domingo, 19 de agosto de 2018

1968: A invasão soviética de Praga, narrada pelo correspondente da AFP em tempo real

'Tiros ensurdecedores não conseguiram dispersar centenas de pessoas que gritam em direção aos tanques: Gestapo! Longa vida a Dubcek!'

Jovens se reúnem nas ruas de Praga depois de confrontos entre manifestantes e os soldados invasores Foto: - / AFP

Jovens se reúnem nas ruas de Praga depois de confrontos entre manifestantes e os soldados invasores - - / AFP
No amanhecer do dia 21 de agosto de 1968, os moradores de Praga despertaram em choque ao perceber que sua cidade estava ocupada por tanques soviéticos. Durante a noite, cerca de 30 divisões do Exército soviético, apoiadas por forças militares de Bulgária, Alemanha Oriental, Hungria e Polônia, haviam invadido a então Tchecoslováquia para botar o país de novo na linha depois de sete meses afastado politicamente das diretrizes da União Soviética.

Em poucos dias, os soviéticos puseram fim à Primavera de Praga — as reformas políticas, econômicas e culturais que estavam acontecendo desde que Alexander Dubcek assumira o comando do Partido Comunista do país em janeiro daquele ano. No dia da invasão, o enviado especial Jean Leclerc, da AFP, reportou os acontecimentos diante da Rádio Praga, um símbolo da mudança em direção à liberdade de expressão no país, e também narrou o que ocorria na célebre Praça Venceslau. Abaixo, estão trechos de duas de suas reportagens daquele 21 de agosto:

PRAGA - A tensão permanece alta às 7h30 [de 21 de agosto de 1968] próximo ao prédio da Rádio Praga, cercado — assim como os prédios do Comitê Central e o Castelo de Praga — por tanques soviéticos.

Soldados dispararam rajadas de metralhadora cinco ou seis vezes em direção aos andares e janelas do prédio e de casas vizinhas. Mas os tiros ensurdecedores ainda não conseguiram dispersar as centenas de pessoas concentradas na frente do edifício, atrás de barricadas de caminhões e escavadeiras. ...Só o fogo das metralhadores é capaz de abafar os xingamentos que as pessoas gritam em direção aos tanques, como "Gestapo!" e "Longa vida a Dubcek!"

Os pavimentos à volta do prédio estão repletos de pedaços de gesso e cimento. Fios elétricos de bondes foram partidos pelas balas e se sacodem pelo chão. Mas o povo de Praga ainda está lá, e não parece ter medo. As ruas da capital estão animadas, com pessoas reunidas a cada esquina discutindo a situação. Ninguém entende essa intervenção; todos os rostos demonstram choque. É impressionante como estão calmos os transeuntes que se agrupam na Avenida Venceslau. Há pessoas que fazem fila diante de lojas e chefs de hotéis chiques observando de suas portas, com os característicos chapéus altos.Mas, em muitos rostos, as lágrimas rolam.

Na Praça Venceslau, os Champs Elisées de Praga, onde edições especiais de jornais são distribuídas de graça, centenas de pessoas estão reunidas quando, às 7h45, mais fogo de metralhadora irrompe ali perto, na rua onde fica o edifício da Rádio Praga.

Só os jovens não parecem resignados com a situação. Eles cruzam as principais vias da cidade em caminhões, agitando a bandeira azul, branca e vermelha da Tchecoslováquia, e gritando insultos para cada comboio de tanques estrangeiros.

Outros jovens, usando emblemas com as palavras "Faça amor, não faça guerra" ou "Liberdade", andam à volta dos tanques e blindados, cujas tropas têm os rostos sujos de poeira negra e suor. Alguns oferecem cigarros ao soldados, tentando fazer com eles falem, mas os militares permanecem em silêncio.

BANDEIRA MANCHADA DE SANGUE

Cinco jovens de Praga aos prantos segurando uma bandeira tchecoslovaca manchada de sangue. Este é o trágico desfecho dos incidentes que eclodiram pouco depois das 10h em frente ao prédio da Rádio Praga, em que duas pessoas ficaram feridas. Vários outros foram feridos na Avenida Venceslau, onde as pessoas tentavam se esconder atrás de qualquer coisa que pudessem encontrar para se protegerem das balas ou dos escombros caindo dos prédios.

Os tanques passam em meio aos assovios e xingamentos de uma multidão, que se reagrupa assim que o comboio vai embora. Os jovens são claramente a maioria, e não parecem nem um pouco derrotados.

Minutos antes, a multidão na Praça Venceslau cercava um tanque que estava coberto por um grupo de adolescentes. Por um tempo houve um profundo silêncio, logo quebrado pelas estrofes do hino nacional tchecoslovaco. Um morador idoso, sentindo o peso dos acontecimentos, só conseguia gaguejar as palavras "ocupação, ocupação".

Três homens — mais parecendo limpadores de chaminés que soldados — emergiram do tanque no meio da multidão, com os rostos quase infantis escurecidos pela poeira. Os homenzinhos em seus uniformes cinza-chumbo, espantados por se acharem em pleno centro de Praga, só conseguiam responder aos xingamentos dizendo que tinham sido chamados para responder a "uma ameaça fascista".

Os jovens manifestantes desenharam suásticas com giz nos tanques e blindados. Adultos tentam controlá-los. Mas já há um grupo, brandindo uma bandeira, correndo em direção aos tanques flamejantes na frente do prédio da Rádio Praga. Soam os primeiros tiros desde a manhã.



Jean Leclerc, AFP