quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Há 50 anos, 'Abbey Road' dava adeus ao sonho

Abbey Road
‘Abbey Road’: obra-prima da maturidade dos Beatles Foto: Reprodução
Em 1970, John Lennon proclamou que o sonho havia acabado e que era preciso encarar a realidade. Sua convicção estava na letra de God, música do álbum John Lennon/Plastic Ono Band. Ele estava enganado. Na verdade, o sonho acabara um ano antes, no dia 26 de setembro de 1969, quando os Beatles lançaram Abbey Road, seu 12º e último LP. 
Obra-prima e o melhor disco da banda, segundo o produtor George Martin, Abbey Road completa hoje meio século, tão jovem e atual como na época de seu lançamento. Os quatro músicos, apesar de todos os desentendimentos pelos quais vinham passando nos últimos anos, estavam maduros. 
Fizeram um álbum denso, adulto, com evidente tom de despedida. Saindo da sombra que sempre lhe foi imposta pela dupla Lennon & McCartneyGeorge Harrison veio à tona com Something e Here Comes the SunRingo compôs e cantou Octopus’s Garden. Paul e John continuaram a disputar quem era o melhor.
Agora, meio século depois, as desavenças pessoais e financeiras que levaram ao fim dos Beatles se dissiparam no tempo. Restaram o mito e suas músicas que ganharam tons de eternidade. Para comemorar os 50 anos de Abbey Road, está previsto para o próximo mês o relançamento do álbum remixado, com brindes e informações raras sobre a banda. Como aperitivo, sabe-se que o novo Abbey Road traz duas versões de Come Together, já divulgadas pela internet nesta semana.
A primeira versão é um tanto tosca, de ritmo acelerado. A segunda, presente no Abbey Road lançado em 69, é mais lenta graças a uma sugestão de McCartney, aceita por Lennon. A versão a ser lançada em outubro foi mixada por Giles Martin, filho de George Martin. Em todas elas, John repete ao longo da canção uma frase curta: "Shoot me" (atire em mim). Vale lembrar que nessa época John estava dependente de heroína e a palavra “shoot” podia também significar uma dose da droga. 
Temeroso de que pudesse haver uma reação negativa à música e ao álbum como um todo, Paul McCartney, segundo o engenheiro de som Geoff Emerick, fez questão de que o volume de seu baixo fosse aumentado toda a vez que John pronunciava a frase, de modo a encobrir o som. Deve ser verdade, embora a história dos Beatles esteja cercada de lendas.
Uma delas é que a primeira semana de gravações do álbum Abbey Road, o 12º e último dos Beatles, teria começado com uma má notícia. George Martin, que acabara de reassumir a produção musical da banda, chamou Emerick de lado e disse: “John sofreu um acidente de carro na Escócia com Yoko. Não estão gravemente feridos, mas deverão ficar no hospital e John ficará longe do estúdio por pelo menos uma semana”.
Notícia ruim, pois John estava ferido, mas boa ao mesmo tempo. Semanas antes, Paul, George e Ringo pareciam ter voltado aos velhos tempos dos Beatles. Naquele junho/julho de 1969, eles estavam cordiais uns com os outros, cooperativos nas canções ainda em fase de elaboração e aparentemente distantes do fracasso e das tensões pessoais havidas durante as gravações de Let it Be. No fundo todos temiam que a presença de John estragasse esse clima.
Seu temperamento cáustico poderia minar a aparente boa vontade que reinava entre os demais beatles. Nenhum deles tentou interferir de maneira impositiva no trabalho do outro. Na verdade, depois de uma imensa crise de egos durante as gravações do Álbum Branco e do desânimo que marcou Let it Be, os três músicos pisavam em ovos. Até cooperavam, mas mantinham entre si uma distância segura.
Raramente ocupavam o mesmo espaço do estúdio dois de Abbey Road. Se algum deles fazia ajustes em uma canção já mais ou menos consolidada, os demais saíam da sala. Não trabalhavam mais como uma equipe, mas estavam conscientes de que teriam de conviver em estúdio durante meses.
Logo nas primeiras semanas de gravação, depois de um período preparatório que havia começado em janeiro, Paul pegou seu violão Epiphone modelo Texan e concluiu Her Majesty, um fragmento de apenas 20 segundos, transformado posteriormente, durante a mixagem, na última faixa do álbum. Nesse mesmo dia, Ringo e George participaram da gravação da base de Golden Slambers/Carry that Weight. 
Paul tinha uma ideia ousada na cabeça: tornar a segunda metade do álbum, até então sem nome definido, uma espécie de música única, um 'medley' que juntaria trechos de várias composições. Um único temor: a opinião de John Lennon assim que ele estivesse de volta. 
Dando por suposto que John aprovaria a ideia, seguiram com as gravações e deram as primeiras pinceladas em Maxwell’s Silver Hammer. O clima estava ótimo e Ringo Starr juntou-se a Paul e George para cantar algumas harmonias da canção. Como sempre perfeccionista, Paul queria que seu contrabaixo soasse como uma tuba, de modo a dar um ar 'vintage' à música. A demora na gravação inquietou Ringo e George, que deixaram Paul a sós e saíram do estúdio.
Na manhã do dia 9 de julho, George Martin recebe um telefone de Mal Evans, o faz-tudo da banda. “O senhor e a senhora Lenonn estão a caminho do estúdio”. No ar a questão: como John chegará, com que ânimo, com que humor, com que disposição? No meio da tarde, vestidos de preto, John e Yoko surgem na porta do estúdio. O beatle estava ameno. Falou sobre o acidente, disse que havia mandado prensar o carro que dirigia e que os restos serviriam de escultura nos jardins de sua casa.
Assim como durante as gravações do Álbum Branco, John tratava Yoko por 'mãe', o que causava um grande mal-estar entre os demais beatles e técnicos. Mas essa não foi a única estranheza durante das gravações de Abbey Road. Minutos depois de terem chegado, os Lennons foram seguidos por quatro homens de casaco castanho que carregava, um objeto bem grande e pesado. Era uma cama. Uma cama comprada na Harrolds, em pleno estúdio, para que Yoko se recuperasse do acidente.
De um lado do amplo espaço de gravação ficava a cama na qual Yoko recebia diariamente uma fila de amigos. No outro canto, os Beatles tentando trabalhar. Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr estavam muito incomodados como a situação e ficariam mais incomodados ainda. John exigiu que Yoko tivesse um microfone para poder se comunicar com ele. Com voz fina, aguda, na medida em que se melhorava de pequenos ferimentos, começou a dar palpites a George Martin. Tratando a banda impessoalmente, dizia: “Beatles deveriam fazer assim, Beatles vão fazer isso, Beatles vão fazer aquilo”.
O ambiente na gravação de Abbey Road deteriorava-se. Muito mal-humorado, John recusou-se a participar dos 'takes' de Maxwell’s Silver Hammer. Segundo ele, era “apenas uma música de vovó de Paul”. Velhas rivalidades contaminaram George, que chegou a chamar Yoko Ono de “vadia”, por ela ter lhe roubado um biscoito digestivo McVitie, quase chegando a uma briga séria com Lennon.
Ao mesmo tempo, mais senhor de suas composições, fez exigências a Paul, especialmente quanto à linha de baixo em Something, algo que jamais havia acontecido ao longo da história da banda. Para não permitir que John cantasse Oh, Darling, Paul chegava antes dele ao estúdio. Durante vários dias ele tentou cantar a música da maneira que queria, até que no último 'take' conseguiu encaixar a voz sem estourar sua garganta.
Em You Never Give Me Your Money, Paul exibia sua revolta contra o contador nova-iorquino Allen Klein, homem de confiança de John para gerenciar os interesses da banda depois da morte de Brian Epstein. Klein assumiu a Apple com mão de ferro e sem muito critério, demitindo vários funcionários e impondo um clima de terror na empresa. Paul defendia que o advogado Lee Eastman, também de Nova York, fosse o administrador dos Beatles. Coincidentemente, Eastman era pai de Linda, então noiva (e depois esposa) de Paul.
Em Sun King, John inventa uma nova língua ao unir, sem sentido, palavras em italiano, espanhol, português e aparentes onomatopeias: “Quando paramucho mi amore de felice corazón / Mundo paparazzi mi amore cicce verdi parasol / Questo obrigado tantamucho que canite carousel”.

Em The End, um duelo de guitarras entre George, Paul e John, além de um rápido solo de bateria que Ringo detestou fazer. Não fosse a insistência de Paul e o baterista teria declinado da sugestão. Segundos depois, a frase despedida: “And in the end, the love you take is equal to the love you make”. Era o fim dos Beatles, o fim do sonho, mas Abbey Road continua vivo.

Carlos de Oliveira, O Estado de S. Paulo