Arnaldo Bloch - O Globo
Escritor e documentarista com carreira internacional na TV, passou por jornais, foi editor do ‘Jornal Nacional’ e do ‘Fantástico’ e apresentou por 10 anos o programa de entrevistas ‘Dossiê GloboNews’
“Nasci numa sexta-feira 13, num beco sem saída, numa cidade pobre da América do Sul. Tinha tudo para fracassar. Fracassei.” O ano era 1956, a cidade era o Recife, e o “fracasso” era só uma tirada de humor e modéstia — características sempre citadas por colegas e amigos — de um mestre do jornalismo que, em seus 60 anos de vida e mais de 40 de carreira extremamente bem-sucedida, ganhou o Brasil e o mundo com uma visão original e eclética dos fatos e uma predileção pela convergência entre jornalismo e História.
“Todo profissional precisa de uma bandeira. Escolhi uma: fazer jornalismo é produzir memória. É o que me move” — registrou, em entrevista para o acervo da TV Globo.
— Geneton foi um dos expoentes do jornalismo em nossa geração. Ávido pela notícia correta, relevante, sempre inquieto. Homem de jornal, migrou para a televisão com enorme sucesso. Reinventou-se. Foi editor e repórter ao mesmo tempo. Primeiro na TV aberta, no Fantástico, e, depois, na Globo News, onde suas entrevistas se tornavam antológicas no nascedouro. Do hospital, num momento de melhora, mandou um email carinhoso avaliando a trajetória dele. Apesar do enorme respeito conquistado na TV, me disse que era um homem do papel, e que, se pudesse, teria permanecido mais tempo no impresso. “Mas sem perder a paixão pela televisão”. Ele era completo. Vai fazer uma falta imensa como profissional. E em mim deixa um admirador e colega cheio de saudades.
Na vertente de entrevistador de TV — que se tornou a mais notória a partir do momento que assumiu o programa Dossiê GloboNews, em 2009 — colecionaria uma longa lista de encontros, que inclui seis presidentes da República, três astronautas que pisaram na Lua, os prêmios Nobel Desmond Tutu e Jimmy Carter, os dois militares que dispararam as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, a mais jovem passageira do Titanic e o assassino de Martin Luther King: páginas de uma notável galeria.
Diretora geral da GloboNews, Eugênia Moreyra recorda que o conheceu ainda em Recife.
— A gente era muito jovem e ele era já um monstro como repórter. Não parava de repetir que é na rua que as histórias estão, incomodava-o ver gente na redação. Tenho hoje uma equipe muito jovem, que perde um grande exemplo, uma referência. Sou de uma família de muitos jornalistas e era um prazer vê-lo trabalhar com paixão, destilando aquela ironia só dele.
Num de seus trabalhos de campo mais pungentes, embrenhou-se pelo sertão e focalizou um grupo de jovens estudantes marcados pela tradição musical brasileira em sua vereda clássica, com uma citação da câmera de Glauber Rocha em “Deus e o diabo na terra do Sol” focada em uma menina que canta a famosa “Aria (Cantrilena)” das Bachianas de Villa-Lobos e a imagem gira, como na famosa cena de Corisco.
Dono de um estilo discreto, dizia-se avesso às câmeras. Frequentemente aparecia de perfil ou oculto, e algumas de suas reportagens eram narradas por terceiros. Atrás das câmeras, desenvolveu a veia de editor (atuando no “Jornal Nacional”) e de comando, como editor executivo do “Jornal da Globo”. Em 1995 passou a chefiar, junto com Ernesto Rodrigues, o escritório da Globo em Londres, período em que foi também correspondente do jornal O GLOBO.
Antes de se tornar um homem de televisão, escreveu nas páginas do jornal “O Estado de São Paulo”, para o qual se transferira depois de iniciar a carreira no “Diário de Pernambuco”. Colaborou também com o caderno “Ideias”, do “Jornal do Brasil’’.
Em 2011 interromperia a carreira na TV para dirigir o documentário em três partes “As canções do exílio/Uma labareda que lambeu tudo”, exibido pelo Canal Brasil, onde conta as histórias do exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil durante o regime militar. A ideia partiu de uma foto em que, com apenas 15 anos, aparece entrevistando os músicos baianos para o “Diário de Pernambuco”. No ano seguinte, recebeu a Medalha João Ribeiro concedida pela Academia Brasileira de Letras (ABL) a personalidades que se destacam na área de cultura.
A partir de 2013, a veia documental encontrou-se com a pulsão televisiva ao dirigir “Garrafas ao mar”, primeiro doc longa-metragem produzido pela GloboNews, dedicado àquele que é considerado o maior repórter da história do jornalismo brasileiro: Joel Silveira. O filme reúne entrevistas que Geneton gravou com Joel em duas décadas de convivência. No mesmo ano, pela emissora, dirigiu “Dossiê 50: Comício a favor dos náufragos”, um painel audiovisual dos onze jogadores que enfrentaram o Uruguai na épica derrota da final da Copa do Mundo de 1950.
Em 2015 ganhou o prêmio especial do júri do 25º Festival Ibero-Americano de Cinema, realizado em Fortaleza, por “Cordilheiras no mar: a fúria do fogo bárbaro”, sobre as relações de Glauber Rocha com Ernesto Geisel. Geneton lançaria uma dezena de livros (um traz a última entrevista de Carlos Drummond de Andrade), a maioria dossiês com aprofundamentos de suas reportagens, sobre as quais escrevia num blog de “confissões”.
Geneton estava internado desde maio na Clínica São Vicente, na Gávea. Morreu vítima de um aneurisma dissecante na aorta. O velório será quarta-feira no Memorial do Carmo, Rio, onde o corpo será cremado. O jornalista deixa viúva, Elizabeth, três filhos, Joana, Clara e Daniel, e quatro netos, Beatriz, Dora, João Philippe e Francisco. E uma legião de amigos, colegas e fãs.