GOIÂNIA - Assim que toca o sinal indicando o fim das aulas, um grupo de alunos sai correndo das salas. Eles não estão com pressa de ir embora, como seria de se esperar após nove horas e meia de atividade escolar, mas para ir ao pátio, onde vão ensaiar para a fanfarra ou treinar handebol.
Em um colégio onde 30% dos alunos repetiam ou abandonavam os estudos, houve um receio inicial em aumentar o tempo de classe, com o período integral. A solução surpreendeu, fez aumentar o interesse dos jovens pelos estudos e melhorou os indicadores educacionais da unidade.
A história da Escola Estadual Professor Pedro Gomes, em Goiânia, tem semelhanças com vários outros colégios de regiões pobres que conseguiram bons resultados por meio do ensino integral. Isso é o que mostra o Excelência com Equidade no Ensino Médio, estudo antecipado ao Estado e desenvolvido pelo Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), instituto que fez o estudo em parceria com Instituto Unibanco, Fundação Lemann e Itaú BBA.
Diversos fatores interferem nos resultados de aprendizado, mas o nível socioeconômico dos alunos é considerado o de maior influência. Das 5.042 escolas do País que atendem estudantes com renda familiar de até 1,5 salário mínimo, apenas 100 obtiveram índices educacionais - em avaliações oficiais do Ministério da Educação - considerados satisfatórios, sendo que 82 delas atendem em período integral.
A principal política defendida pelo governo Jair Bolsonaro para a educação básica, as escolas cívico-militares (de gestão compartilhada entre civis e militares) não estão entre as 100 que alcançaram os indicadores mínimos de qualidade analisados pelo estudo. Nessa seleção apareceram três militares, todas no Maranhão. Segundo os pesquisadores, não há evidências que comprovem ou refute o impacto positivo desse modelo no aprendizado de alunos com alta vulnerabilidade social.alteração das militares.
“Esse resultado não demonstra que o ensino em tempo integral é o único caminho para uma educação de qualidade, mas mostra que praticamente só essas escolas estão conseguindo avançar. Tem sido difícil melhorar sem ser por essa modalidade”, diz Ernesto Faria, diretor do Iede.
A escola Pedro Gomes é uma das mais tradicionais de Goiânia, no maior bairro comercial da cidade, e tinha como principal problema a evasão. Muitos alunos abandonavam os estudos para ir trabalhar nas lojas e lanchonetes da região. “Eles não viam sentido em continuar estudando e sentiam que ajudariam mais as suas famílias se começassem a trabalhar. Não os convencíamos de que a escola era importante”, conta o diretor José Joaquim Neto.
Em 2013, a escola foi uma das selecionadas pelo governo de Goiás para um projeto-piloto de tempo integral e houve muita resistência ao plano, que quase dobrou o tempo de aula, de 5 horas para 9 horas e meia diárias. No primeiro ano de implementação, o colégio perdeu 60 dos 298 alunos. Aos poucos, o interesse dos estudantes e a melhora no aprendizado fez com que a unidade voltasse a atrair as famílias - em 2018, a escola já estava com o dobro do tamanho, com 601 matriculados e só 0,5% de abandono.
Como seus primos e amigos mais velhos, Geovanni Alves, de 18 anos, queria estudar pela manhã e trabalhar à tarde, por isso, não gostou de ter sido matriculado na escola Pedro Gomes no 1º ano do médio. “Achava que já estava na idade de ter meu dinheiro, ajudar em casa. Já no primeiro dia de aula, os professores me mostraram que eu podia mais, que posso sonhar e ter a profissão que quiser se eu terminar os estudos”, conta o jovem, que vai prestar vestibular neste ano para o curso de Design de Interiores.
Adolescentes recebem acompanhamento em sala de aula
Especialistas e os diretores das escolas em tempo integral ressaltam que não é só a ampliação da carga horária a responsável pela melhora, mas o aproveitamento do tempo maior para trabalhar conteúdos de interesse do aluno e com diferentes metodologias. Nessas unidades, o adolescente pode escolher disciplinas eletivas, recebe tutoria de um professor (com quem pode falar sobre o desempenho escolar, problemas familiares, dificuldades de relacionamento com os colegas), propõe projetos e opina sobre o funcionamento escolar.
O relacionamento com uma professora-tutora e um trabalho de iniciação científica sobre doenças mentais fizeram Jéssica Ferreira, de 19 anos, optar por Psicologia na faculdade. “Passei por alguns problemas, não tinha com quem conversar em casa e a escola me ajudou muito. Tanto pela minha relação com a tutora, como por esse projeto que me ajudou a entender um novo mundo", conta a jovem, que está no 3º ano do ensino médio da Escola Estadual Juvenal José Pedroso, em Goiânia, e uma das 100 a conseguirem os resultados. "Estou muito focada em passar no vestibular porque quero ser a primeira da minha família a ir para a universidade e ter um futuro diferente”,
O principal entrave para a expansão das escolas de tempo integral é o custo. Por isso, Faria destaca que, até o País atingir uma rede mais extensa (o Plano Nacional de Educação prevê alcançar 25% das matrículas nessa modalidade até 2024 - em 2018, eram só 10,3% no ensino médio), é possível replicar algumas práticas no período regular. Por exemplo: o uso de dados e monitoramento contínuo do aprendizado. Nas escolas de Goiânia, os alunos fazem provas toda segunda-feira e os resultados são analisados pelos professores para identificar quais as dificuldades de cada turma e se a metodologia de ensino está correta.
Outra prática é o incentivo à participação dos pais na vida escolar dos filhos. A escola Juvenal Pedroso estabeleceu como meta ter ao menos a presença de 60% dos responsáveis nas reuniões de pais bimestrais. Também tem como prática ligar ou ir à casa dos alunos que faltaram duas vezes na semana. “A escola e os professores podem mudar a vida desses meninos, mas, se a família participar, é muito mais fácil. Percebemos que nosso papel também é conscientizar os pais sobre a importância da participação deles”, conta a diretora, Divina Rocha.
“Essas práticas podem ter efeito positivo nas escolas regulares, mas, como sempre na educação, não há uma única medida efetiva. Sempre é um conjunto de ações. O período integral mostra que consegue abarcar o maior número de práticas efetivas”, destaca Faria.
MEC não fez repasse para ensino integral e quer usar faculdade privada ampliar jornada
Apesar das vantagens da jornada ampliada, o Ministério da Educação (MEC) este ano não fez repasses para o apoio ao período integral nos ensino fundamental e médio. O Estado mostrou em agosto que a pasta quer montar um novo programa para a modalidade, com a oferta de disciplinas e atividades no contra-turno em faculdades particulares.
Em nota, o MEC diz que "as escolas de tempo integral continuam a ser sua prioridade" e que até o fim do ano irá repassar recursos de adiantamento previstos para 2020, apesar de informar que o valor ainda não foi definido nem estimado. Questionado sobre o novo formato do programa de fomento às escolas de tempo integral, o ministério informa detalhes e diz apenas que a "política será mantida para os próximos anos com poucas alterações".
Ideia foi buscar colégios que reverteram desempenho ruim
Segundo Faria, a metodologia para encontrar as escolas com melhores práticas em contextos de alta vulnerabilidade precisou levar em consideração outros indicadores que não fossem só aqueles que avaliam o nível de aprendizado. “Nossa educação básica não entrega excelência, mesmo as escolas que estão muito acima da média nacional ainda têm desempenho muito longe de ser considerado ideal."
Nenhuma das cem escolas, por exemplo, consegue garantir que 70% dos alunos tenham aprendizado adequado nas duas disciplinas avaliadas pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), Matemática e Língua Portuguesa. Por isso, além dos resultados nessa prova nacional, o estudo também colocou como critérios que as unidades selecionadas deveriam ter no mínimo 95% de taxa de aprovação e resultado igual ou superior da média nacional nas provas e redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
A adoção de mais de um critério foi necessária para encontrar as escolas que conseguiram reverter a tendência de resultados ruins em suas regiões, apesar de ainda enfrentarem desafios. A escola Pedro Gomes, por exemplo, obteve nota 5,54 no Indicador de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), muito acima da média goiana, de 4,3, e da nacional, de 3,8. Ainda assim, só 63% dos estudantes tinham um aprendizado considerado adequado para Língua Portuguesa ao final do 3º ano do médio e só 12%, em Matemática.
Situação parecida é a da escola Juvenal Pedroso, que teve nota de 5,59 no Ideb, mas tem só 64% e 17% dos alunos com aprendizado adequado em Língua Portuguesa e Matemática, respectivamente. "Destacamos as ações dessas escolas porque elas estão em contextos extremamente difíceis e sem o suporte de uma política pública consistente. Tanto essa política não existe que não encontramos nenhuma rede inteira que pudéssemos destacar como sendo de excelência. Todos os casos são pontuais e isolados", diz Faria.
Entre os principais problemas citados pelos diretores, alunos e professores estão a falta de recursos financeiros, infraestrutura, ausência de formação continuada aos docentes, baixa remuneração e os problemas socioeconômicos das famílias. "Minha prioridade é sempre investir no que vai melhorar o aprendizado, mas as escolhas são difíceis. Se tenho dinheiro, é sempre optar por comprar mais material didático ou consertar uma janela, uma porta", diz Joaquim Neto.
Eles contam que o envolvimento dos professores com as turmas também os leva muitas vezes a usar o próprio salário para comprar material escolar ou até mesmo ajudar algum aluno a permanecer na escola. "Às vezes, sabemos que uma família está com tanta dificuldade que está passando fome, vemos que o menino come o máximo que der da merenda de sexta-feira porque só vai voltar a comer na segunda de manhã. Como esperar que esse aluno não pense em deixar a escola e procurar emprego? Por isso, montamos cestas básicas para entregar às famílias", conta Divina.
O esforço não passa despercebido pelos alunos. "Os professores daqui nos ouvem. Mais do que isso, se importam com a gente. Eles são como uma segunda família e sei que, se eu estudar, terãoi orgulho de mim", diz Jéssica.
Isabela Palhares, O Estado de São Paulo