domingo, 19 de agosto de 2018

Na última favela de Madri, 800 pessoas estão à espera de reassentamento - Famílias serão levadas a apartamentos na cidade


Em Cañada, a 15 quilômetros de Madri, moradores vivem em condições precárias: 800 mais vulneráveis aguardam por reassentamento até o fim de 2019 - Maya Balanya / O Globo

MADRI - Os 15 quilômetros do trecho madrilenho da Cañada Real Galiana, um antigo caminho rural criado há quase 300 anos para o passo de bois na região histórica da Castela, são como um portal entre dimensões. Ocupada por barracos a partir da década de 1950, quando a Espanha ainda era um país pobre, essa zona é a última favela da rica Madri e guarda, em seu microcosmo, um abismo social.

Quanto mais ao Sul, pior é a situação das construções. E um trecho sem asfalto, luz, esgoto ou água encanada é agora o foco de um projeto de reassentamento de quase 800 pessoas que, apesar das diferenças culturais e de escala, pode inspirar abordagens para o problema habitacional brasileiro.

No chamado Setor 6, o mais desassistido, há três mil pessoas, 41% da população de 7,3 mil moradores da Cañada. A maioria (52%) são ciganos espanhóis, com importante presença de muçulmanos marroquinos, além de minorias de centro-americanos e romenos. Muitos trabalham recolhendo metais a poucos metros de casa, no aterro sanitário onde é despejado o lixo de mais de três milhões de madrilenhos todos os dias (menos os deles próprios, recolhido só uma vez por semana).

A proximidade do lixão faz dessa região a de maior incidência de doenças respiratórias e dermatológicas na área metropolitana. Ali também estão as maiores taxas de evasão escolar — quase 30% — e de analfabetismo entre adultos — espantosos 80%, segundo a Cruz Vermelha.

O isolamento físico e social é tal que, em Madri, dizer que se visitará Cañada é garantia de arregalar os olhos de qualquer interlocutor. A má fama se deve às bocas de fumo de um pequeno trecho do Setor 6, que produzem cenas chocantes de pessoas, todos os dias, injetando-se heroína sob sol, chuva ou neve, junto aos muros da Paróquia de São Domingo da Calçada ou dentro de carros estacionados. Apesar de minoritário e muito distante do nível de violência das favelas do Rio, esse panorama sombrio torna Cañada uma zona proscrita.

— Eu jamais digo que vivo aqui. Ponho no currículo que sou de Rivas (município por onde se esparrama um trecho da favela). Se você diz a verdade, esqueça, ninguém lhe dará emprego. O estigma é brutal — descreve Verónica Muñoz Muñoz, de 25 anos, que vive com o marido e a filha de 4 anos num barraco com piso frio branco, que ela passa os dias tentando manter livre do pó pegajoso teimosamente infiltrado pela porta, pelas janelas, pelas fendas das paredes.

‘Meu sonho é viver num lugar com parques para as crianças, sem ruas enlameadas, sem quedas de energia por causa dos gatos de luz, que queimam nossas geladeiras, nossas poucas coisas. Estou aqui desde 1991 e já vi muitos anúncios de reassentamento.’
- PETRA FERNÁNDEZ BECERRO37 anos
Estado quase ausente

Verónica estudou só até o 6º ano, quando os avós, que vivem alguns metros rua acima, ordenaram que ela abandonasse o colégio para se casar. É a realidade de muitas mulheres na hierarquizada comunidade cigana local, com os homens ocupando o comando inconteste dos clãs. Também são eles os donos dos poucos automóveis, tornando precária a mobilidade delas.

Petra Fernández Becerro, de 37 anos, sabe bem disso. Seu marido cumpre pena de dois anos e meio de prisão — “acusado por um roubo que não cometeu” —, e ela precisa percorrer a pé os mais de 8 quilômetros de ida e volta da farmácia, da parada de metrô ou do supermercado. Como não tem com quem deixar os seis filhos, leva-os a tiracolo.

— Meu sonho é viver num lugar com parques para as crianças, sem ruas enlameadas, sem quedas de energia por causa dos gatos de luz, que queimam nossas geladeiras, nossas poucas coisas. Estou aqui desde 1991 e já vi muitos anúncios de reassentamento. Quero crer que agora vai ser diferente, mas é difícil — diz essa mulher que sobrevive do salário mínimo social do governo, calculado em função da quantidade de crianças e que, no caso dela, atinge o teto de € 735.

Não dá para chegar ao fim do mês. A igreja evangélica lhe garante algo de comida e roupas. ONGs como Cruz Vermelha, Secretariado Gitano e Caritas proveem atenção médica, acompanham a educação das crianças e profissionalizam os adultos.

— Intervimos de várias formas porque o isolamento social muitas vezes não permite às famílias trabalhar e se inserir, o que perpetua sua situação. É complexo — define Daniel Ahlquist, responsável de projetos em zonas desfavorecidas da Cruz Vermelha espanhola.

Fora o fornecimento de água dos caminhões-pipa semanais, o Estado é quase ausente.

Daí as dúvidas de Petra e outros com relação à efetividade da promessa de remoção das 150 famílias mais vulneráveis. Assinado em maio, um convênio entre a Comunidade de Madri e as prefeituras de Madri, Rivas e Coslada prevê o fim do reassentamento até o final de 2019.

Um ponto que chama a atenção é o destino dos reassentados. Não se construirão conjuntos habitacionais. Prepara-se um estudo detalhado do tamanho exato das famílias e de suas relações de parentesco. Só então serão comprados apartamentos à venda no mercado, em boas áreas da capital e das outras duas cidades, garantindo que núcleos familiares estendidos (avós, bisavós) continuem a ser vizinhos e se integrem à sociedade.


Família de Petra espera realocação - Maya Balanya / Agência O Globo


Ouvindo os moradores

A compra de apartamentos é uma tentativa de evitar que conjuntos isolados, longe de tudo e sem transporte, virem novas favelas — uma solução que muitos especialistas já pediram para a ociosidade de milhares de imóveis residenciais nos abandonados centros das metrópoles brasileiras.

“Nossa obrigação era trabalhar diretamente com os moradores e escutá-los. Nomeamos comissões locais para não romper a relação necessária entre a vontade política e a realidade da execução do projeto”, diz, em nota, a prefeita de Madri, Manuela Carmena.

As outras cerca de 2.850 famílias da Cañada Real não serão contempladas por enquanto. 

A prefeitura e a comunidade trabalham num plano para melhorar as condições de urbanização de trechos já mais formalizados, regularizando títulos de propriedade e melhorando serviços públicos. A filosofia por trás disso é fazer a favela deixar de sê-lo, em vez de simplesmente derrubá-la por completo.

Esperando a concretização de tantos planos, os moradores do “caminho sem asfaltar” enfrentam a onda de calor e a secura deste verão. E começam a acumular lenha para lareiras improvisadas que garantirão um pouco de calor nos barracos no inverno. Recolhem galhos caídos às margens da estrada por onde caminhões-pipa e carros passam velozes rumo à zona de bonitos edifícios da cidade formal. É a outra dimensão. O lugar com que, por ora, continuam sonhando os que ainda habitam uma das maiores favelas da Europa Ocidental.


Alessandro Soler, O Globo