MOSCOU — Quase três décadas se passaram e a irreversível metamorfose da União Soviética para a Rússia que se conhece hoje ainda não está concluída. Nem poderia.
Esses processos de transformação costumam arrastar-se pelo tempo, diriam os historiadores. E o legado de uma utopia que mudou a História do século XXI não tem como ser apagado da noite para o dia. A engrenagem soviética impregnou em todos os níveis a vida no maior país do planeta durante os 74 anos de existência da URSS. Desde então, os russos têm aprendido a conviver com a nova realidade.
Medidas que reduzem benefícios sociais considerados conquistas da era soviética continuam a ser anunciadas gradualmente. No mês passado, foi aprovada em primeira leitura pela Câmara baixa do Parlamento russo a reforma da Previdência que aumenta de 55 para 63 anos a idade mínima para a aposentadoria das mulheres, e de 60 para 65 anos a dos homens. É a primeira vez que este limite é alterado desde 1935.
Não se trata apenas de estender o limite. A expectativa de vida na Rússia pode inviabilizar a aposentadoria de uma parte da população, embora tenha até melhorado nos últimos anos. Chegou ao nível recorde de 71,87 anos, segundo dados oficiais do Rosstat. Mulheres nascidas hoje viverão 77,06 anos. Enquanto os homens não passam de 66,5 anos, na média. No interior do país, os prognósticos são piores, como no distrito autônomo de Chukotka, onde a expectativa de vida para quem nasce agora é de apenas 64 anos.
Leis recentes também aumentaram o preço dos serviços básicos. Tarifas de energia elétrica, água e calefação vão custar entre 3,5% e 6% mais caro no país todo. Essas taxas costumavam ser subsidiadas pelo governo, outra herança soviética. Até há alguns anos, aluguéis de imóveis embutiam os custos dos serviços na mensalidade, uma vez que não pesavam no bolso do proprietário. Habituados aos valores irrisórios do aquecimento, cuja distribuição ainda é centralizada na maior parte de Moscou, muitos russos se davam o luxo de escancarar as janelas em pleno inverno, com os termômetros marcando abaixo de zero, para resfriar os apartamentos quando ficavam quentes demais. Em muitos imóveis mais velhos não há como controlar a temperatura ambiente.
CORTE CAUTELOSO
Mas é preciso cautela para cortar os vínculos com o passado. O governo de Vladimir Putin tem consciência disso. Nestes 18 anos em que se mantém no comando do Kremlin, o presidente entendeu que há certas cicatrizes que precisam de tempo para ser tocadas. Por isso, o debate sobre remover ou não o corpo embalsamado do líder bolchevique Vladimir Lenin, o pai da revolução comunista, do mausoléu na Praça Vermelha, está suspenso. Governo e Igreja Ortodoxa, que reconquistou influência no pós-comunismo, concordam que as pessoas ainda não estão preparadas para essa discussão.
O projeto de reforma previdenciária foi apresentado aos parlamentares durante a abertura da Copa do Mundo, e não pelas mãos de Putin, mas do seu primeiro-ministro Dmitri Medvedev. Mais tarde, o Kremlin tentou distanciar o líder russo do texto da reforma. Disse que ele ainda não havia analisado detidamente os detalhes, que ainda estavam sendo avaliados pela área técnica do governo. Mesmo assim, Putin registrou uma perda de popularidade de 12 pontos percentuais em poucas semanas, segundo o Centro Iuri Levada, oscilando abaixo de 50% pela primeira vez em cinco anos. A revolta dos cidadãos desencadeou protestos pelo país desde então.
Muitos russos ainda se lembram das benesses proporcionadas durante a URSS, algumas das quais vigoram até hoje. Além da reforma da Previdência, o pacote apresentado por Medvedev inclui ainda o aumento do imposto sobre valor agregado, algo que não havia na era soviética, assim como outros tributos.
— A história ainda é muito recente. A herança soviética está por toda parte, embora muito tenha mudado de lá para cá. Há um percentual não desprezível de pessoas que ainda acreditam que tinham uma vida melhor naquela época — diz o sociólogo Denis Volkov, do Centro Levada, que organiza pesquisas de opinião no país desde o fim da URSS.
Os mais velhos hoje insistem que vivia-se muito melhor na URSS, quando um ingresso de teatro custava não mais do que o equivalente a um quilo de carne. Hoje, um bilhete barato para um espetáculo no Teatro Bolshoi, por exemplo, pode sair a US$ 50, a depender da apresentação. Os ingressos de teatro na Rússia ainda são mais baratos do que no resto do Ocidente, mas passaram a ser considerados um luxo, despesas supérfluas das quais se pode abrir mão.
FILA DE 20 ANOS PARA CASA GRATUITA
O Estado ainda é muito presente na vida das pessoas, mas já não é tão generoso quanto no passado. As filas para se receber o sonhado apartamento próprio ainda existem, mas pode levar mais de 20 anos para que o cidadão tenha direito à benesse. Imóveis hoje são comprados e vendidos pelas regras de mercado, novos, antigos e até mesmo os kommunalka — os apartamentos da era soviética que eram divididos entre as famílias que ocupavam cada uma o seu quarto, mas compartilhavam o banheiro e a cozinha. O conceito de propriedade privada é mais jovem na Rússia do que em outros países.
As tradicionais datchas, as casas de fim de semana que quase toda família mantém até hoje, foram construídas, em sua maioria, em terrenos que eram distribuídos gratuitamente pelo governo. Hoje, as famílias numerosas ainda podem receber a terra, mas são obrigadas a pagar impostos sobre elas.
— Antes, quem trabalhava nas fábricas ou nos kolkozes (fazendas coletivas) podia voar e descansar de graça em spas pelo país. Já não é mais assim. Os produtos custam mais caro. Eu pagava quatro centavos pelo kilowatt de luz, hoje são cinco rublos — diz a aposentada Valentina Sizova.
Diante das necessidades da Rússia, que precisa ampliar o orçamento das áreas sociais, os benefícios do passado serão, como no resto do mundo, ceifados pelas novas condições do presente. Com o agravante de que o país está sob sanções de algumas nações do Ocidente, comandadas pelos Estados Unidos, há quatro anos, desde a anexação da Crimeia.
PAIS TINHAM EMPREGO GARANTIDO
A verdade, no entanto, é que não se pode cortar tudo de uma vez. Não apenas em função da insatisfação popular, mas porque existem implicações sobre a inflação. De acordo com o Levada, a grande maioria dos 140 milhões de russos tem como maior preocupação a perda da qualidade de vida.
O mercado de trabalho hoje é disputado e obriga os jovens que saem das universidades a batalhar pelo primeiro emprego. Metade dos 3,8 milhões de desempregados na Rússia hoje tem entre 24 e 35 anos. Ou seja, um em cada dois desempregados está nessa faixa etária.
Seus pais saíam da universidade com garantia de que estariam empregados pelo resto da vida.
— Quando saímos da universidade, todos tínhamos emprego garantido. Não havia motivo para preocupação com o dia de amanhã. É claro que hoje há mais liberdade para buscar posições, mudar de profissão e até empreender — disse Evguenia Pakhomenko, professora universitária.
Para o psicólogo Rustam Nabulin, a sociedade vem ganhando pouco a pouco certas liberdades desde a URSS. Mas apenas as que ele chama de "liberdades visíveis", aquelas que não ameaçam o poder constituído: de o cidadão se vestir como quiser, viajar e comer bem, se tiver dinheiro para isso:
— É permitido tudo que pode distrair as pessoas.
Enquanto muitos veem as mudanças como motivo de revolta, um prato cheio para os raros movimentos de oposição que conseguem espaço para se destacar no país, muitos especialistas garantem que a Rússia continua em transformação, acomodando-se às leis do mercado. O problema é saber até onde a corda pode esticar sem prejudicar a economia ou ameaçar a situação.
Vivian Oswald, O Globo