domingo, 28 de agosto de 2016

Os empreendedores que foram aos EUA aprender novos jeitos de trabalhar

BRUNO FERRARI, COM GRAZIELE OLIVEIRA *| DE PALO ALTO  - EPOCA



Do Recife ao Vale do Silício: ÉPOCA acompanhou a trajetória de empreendedores que foram aos Estados Unidos para aprender a inovar



A empreendedora Marilia Lima, de 41 anos, passou os primeiros meses de 2016 seguindo um cotidiano extenuante de aulas, palestras e debates nos Estados Unidos. Duas vezes por semana, a carga era mais pesada. Pegava um trem de Berkeley, na Califórnia, onde estava hospedada, em direção a Palo Alto, cidade símbolo do Vale do Silício, que abriga empresas como HP e Tesla Motors. A viagem levava duas horas e meia só na ida. Seu destino era o café Venetia, na própria estação ferroviária de Berkeley. Marilia se reunia com o executivo e empreendedor americano Brett Fox, um veterano do Vale do Silício, que fazia o papel de mentor da brasileira. Marilia preside a SiliconReef, uma empresa do Recife, fabricante de chips e sensores para equipamentos de geração de energia limpa – solar, térmica, eólica e cinética. No Recife, é uma empreendedora de destaque. No Vale do Silício, uma aprendiz.
Fox falava de modo sistemático e acelerado. Apontava erros e sugeria estratégias com uma objetividade que, para ouvidos brasileiros, beirava a grosseria. No primeiro encontro, Fox avaliou planilhas da SiliconReef e, em cinco minutos de conversa, disparou: “Seu problema está na área de vendas. Demita quem representa sua empresa fora do Brasil”. Se valeu a pena para Marilia? “Estou economizando um ano em erros, o equivalente a R$ 1 milhão”, disse ela, durante uma viagem em que foi acompanhada por ÉPOCA.
Marília Lima, Fundadora  da SiliconReef  (Foto: Peter DaSilva/ÉPOCA)
A pernambucana foi uma de seis empreendedores brasileiros que fizeram uma imersão no Vale do Silício. Seus negócios são baseados no Porto Digital, um polo de inovação no Recife. Os brasileiros foram submetidos a um choque cultural na região mais inovadora do mundo, no país mais produtivo do mundo. Quando não estava em Palo Alto, Marilia ocupava uma bancada no edifício de número 180 da Rua Sansome, no distrito financeiro de San Francisco. Ali fica a Rocket Space, uma empresa que oferece espaço para trabalho, aconselhamento e contatos úteis para empreendedores.
ÉPOCA acompanhou a trajetória dos empreendedores a partir de novembro de 2015, quando foram selecionados entre dezenas de outros no Porto Digital. A imersão recebeu apoio da agência governamental Apex-Brasil, de promoção de exportações. “Queremos formar uma geração de empreendedores capaz de criar e difundir no Brasil uma cultura que favoreça a inovação”, diz Francisco Saboya, presidente do Porto Digital. Cada brasileiro aproveitou a experiência a seu modo.
O olindense Flávio Almeida, de 29 anos, pensa em seu negócio como uma força transformadora. Com colegas do curso de ciência da computação da Universidade Federal de Pernambuco, fundou a ProDeaf, que desenvolve tradutores de português e inglês para a linguagem de sinais. Para conversar com um deficiente auditivo, basta falar no aplicativo para smartphones e um avatar reproduz as imagens dos sinais. “Há cinco anos, os sistemas de reconhecimento de voz estavam começando. Criamos um protótipo do que queríamos”, diz.
Almeida tem na ponta da língua estimativas do tamanho de seu mercado, um dado básico para qualquer conversa inicial com potenciais investidores americanos. Há mais de 360 milhões de portadores de deficiência auditiva no mundo e 10 milhões estão no Brasil, onde o Bradesco usa o software da ProDeaf. A empresa fatura R$ 1 milhão por ano e, segundo Almeida, dá lucro. “Não somos uma ONG. Temos um negócio rentável, com impacto social e com capacidade de alcançar escala global”, diz.
Lucro ainda pequeno mas ambição já imensa impressionam bem no Vale do Silício, tolerante com empresas que dão prejuízo por anos, até se firmar. Almeida quer montar uma operação por lá em 2017. Para isso, precisa de cerca de US$ 800 mil. “Isso você consegue rápido. Basta vir para cá e o dinheiro chegará a você”, afirmou um representante de investidores numa reunião acompanhada por ÉPOCA. Almeida diz ter ouvido o mesmo de ao menos mais dois investidores. Para quem cria um negócio no Brasil, porém, nem receber dinheiro é fácil.

Flávio Almeida, Fundador da ProDeaf (Foto: Peter DaSilva/ÉPOCA)

No fim de 2015, a ProDeaf foi escolhida pelo Google num programa de incentivo a projetos de impacto social nos Estados Unidos e recebeu US$ 50 mil. “É dinheiro para inovação. O Brasil deveria aceitar de braços abertos”, diz Almeida. Não foi o que aconteceu. Para receber o incentivo, a ProDeaf teve de emitir nota fiscal, como se estivesse prestando um serviço ao Google. “Perdemos pelo menos 15% em impostos”, afirma Almeida.

Marilia, da SiliconReef, também se atrapalha com a burocracia. Seus chips para equipamentos de captação de energia nascem em projetos que custam cerca de US$ 400 mil e têm ciclo de vida de cinco anos até a obsolescência. Agilidade é fundamental para a saúde do negócio. Por falta de tecnologia disponível no Brasil, Marilia faz protótipos e produção em ao menos três países diferentes. Por isso, a empresa vive enfrentando barreiras burocráticas. Ela conta que chips de teste ficam parados por meses na Receita Federal, porque os fiscais não entendem a diferença entre um protótipo de pesquisa e um chip comum, que vai dentro de um computador de linha, a ser vendido em qualquer loja de eletrodomésticos.
Na Califórnia, trabalhar é um tanto mais fácil. O gaúcho João Paulo Sattamini, criador da marca de sucos e energéticos Organique, chegou a San Francisco há pouco mais de um ano. Deixou no Brasil uma vida confortável e uma empresa que já faturava milhões. O negócio começou a ser concebido em  2005, quando ele viajou a Londres e se embasbacou com a variedade de produtos orgânicos. “Decidi criar um café orgânico como meu trabalho de conclusão de mestrado”, conta.
Na volta ao Brasil, investiu no desenvolvimento de sucos e chás orgânicos, até ter a ideia do energético que misturava ingredientes do sul e do norte do país: a erva-mate e o açaí. “O brasileiro estava começando a topar pagar mais por um produto orgânico. Colocar ingredientes locais era o apelo que faltava”, diz. Em 2013, começou a exportar. Primeiro para o Japão, depois para Chile, Inglaterra e Canadá. Quando conseguiu um contato para vender para os Estados Unidos, partiu para o Vale do Silício. Com o apoio da Apex, ocupou uma bancada na Rocket, ao lado dos outros empreendedores brasileiros na imersão. “O californiano é o maior consumidor de produtos orgânicos do mundo”, diz. Nos Estados Unidos, ele divide um apartamento de 40 metros quadrados com a namorada e dezenas de caixas de energético. Passa o dia em contato com distribuidores ou vendendo ele próprio em lojas de conveniência de San Francisco. “É como se começasse do zero, mas com perspectiva de crescimento, não da recessão do Brasil”, afirma.
Almeida, da ProDeaf, voltou a Olinda com algumas ressalvas em relação à cultura de trabalho no Vale do Silício. Acha que algumas práticas de lá não têm sentido no Brasil. “Vivemos num país com estrutura precária, escassez de mão de obra qualificada e ambiente de negócios ruim”, afirma. “Não adianta tentar enfiar goela abaixo de sua equipe no Brasil a cultura da eficiência extrema.” Almeida trouxe na bagagem lições que considera fundamentais, como aceitar agendar apenas reuniões com potencial para ser produtivas e terminá-las com uma lista de tarefas a cumprir. Marilia segue na mesma linha. De volta ao Brasil, passou a buscar mais objetividade e eficiência. A imersão provocou nela outra mudança – na autoimagem. “Sempre que preenchia um cadastro, colocava como profissão minha formação de cientista da computação”, disse. “Desde que voltei, passei a escrever ‘empresária’.”