segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Afastada discursa para cineasta, conta mentiras sobre o passado, o presente e o futuro

Com Blog do Reinaldo Azevedo - Veja


Em discurso que repete nove vezes a palavra 

golpe, presidente não admite um só erro, 

atribui todos os seus desastres a seus 

adversários e demonstra por que não pode 

governar o país. E ainda: o estoque de 

cadáveres do passado “democrático” de Dilma



Conforme o esperado, e lamento que seja assim, Dilma fez o pior discurso da sua vida. Contou mentiras sobre o passado, o presente e o futuro. Se conseguiu falar com a firmeza convicta que tão bem a caracteriza, ainda que nem sempre se entenda o que diz, o conteúdo, também desta vez, destoa dos fatos. Para sua má sorte, sua sintaxe foi clara. E, ao ser clara, entendemos por que caiu, nos espantamos que tenha chegado lá e nos damos conta do risco que corríamos. Havia certa dúvida se empregaria a palavra “golpe”. Não o fez apenas uma vez, mas nove. Dilma, em suma, repete Gleisi Hoffmann e, no fundo, não reconhece moral no Senado para julgá-la. Seu discurso não foi feito para os senadores. Ela falava para a cineasta Petra Costa, que está fazendo um documentário.
Vou mudar a ordem cronológica escolhida por ela. Começo a falar sobre o futuro, evidenciando o risco que esta senhora, de fato, representava ainda que não tivesse cometido crime nenhum — e destaco sempre que devemos lhe ser gratos por ser tão irresponsável com as contas públicas e incompetente no trato da gestão.
Publicidade
Dilma atribui ao governo Temer a intenção de cortar programas sociais, de cassar benefícios das mulheres e dos negros, de cortar recursos para a saúde e as crianças, de vitimar os mais velhos, ceifando-lhes a aposentadoria, de querer punir o Nordeste, de não ter compromisso com o salário mínimo, de conspirar contra o pré-sal. No auge da mistificação, chega mesmo a atribuir a seus adversários um conluio contra a estabilidade fiscal — justo ela, que destruiu as contas públicas.
Ainda que não tenha feito menção ao Partido dos Trabalhadores em seu discurso, eis o PT de sempre: arrogante, monopolista do bem, dono da verdade, incapaz de ouvir uma crítica, autossuficiente nas suas escolhas desastradas, discriminador, surdo para o contraditório. O mais curioso é que, ao apontar as intenções malévolas dos seus adversários, sabe que tocou em problemas cruciais para o futuro do Brasil, que deverão ter uma resposta. Repete rigorosamente o procedimento adotado na campanha eleitoral de 2014, o que a levou a cometer o maior estelionato eleitoral da história do Brasil.
A mesma Dilma que fez esse discurso diz reconhecer os seus erros. Mas quais? Não se ouviu um só. Tudo o que deu errado no seu governo, entende-se, derivou da conspiração dos seus adversários.
Pensemos o óbvio: caso Dilma retornasse o poder — na hipótese de obter os votos necessários ou de aqueles favoráveis à sua saída não conquistarem 54 senadores —, pergunta-se: ela iria governar com quem? Quais forças políticas lhe dariam sustentação? Ela julga ter uma resposta: a convocação de novas eleições. É impressionante que uma presidente que está sendo julgada aponte como resposta para o país uma saída que ela sabe ser inconstitucional.
O presente
Ao fantasiar sobre a disposição do governo Temer de cassar benefícios sociais como ação deliberada e malévola de quem vê o povo como adversário, Dilma busca conferir uma roupagem de economia política à tese mentirosa do golpe. Assim, a sua deposição seria uma expressão da tal “luta de classes”, a tese vigarista que lhe assopraram aos ouvidos alguns marxistas mixurucas, que conhecem da obra de Marx o que sabem de búlgaro antigo — a exemplo da própria Dilma, diga-se.
Isso lhe impõe, então, que conte mentiras assombrosas sobre o presente — refiro-me ao presente histórico. Sob qualquer argumento que se queira, Dilma cometeu crime de responsabilidade. Incidiu no Artigo 85 da Constituição, especialmente em seu Inciso VI, atentando explicitamente contra a Lei Orçamentária, crime definido pela Lei 1.079, uma senhora de 66 anos, que prevê impeachment àqueles presidentes que não a respeitarem.
Mas tudo se explica. É preciso apelar à mais qualificada das testemunhas de defesa, que falou, a pedido do próprio advogado de Dilma, como informante: o professor e economista Luiz Gonzaga Belluzzo. Ele deixou claro aquela que é uma convicção do governo que está caindo: eles não concordam com o Artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, justamente aquele que estabelece ser “proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. Para o doutor e para o PT, se o dinheiro é de um banco público e se é usado pelo governo, então não é crédito, mas mera operação fiscal. Foi assim que esse pensamento quebrou o Brasil várias vezes ao longo da história. Mais recentemente, no governo Dilma.
Sim, a presidente cometeu crime de responsabilidade.
O passado
Todo homem público que provoca grandes desastres; que investe em crises sistêmicas; que faz a infelicidade de milhões — a pessoa, em suma, com esse perfil — exibe uma mitologia pessoal do sacrifício e da renúncia. Dos grandes facínoras da humanidade aos nossos patetas do presente e do passado, todos têm uma história triste ou heroica para contar.
A de Dilma é conhecida. Mas ganha especial sentido neste momento. É claro que a presidente afastada não deveria, por bom senso e por bom gosto, ter evocado o seu câncer no discurso de despedida. Doenças não existem para lisonjear ou para punir; doenças não são o contraponto de malfeitos ou sua justificativa moral. Menos ainda é decente que se apele a esse sofrimento como elemento constitutivo do caráter, como ingrediente de sua têmpera. Pessoas boas e detestáveis já foram acometidas de câncer. Alguns saíram do tratamento com um temperamento melhor; outros experimentaram o contrário. E há ainda aqueles para os quais a ocorrência foi irrelevante. O câncer não é guia moral de ninguém. A desordem nas contas públicas brasileiras, deixada por Dilma, não poderá se beneficiar das lições que ela eventualmente recebeu nesse tempo.
Ao contrário até: se a pessoa pública se aproveita da doença, como Dilma fez durante a eleição e faz agora, então é lícito que se veja, no seu caso, a moléstia como um deformador do caráter.
Finalmente, é preciso voltar, e eu lamento, aos anos 70. Dilma se refere de novo ao período em que foi torturada. De maneira ofensiva compara os senadores de agora àqueles que a julgaram; toma o triunfo da lei e do Estado de Direito, que estão prestes a lhe cassar o mandato, como se fossem leis de exceção. E mente sem cerimônia sobre o próprio passado.
Isso a leva a comparar-se a figuras como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, todos vítimas, na visão da presidente, de conspirações golpistas — o amor pela precisão me obriga a lembrar que o marechal Lott deu um golpe para garantir o poder a Juscelino, não o contrário. Mas Dilma certamente não é do tipo que repudia “golpes do bem”. Getúlio e Jango são maus exemplos de heróis democráticos. O primeiro foi o maior assassino da história republicana no Brasil, e o segundo investiu de forma deliberada na bagunça, arquitetando ele próprio um golpe, frustrado porque seus inimigos foram mais rápidos ao golpeá-lo.
Dilma finge não saber a diferença entre uma ditadura e uma democracia. Por isso evoca como credencial democrática o seu passado de membro de uma organização terrorista, chamando aquilo de amor à democracia. É chato fazer o que vou fazer, eu sei. Mas é preciso ter um compromisso com a história.
Dilma foi militante da VAR-Palmares, organização surgida da fusão do Colina (Comando de Libertação Nacional), ao qual ela pertencia, com a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), de Carlos Lamarca. Os familiares das pessoas assassinadas por essas organizações (próximo post) certamente não concordam com o apreço que ela teria, então, pelo regime democrático. 
Encerro
Foi Dilma quem resolveu apelar à história. Então é preciso dizer tudo. Afinal, os cadáveres sumiram no tempo. Os amigos de esquerda da Afastada, aboletados na academia, deram um jeito de escondê-los.