Infectologista paulista de 34 anos
coordena ensaios clínicos do
imunizante no Reino Unido e
alerta que investimento em
ciência é essencial para estarmos
melhor preparados para futuras
pandemias
No artigo publicado na segunda-feira, 20, na revista The Lancet com os primeiros resultados da promissora vacina da Universidade de Oxford contra a covid, o nome de Pedro Moreira Folegatti aparecia com destaque como autor principal.
Líder clínico dos estudos do imunizante no Reino Unido, responsável por coordenar o acompanhamento de cerca de 10 mil voluntários, Folegatti é um médico infectologista brasileiro, de 34 anos, nascido em São Paulo, que, após seis anos morando em terras britânicas, se especializou no desenvolvimento de vacinas para doenças emergentes.
Em janeiro, muito antes da pandemia provocada pelo vírus chinês, covid, castigar a Europa, os Estados Unidos e o Brasil, Folegatti e os colegas já iniciavam a pesquisa da potencial vacina contra a doença. Desde então, o brasileiro tem trabalhado todos os dias, “madrugada adentro”, no projeto.
Em entrevista ao Estadão, ele conta que, em sua área de pesquisa, os cientistas trabalham já esperando (e tentando se antecipar) à próxima epidemia, mas confessa que a pandemia provocada pelo vírus chinês, covid, alcançou uma magnitude que ninguém esperava, deixando como lição que a ciência deve ser mais valorizada. “A gente espera que, depois disso tudo, tenhamos mais investimentos em pesquisa para que a gente possa se preparar de uma forma mais adequada para a próxima pandemia. Essa não foi a última”, destaca. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Como você foi trabalhar na Universidade de Oxford e acabou envolvido na pesquisa da vacina contra a covid?
Sou médico, minha formação toda foi no Brasil. Me formei em 2009 na Faculdade de Medicina do ABC, fiz residência em infectologia no Instituto Emílio Ribas. Trabalhei em diversos hospitais em São Paulo até setembro de 2014, quando me mudei para o Reino Unido para fazer um mestrado em saúde pública na London School of Hygiene and Tropical Medicine. Quando eu concluí o programa de mestrado, em 2016, surgiu a oportunidade de trabalhar para o Jenner Institute (da Universidade de Oxford) para um programa de influenza. A minha chefe é a professora Sarah Gilbert, coordenadora do programa de influenza e patógenos emergentes. Depois surgiu a oportunidade de trabalhar nessa mesma plataforma de vetor viral que a gente vem testando as vacinas para o coronavírus, mas contra outras doenças. Já estou aqui há quatro anos. Antes da pesquisa do coronavírus começar, a gente estava trabalhando com uma vacina parecida para a MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio, também causada por um coronavírus) e calhou de os resultados terem sido publicados na mesma época, quando as coisas começaram explodir.
Essa plataforma de vetor viral é aquela que usa uma parte do adenovírus (causador de resfriado) para carregar um gene que gera resposta para o coronavírus?
Isso mesmo, a vacina é baseada num adenovírus de chimpanzé. A gente deleta os genes responsáveis pela replicação. Uma vez que a gente injeta a vacina, esse adenovírus é incapaz de se reproduzir dentro do corpo e o que a gente faz é trocar esses genes por outros genes que vão levar proteínas de quaisquer outros vírus ou patógenos que a gente quiser gerar proteção. Nesse caso, a gente troca os genes de replicação do adenovírus por genes que vão codificar proteínas da superfície do coronavírus atual.
Quais são as vantagens e incertezas de trabalhar com uma plataforma inovadora?
A grande vantagem de usar essa plataforma é que a gente consegue produzir vacina mais rápido utilizando o mesmo molde e trocando só o antígeno, que é o pedaço que a gente espera que vá induzir uma resposta imune. A dificuldade é que é uma tecnologia que não é utilizada em larga escala, então existem muitas dúvidas sobre como será o registro.
Quando vocês começaram a trabalhar no desenvolvimento de uma vacina contra a covid?
Nosso envolvimento aqui começou desde janeiro, quando os cientistas chineses publicaram o sequenciamento genético do novo coronavírus. A partir daquela data, começamos a trabalhar numa vacina para isso. Os preparativos para os ensaios clínicos começaram no início de fevereiro. Desde então, a gente tem trabalhado todo dia, sem parar, para conseguir executar o que tem sido um dos programas mais ambiciosos até agora.
Então os preparativos para os ensaios clínicos começaram antes mesmo de a Europa viver o caos do aumento de casos e mortes?
Sem dúvida. A gente começou a trabalhar no primeiro dia em que o sequenciamento genético tornou-se disponível. Independentemente de como estava a situação epidemiológica aqui no Reino Unido, a gente já vinha trabalhando.
Qual foi o maior desafio nesse processo?
O desafio maior foi conseguir recrutar o número de pessoas que a gente precisava a tempo de começar esses ensaios clínicos com a curva de casos ainda em ascensão. Existiu uma força-tarefa gigante por parte do governo britânico e de outras fontes de financiamento.
E qual é sua a função específica na pesquisa? Você aparece como autor principal no artigo na revista Lancet com os resultados das fases 1 e 2...
Meu papel é um pouco variado. Tenho dado contribuições desde a concepção dos estudos até o desenho do ensaio clínico e execução do projeto como um todo. Oficialmente, eu sou o clínico responsável pelo projeto, então meu papel oficial é garantir o seguimento da segurança desses voluntários, mas a gente acaba fazendo um pouco de tudo.
E como tem sido sua rotina? O que você faz para manter a sanidade mental diante da ansiedade pelos resultados?
Eu tenho o suporte da minha esposa e da minha filha, que têm um papel fundamental nesse processo para garantir a minha sanidade mental. A rotina é (trabalhar) sem hora para entrar, sem hora para sair, fim de semana, feriado. Eu acordo umas 6 horas, venho para o escritório, saio umas 18 horas e continuo trabalhando em casa, madrugada adentro. Durmo uma média de quatro horas por noite.
Como vocês reagiram quando viram que os primeiros resultados eram animadores e como se preparam para as diferentes possibilidades de desfecho da fase 3, inclusive não ter o resultado esperado?
Ciência é muito sobre tentativa, erro e acerto. Então, sim, a vacina é bastante promissora, é capaz de induzir uma resposta imune que a gente considera uma boa resposta dos anticorpos capazes de neutralizar o vírus, mas não se sabe se isso é suficiente para prevenir a doença. Como tudo na vida, existe uma chance de a vacina não dar certo, mas a gente tenta manejar tanto as nossas expectativas quanto as do público geral. Mas todo mundo está bastante confiante. Isso é o que motiva a gente a trabalhar longas horas e ficar longe da família.
Como está sendo o processo de ocupar uma função de protagonismo no desenvolvimento dessa vacina mesmo sendo tão jovem e iniciado sua carreira fora do Reino Unido?
A vantagem de trabalhar num ambiente acadêmico é que é um ambiente bastante diverso, mas nunca na minha vida me passou pela cabeça que eu poderia trabalhar nesse grupo que eu estou e fazer parte desse projeto tão empolgante. Isso é muito bom.
Você faz parte de um grupo de pesquisa sobre patógenos emergentes. Vocês já fazem pesquisas se antecipando a novas doenças? Imaginava enfrentar uma pandemia dessa magnitude?
A gente tem aprendido bastante há alguns anos com diversas outras pandemias e epidemias que, de tempos em tempos, acontecem. A comunidade científica internacional vem se preparando para enfrentar uma epidemia de uma doença X, muito se falava sobre estratégias para preparar governos e instituições acadêmicas para desenvolver métodos e estratégias para conter o próximo surto. Agora, que essa epidemia fosse tomar as dimensões e o impacto global que teve, isso pegou todo mundo um pouco de surpresa.
As outras epidemias recentes, como Ebola e zika, castigaram mais os países em desenvolvimento. Há a questão das doenças negligenciadas. Você acha que o fato da pandemia de covid atingir todos os países e indivíduos vai mudar a visão sobre a importância do investimento na ciência?
O problema sempre foi dinheiro para pesquisas de doenças chamadas de negligenciadas, mas que têm potencial de causar grandes epidemias. Sempre houve interesse da comunidade científica internacional de estudar essas doenças, mas o que sempre faltou foi financiamento. A gente espera que o mundo tenha compreendido com essa última pandemia que o que acontece na China, por exemplo, tem um impacto quase que imediato na vida das pessoas no Brasil, nos Estados Unidos, no mundo inteiro. A gente espera que, depois disso tudo, tenhamos mais investimentos em pesquisa para que a gente possa se preparar de uma forma mais adequada para a próxima pandemia. Essa não foi a última. Com certeza vamos enfrentar outros surtos, outras epidemias de outras doenças e a gente precisa se preparar para isso.
Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo