatos se constituíssem crimes.
Em resumo, o inquérito secreto das fake news ofende a Constituição e as leis pelos seguintes motivos:
1 - Inquéritos somente podem ser instaurados para apurar fatos determinados e que se enquadrem em tipos penais. O inquérito das fake news trata de fatos indeterminados (críticas genéricas ao STF e seus Ministros) e que não constituem crime, por não se enquadrarem em nenhum tipo penal. A utilização frequente de adjetivos pelo próprios Ministros do STF, como ódio e fake, não supre a ausência de fatos típicos. Apenas demonstra o quanto os julgadores-vítima já se afastaram da essencial neutralidade.
Acresça-se que a Suprema Corte não teve ao menos a consideração de informar quais foram as notícias tidas como falsas e que alcance tiveram (curtidas, comentários e compartilhamentos), para que a sociedade pudesse avaliar a veracidade das acusações e a importância efetiva das opiniões e notícias. Essa omissão, além de desrespeitar o direito de defesa dos acusados, ainda importa em desprezo pela coletividade, que custeia o Poder Público e é a destinatária final da proteção que justificaria o inquérito;
2 - O STF não tem competência legal para instaurar inquérito algum, mais ainda em relação a fatos pretensamente cometidos por pessoas que só podem ser julgadas por juízes de primeira instância;
3 - Os poucos fatos que vieram a público consistem em opiniões e divulgações de informações, condutas que a Constituição garante serem livres e não passíveis de qualquer forma de restrição, em seus arts. 5º, incisos IV e IX, e 220, caput e § 2º;
4 - Em sentido oposto à conduta censuradora do STF, o inciso V, do referido art. 5º, é claro ao determinar que a solução para a crítica lesiva ou falsa é o direito de resposta, acrescido de indenização. Não há espaço constitucional para restringir manifestações de opinião sob a alegação de que podem vir a ser falsas ou ofensivas.
Vivemos um triste momento da história brasileira, em que as liberdades são rasgadas por quem deveria protegê-las, e com apoio dos grandes órgãos de imprensa, ansiosos pelo retorno ao monopólio da informação e opinião.
Fernando Lemme Weiss. Advogado
Jornal da Cidade