A necessidade de restrições ocasionais não deve abalar os fundamentos do verdadeiro liberalismo, sustentado no “inovismo” e no “adultismo”
Estamos em uma guerra, diz o presidente Donald Trump, contra um inimigo oculto. É assustador, e ainda mais assustador o que isso pode gerar na sequência.
O grande economista e historiador Robert Higgs argumentou muito tempo atrás que as guerras do século 20 levavam regularmente a expansões permanentes de governos. Precisa haver uma razão por que todos os níveis de governo em um país típico gastam hoje 40% do PIB, ao passo que, em 1910, no mundo inteiro, eles gastavam cerca de 10%. Nos séculos anteriores, a guerra era vista como um hobby dos reis. Consulte as primeiras cenas do drama shakespeariano Henrique V.
Em 1815, depois de a Grã-Bretanha ter passado um século destruindo a França na guerra — do rei Guilherme e da rainha Maria até o rei Jorge III —, às vezes apropriando-se de partes surpreendentemente grandes do PIB privado britânico para fazê-lo, isso parou. Na economia, o peso dos gastos da supervisão do governo e do recrutamento de pelotões diminuiu instantaneamente. Em poucas décadas, o governo britânico foi capaz de quitar suas dívidas consolidadas, que, assim como nos Estados Unidos em 1945, tinham chegado ao dobro do PIB em 1815. Nos EUA, depois, a proporção diminuiria um pouco, aumentando na Guerra da Coreia e em cada uma de nossas guerras não declaradas. Nunca esteve a uma distância considerável de zero.
Alguma coisa, em outras palavras, estava estranha no século 20. E a guerra está sempre conosco. Acho que a estranheza estava no universo das ideias, em especial o surgimento do socialismo. O economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946), que contribuiu muito para o florescimento do socialismo nos países livres, entre pessoas de boa vontade, disse em 1936 que “loucos por autoridade, que ouvem vozes no ar, estão destilando seu frenesi por alguns acadêmicos menores de alguns anos atrás”. E completou: “Tenho certeza de que o poder dos grandes interesses é amplamente exagerado se comparado com a usurpação gradual das ideias”.
Guerras são utilizadas como desculpa para a implementação de ideias bizarras
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As guerras — assim como na atual guerra contra o novo coronavírus — eram usadas como desculpa para implementar ideias bizarras de professores europeus e seus revolucionários. Até mesmo em países sem muitas guerras, como os da América Latina, ideias socialistas pegaram carona com o nacionalismo, chegaram até o governo e aumentaram seu tamanho. A maioria votando sem dúvida também contribuiu. H. L. Mencken (1880-1956), o rabugento de Baltimore, escreveu um século atrás que “a democracia é a teoria de que as pessoas comuns sabem o que querem e merecem recebê-lo integralmente”.
Se você votou no socialismo e no nacionalismo em suas formas atualizadas para o século 20, era fácil votar no populismo, no peronismo, no nacional-socialismo e no Estado regulatório. Logo, a clara extensão do presidente Woodrow Wilson (1856-1924) do controle do governo na economia em 1917-18, enquanto usava a máquina de propaganda política para omitir notícias da gripe espanhola (que começou nos Estados Unidos em uma fazenda de porcos no Kansas; minha tia-avó Tillie, de Illinois, morreu disso).
No entanto, se formos nos afastar do universo das ideias e nos concentrar na guerra, é claro que os países socialistas são melhores na guerra do que os capitalistas. Naturalmente. Uma guerra, em especial sob as condições modernas de totalidade, ao contrário das guerras de passatempo do passado, tem um único propósito claro para a nação, como um time de futebol. Um sistema de coerção que direciona esses recursos, que é o que o socialismo é, obviamente terá mais sucesso em alcançar um propósito único do que um sistema de acordos mútuos que expande o próprio sentido de recursos, que é o que o capitalismo é.
Capitalismo deveria ser chamado de “inovismo”. E socialismo deveria se chamar “coercionismo”
Mas eu desgosto tanto das palavras que usamos, da palavra que começa com “s” e da palavra que começa com “c”. Elas são enganosas, ambas cunhadas por inimigos da liberdade. Assim como “sociedade”, “nação”, “vontade geral” ou “equilíbrio do comércio internacional”, elas nos deixam idiotas. Em vez disso, o capitalismo deveria ser chamado de “inovismo”, que é o que ele é. O liberalismo original de gente como Adam Smith (1723-1790) e Mary Wollstonecraft (1759-1797) inspirou milhões de pessoas comuns a tentar inovar, como Malcom McLean, em 1956, ao inventar a conteinerização, com o resultado de que a renda real per capita explodiu e bateu no teto.
E o teto subiu muito. Subiu trinta vezes a altura do teto das patéticas cabanas de antes. Isso se chama “Grande Enriquecimento” e vai além da mais conhecida Revolução Industrial.
“Socialismo”, para considerar o outro palavrão, soa doce e colaborativo. Ele me encantou como um esquerdista cantando folk no ensino médio. Bernie Sanders e eu temos a mesma idade. Em 1960, nós tínhamos a mesma opinião sobre o capitalismo. Desde então, eu ouvi e aprendi. Claro que o socialismo é literalmente o uso do monopólio dos governos de coerção física para forçar as pessoas a fazer o que, de outra forma, elas não decidiriam fazer.
Se sua doce vizinha socialista não concorda, e se esquiva da palavra “coerção”, compre para ela um exemplar do último romance do judeu soviético Vasily Grossman, Everything Flows (não publicado e, na verdade, suprimido depois da morte dele, em 1964), sobre como a vida sob o socialismo de fato é. O poder tende a corromper, e o poder absoluto sobre a economia corrompe absolutamente.
Portanto, o socialismo deveria se chamar “coercionismo”. Às vezes, raramente, o que o governo nos coage a fazer é uma ótima ideia, como coagir os pais a vacinar os filhos contra o sarampo. Um caso de sarampo infecta vinte outros, e a doença costuma ser fatal para adultos que não a tiveram quando criança.
Pergunte aos astecas, aos incas e aos moicanos sobre isso. O número correspondente para o novo coronavírus é dois ou três, o que já é bastante ruim. Para a gripe, ou influenza, é mais baixo, entre um e dois, que é a razão por que com as gripes sazonais comuns, e até temos vacina para algumas delas, não faz muito sentido coagir as pessoas.
Numa guerra, às vezes precisamos estender o braço e coagir as pessoas
Mas, se o governo erra a mão na reação coercitiva correta para uma praga com alto índice de infecção — sendo a reação correta atacá-la cedo e daí testar, testar e testar —, então tudo o que pode ser feito de modo razoável é um confinamento. É a técnica medieval. Ela precisará ser imposta a todos se você estiver na Idade Média ou se faz dois meses que os testes não são bem feitos. Todos são suspeitos, na ausência de testes.
Não preciso dizer que o presidente e seus servos nos CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças) e na FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos) não lidaram com o problema de imediato.
O conselho do treinador no beisebol é: “Jogue a bola. Não deixe que ela jogue você”. Isto é, vá na direção da bola, para dominar seu movimento. Os Estados Unidos não fizeram isso. Outras democracias, como a Coreia do Sul e Taiwan, seguiram esse conselho, e não tiveram de adotar a coerção medieval do confinamento em massa.
Tiranias como a China e a Federação Russa rapidamente tentaram se safar da omissão da verdade, claro, que é como fingir que a bola nunca chegou perto de você. Ou que essa bola é fake news, ou uma conspiração da CNN ou de outros inimigos do povo. No fim das contas, a China, assim como a Rússia, logo voltará à ampla coerção, como as tiranias fazem.
Nem toda coerção é ruim, como não é ruim impedir seu filho de 2 anos de sair correndo na frente de um ônibus. Às vezes precisamos, em uma guerra pela sobrevivência (como no sarampo, em Pearl Harbor), estender o braço e coagir as pessoas. A educação básica obrigatória é um exemplo, devidamente financiada por impostos cobrados por coerção.
A economia clássica liberal seria como “a ciência sombria”
No fim das contas, em uma sociedade de adultos livres, tratar as pessoas como adultos livres funciona. Poucos leitores discordarão, ainda que alguns deles, os verdadeiros conservadores nos moldes do escritor britânico Thomas Carlyle (1795-1881), terão dúvida de que a maioria das pessoas pode receber o status de “adulto”. Carlyle, amigo pessoal e inimigo político do filósofo e economista John Stuart Mill (1806-1873), também britânico, deu origem à descrição de economia clássica liberal como “a ciência sombria”. Sombria como?
Não porque suas conclusões fossem pessimistas, ainda que o fossem, mas porque Mill e seus aliados liberais aprovaram a libertação de todos os escravos do Império Britânico em 1833. Carlyle acreditava que os escravos, assim como os servos medievais, precisavam de uma delicada supervisão por parte de seus senhores. Que alegria. Portanto, negar essa delicada supervisão era “sombrio”.
Era como burocratas em um regime de coercionismo supervisionando cidadãos infantilizados. Que alegria. Afinal, é tão sombrio imaginar que os burocratas federais e seu senhor possam ter motivos próprios, não relacionados com o bem da população, como conseguir se reeleger e ser indicados de novo por meio da subestimação do novo coronavírus. Claro, eles são nossos adoráveis e amados pais.
Então outro bom nome para o sistema que os não conservadores e os não socialistas entre nós preferem seria o “adultismo”. Os holandeses defenderam até bem tarde seu Império Indonésio afirmando que os indonésios infantilizados precisavam de um longo aprendizado com seus senhores antes de estar prontos para a independência. Quanto tempo? Ah, mais um século ou dois.
Sempre haverá a embriaguez do poder, que cresce constantemente
O inovismo e o adultismo, para além de seus méritos intrínsecos de criar uma população com dignidade, têm méritos extrínsecos, como notei, de tornar as pessoas ricas. O Grande Enriquecimento, de 1800 até o presente, responsável pela multiplicação por trinta de bens e serviços, não foi causado por coerção, mas por liberdade. Tais riquezas tornam a distinta segunda melhor solução de distanciamento social menos do que desastrosa. Vamos nos recuperar, claro, e não vamos precisar sacrificar nossas liberdades para sempre para fazer isso.
Em 1984, George Orwell (1903-1950) faz O’Brien, o membro do Partido, explicar o que um futuro de coercionismo significa: “Mas sempre — não se esqueça, Winston —, sempre haverá a embriaguez do poder, crescendo constantemente e se tornando cada vez mais sutil. […] Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano — para sempre”.
Não vamos fazer isso. Vamos manter o verdadeiro liberalismo sustentando o inovismo e o adultismo. Não vamos cair de novo nos braços de um papai ignorante com gostos autoritários. Não vamos supor que uma coerção ocasionalmente necessária justifica um futuro de coercionismo.
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A economista americana Deirdre McCloskey é professora de Economia, História, Língua Inglesa e Comunicação da Universidade de Illinois em Chicago (UIC). É autora dos livros The Rhetorics of Economics (1985) e Bourgeois Equality — How Ideas, Not Capital or Institutions, Enriched the World (2016). É uma das maiores pensadoras liberais do mundo.
Revista Oeste