quinta-feira, 26 de setembro de 2019

'Temos de proteger a privacidade e a saúde mental das pessoas', diz Mark Zuckerberg

"Precisamos resolver questões como integridade das eleições", diz Zuckerberg


Hoje, um em cada quatro habitantes do planeta usa ao menos um dos produtos do Facebook por dia – além da rede social criada em um quarto da Universidade Harvard, em 2004, a empresa contém o Instagram, o WhatsApp e diversos outros serviços. É com essa população, estimada em 2,1 bilhões de usuários, que Mark Zuckerberg, fundador e presidente executivo da companhia, diz estar preocupado, em entrevista exclusiva ao Estado
“Temos de  proteger a privacidade e a saúde mental das pessoas, a integridade das eleições e a liberdade de expressão”, afirma Zuckerberg, sentado em seu escritório em Menlo Park (EUA), na sede do Facebook, onde recebeu o Estado. “São questões que trabalhamos, mas achávamos que as pessoas queriam se conectar com seus amigos. Agora, nossos serviços chegaram a uma escala na qual é importante que as pessoas entendam o que estamos fazendo.” 
Não é só uma questão de tamanho, mas também de poder: as redes sociais e os aplicativos de mensagem mudaram a história do mundo, influenciando negócios, conflitos e processos eleitorais. Mas houve tropeços: nos últimos dois anos, o Facebook se envolveu em diversos escândalos, entre privacidade e disseminação de notícias falsas, acusações de danos à saúde mental das pessoas e ameaças de investigação nos EUA. “Precisamos nos esforçar mais, mas creio que, se as coisas que construímos são capazes de melhorar a vida das pessoas, tudo vai ficar bem. As pessoas têm mais voz agora do que nunca tiveram”, afirma. 
Na entrevista a seguir, além de falar sobre política e sua empresa, o quinto homem mais rico do mundo (fortuna avaliada em US$ 67 bilhões, segundo a Forbes) traça planos para o futuro da tecnologia – para ele, as realidades virtual e aumentada podem substituir os smartphones. Também fala sobre a relação de suas filhas com tecnologia e prevê um futuro em que as pessoas não precisarão viajar para trabalhar. “Será possível estar perto de quem você ama e trabalhar para uma empresa em qualquer lugar do mundo, por meio de um holograma”, diz. 

O Facebook teve um papel fundamental nas eleições presidenciais dos EUA, em 2016. Algo semelhante aconteceu com o WhatsApp no Brasil, em 2018. O sr. criou e é responsável por ferramentas que não só mudam a vida das pessoas, mas também a história do mundo. Como se sente sobre isso?

Nossos serviços, de forma geral, são focados em duas coisas: dar voz às pessoas e ajudá-las a se conectarem. Há hoje uma preocupação sobre as empresas de tecnologia: elas são grandes e poderosas. Entendo essas preocupações. Mas acredito que há um lado dessa história que é importante: agora, há bilhões de pessoas que têm mais voz e poder do que nunca tiveram antes. Nós não estamos tentando diretamente influenciar uma eleição. Estamos tentando dar voz às pessoas para que elas falem sobre com o que se importam, dividam suas experiências, suas histórias. Claro: há problemas também. Precisamos fazer nosso trabalho para evitar contas falsas, evitar que as pessoas espalhem conteúdo falso por aí. Mas, no final do dia, nosso objetivo é dar voz às pessoas – hoje, uma pessoa em qualquer cidade do mundo tem mais poder do que antigamente. Essa transparência nos leva a sociedades melhores, com o passar do tempo. 

Recentemente, o sr. se reuniu com Donald Trump e com congressistas americanos. Há inúmeros candidatos prometendo ir atrás do Facebook e das empresas do Vale do Silício, acusando essas companhias de praticar concorrência desleal e promover desinformação. O Facebook pode ajudar as pessoas a se expressarem, mas os políticos também estão se expressando sobre seu negócio. Como isso afeta seus negócios?

Creio que, no final do dia, se as coisas que construímos são capazes de melhorar a vida das pessoas, tudo vai ficar bem. As pessoas têm voz agora. Pequenos negócios podem crescer, usando ferramentas que antes só as grandes empresas tinham. Isso gera empregos. Há questões que precisamos resolver, como a integridade das eleições. A integridade cívica. Ter certeza de que estamos cuidando bem do conteúdo e dos dados das pessoas. Mas acredito que podemos resolver esses assuntos e também criar tecnologia que dá ainda mais poder às pessoas. 

No Brasil, há muita gente que usa o Facebook e o WhatsApp, mas não entende que eles fazem parte da internet. São pessoas digitalmente não educadas – e que, em muitos casos, não entendem o que é feito com seus dados ou não fazem um uso responsável das plataformas. O que o Facebook pode fazer para mudar isso? 

Precisamos ser mais ativos e confrontar essas dúvidas. Muito do que vimos nos últimos dois anos é que precisamos acompanhar certos aspectos sociais. Precisamos manter a segurança e a integridade das nossas plataformas. Proteger a privacidade, a saúde mental e o bem-estar das pessoas. São questões que trabalhamos há algum tempo, mas que não eram centrais nos produtos, porque achávamos que não era para isso que elas estavam usando os aplicativos. As pessoas queriam se conectar com seus amigos, não saber o que estávamos fazendo para moderar o conteúdo. Agora, porém, nossos serviços chegaram a uma escala na qual é importante que as pessoas entendam essas questões. Precisamos melhorar e fazer mais sobre isso. 

Em 2014, o Facebook pagou US$ 2 bilhões pela Oculus, uma empresa de realidade virtual. Cinco anos depois e alguns dispositivos já lançados, ainda há dúvidas sobre por que o Facebook trabalha nessa tecnologia. É ela que vai dar mais voz às pessoas? 

Estamos focados em criar o que deve ser a nova plataforma de computação. Nós ajudamos a moldar a experiência das pessoas com aplicativos. Agora, queremos moldar sua experiência de interação. A cada 15 anos, há uma plataforma de computação diferente. Eu vivi três delas: quando eu crescia, usava um computador Windows. Depois, vieram a internet e os smartphones. Estamos prontos para a próxima experiência: será uma combinação de óculos de realidade virtual (RV) com óculos de realidade aumentada (RA). A principal característica dessa geração será a presença: a sensação de que você está no mesmo lugar que outra pessoa. No futuro, você não teria de voar do Brasil para conversar comigo: nossos hologramas estariam no mesmo ambiente virtual e sentiríamos que estamos interagindo. É algo que está em torno da nossa missão: ajudar as pessoas a se conectarem, a se unirem em uma comunidade. Acredito que hoje, com aplicativos, o foco da computação está em tarefas. Queremos colocar as pessoas no centro da experiência. Para chegarmos lá, precisamos entregar a tecnologia que ofereça a sensação de presença. Nesta semana, demos um bom passo com o sistema que captura os gestos das mãos das pessoas, sem precisar de um controle. É uma interação mais natural do que usar um controle – algo crítico não só para a realidade virtual, mas também para a aumentada. Hoje, usamos controles para RV, mas não imagino que as pessoas vão querer carregá-los por aí quando estiverem usando óculos de realidade aumentada. 

Até porque, se for preciso usar e carregar controles, talvez seja melhor usar um smartphone? 

Nem sempre. Acredito que haverá tarefas, no futuro, para as quais as pessoas vão querer carregar controles. Às vezes, é importante ter a resposta, nas suas mãos, de que você fez um gesto. 

O sr. já defendeu a ideia de que o Facebook e o Instagram são como uma praça pública digital. Também já disse que pretende criar o equivalente virtual a uma sala de estar. Como a realidade virtual pode ajudar nesse aspecto?

Na vida real, nós temos salas de estar e praças públicas. Facebook e Instagram, sim, são o equivalente digital das praças. Estamos buscando fazer as salas de estar digitais como o WhatsApp e o Messenger. Mas uma boa parte do que é diferente na interação na sala de estar é a sensação de intimidade. O que me faz voltar à sensação de presença, algo que só teremos com AR/VR. Quando você usa seu telefone, você está menos presente para quem está ao seu redor, ao mesmo tempo em que, por mais que mande fotos ou mensagens para outras pessoas, você não sente que está lá, junto com elas. Queremos, na verdade, ter tecnologias que funcionem nessa sensação de presença tanto para espaços mais íntimos quanto para locais mais amplos. Será algo diferente do que já tivemos na computação. 

As pessoas vão parar de viajar por conta de turismo ou reuniões de trabalho? O sr. já calculou qual impacto terá nos negócios de empresas aéreas, por exemplo? 

Bem (risos), acredito que as pessoas não vão parar de viajar. Vejo a tecnologia como complementar, não como substituta. Hoje, eu uso um software para conversar com minha irmã, que mora do outro lado do país, vejo fotos dos filhos dela crescendo. É ótimo, porque nem sempre posso estar com eles. Mas acredito que é ruim quando as pessoas falam sobre usar um software no lugar de falar com pessoas na vida real. Não é para isso que a tecnologia serve. No futuro, acredito que a forma de interação mais rica com pessoas ainda será ao vivo. A tecnologia servirá para quando você não puder estar junto fisicamente: você poderá estar na mesma sala de estar que seus pais ou amigos, vendo seus hologramas e disputando um jogo de tabuleiro com eles.  Mas, quanto a reuniões de trabalho, vejo um cenário diferente. Acredito hoje que há pessoas talentosas no mundo inteiro, mas as oportunidades não estão bem distribuídas. 

Como assim? 

É algo que imagino que exista no Brasil: muita gente cresce na zona rural, mas tem de se mudar para a cidade para conseguir um bom emprego. É nas grandes cidades que estão os bons empregos, mas, ao mesmo tempo o custo da habitação nas metrópoles é altíssimo. Imagino que, no futuro, poderemos dar às pessoas a escolha de viverem onde elas quiserem, ao mesmo tempo em que podem aproveitar oportunidades de trabalho em qualquer lugar do mundo. Será possível estar perto de quem você ama e trabalhar para uma empresa em qualquer lugar do mundo, interagindo com as pessoas por meio de um holograma. Claro, eventualmente será necessária uma reunião de contato físico, mas se pudermos complementar o que as pessoas fazem hoje, será bastante poderoso. 

Parece ótimo, mas ao mesmo tempo complicado: quão longe estamos de ter um holograma realista das pessoas para que uma ideia como essas possa ser posta em prática? 

Hoje, temos um projeto de longo prazo chamado Codec Avatars: a partir de fotos dos usuários, conseguimos criar uma versão realista deles, que poderiam ser colocadas como um holograma em realidade virtual. Ele pode estar numa sala digital e interagir, como uma pessoa real, não como um desenho animado. Mas ainda é difícil capturar todas as expressões faciais, precisamos superar o Vale da Estranheza (a repulsa que sentimos de réplicas humanas digitais, que se comportam como humanos, mas não exatamente). Há detalhes ainda esquisitos, como a quantidade de luz que bate nos seus olhos e faz parecer que você está realmente prestando atenção numa cena. Às vezes, os avatares ainda parecem um pouco zumbis. Por outro lado, temos tecnologias que já funcionam, então a sensação é bastante realista. É o tipo de investimento que, acredito, nenhuma outra grande empresa de tecnologia está fazendo. Creio que as outras empresas ainda estão focadas em aplicativos, lojas, em dar aos usuários uma experiência específica. Nós queremos algo qualitativamente diferente, colocando as pessoas no centro da interação. 

Uma sala de estar digital pressupõe uma família. O sr. é pai de duas meninas. Como é a relação delas com tecnologia? 

Elas ainda são pequenas: a mais nova tem dois anos; a mais velha tem quase quatro. Tenho lido pesquisas que mostram que nem toda tecnologia é igual. Se você está na frente da TV, assistindo a vídeos por horas, isso não é bom. Prefiro que elas estejam correndo por aí, interagindo com outras pessoas. Mas quando usamos a tecnologia para conversar com a avó ou a tia, que moram do outro lado do país, vejo ali uma conexão humana que é positiva. Quando se usa a internet para interagir com outras pessoas, normalmente isso está associado a aspectos positivos. Mas, se você está só consumindo conteúdo, não é tão bom. 

Uma sala de estar é um ambiente íntimo. Intimidade requer confiança. Como as pessoas podem confiar no Facebook para desempenhar essa função? 

Estamos tentando construir uma história com as pessoas. Muito do que estamos tentando fazer com realidade virtual vai nessa direção: quero que as pessoas tenham tido anos de boas experiências com nossos produtos de hardware. Assim, quando formos capazes de fazer o melhor produto possível, elas confiem. Há um lado do que você fala sobre confiança que diz respeito às preocupações de privacidade que as pessoas têm com o Facebook. Acredito que são assuntos nos quais precisamos fazer um trabalho melhor, para explicar o que de fato fazemos. Minha esperança é que, em alguns anos, as pessoas entendam bem esses temas e a noção de privacidade. Mas há também a questão de ser uma nova área para nós. Veja a Amazon: as pessoas demoraram anos para entender e confiar em seus produtos de hardware, mesmo que já conhecessem a empresa há um tempo. Queremos agora mostrar que podemos construir produtos excelentes para as pessoas. Em cinco anos, imagino que, se fizermos nosso trabalho correto, as pessoas lembrarão de nós como uma empresa que não faz só aplicativos.

Parte da nova experiência que vocês estão tentando criar passa por novos dispositivos. Colocar novos aparelhos na mão das pessoas é bem mais difícil que um aplicativo. Posso te dar um exemplo: ainda não há, no Brasil,  vendas oficiais de nenhum dos óculos de realidade virtual que vocês lançaram. Há impostos, problemas de fabricação, homologação. Isso não pode criar uma disparidade no acesso à tecnologia? 

O objetivo é chegar a todos os lugares. Queremos fazer tecnologia para todos, não bens de luxo que só algumas pessoas poderão comprar. Mas há habilidades que precisamos desenvolver. Fabricar o hardware, entender a logística de vendas físicas, entregas, assistência técnica, queremos entender tudo isso nos países em que estamos antes de expandir pelo mundo. Mas claramente é algo que nós queremos fazer. 

O sr. diz se inspirar em Bill Gates e seu trabalho com filantropia. Ele se afastou da Microsoft para dedicar sua atenção a esse tema. Há um futuro do Facebook sem Mark Zuckerberg?

 Não, não em um futuro breve. Hoje, me dedico às duas coisas, mas gasto mais tempo no Facebook. Acredito que o trabalho que estamos fazendo aqui é muito importante e quero ter certeza de que estamos fazendo-o corretamente. Filantropia é algo que acredito que haverá impacto também, mas no longo prazo. Mas creio que o trabalho que temos aqui é realmente excitante. 

Por Bruno Capelas, Menlo Park (EUA)* - O Estado de S. Paulo