Alguém pode imaginar Ivanka Trump, com todos os adereços de milionária americana – cabelos ofuscantemente loiros, dentes esculpidos num laboratório de perfeição platônica, seios projetados como mísseis anti-balísticos –, no papel de revolucionária que quer derrubar o sistema?
Uma das mais curiosas contradições dessa campanha presidencial americana é como Donald Trump usa sua fortuna como um elemento positivo, em lugar de escondê-la ou escamoteá-la, como costumam fazer os políticos.
A ideia central é que, como bilionário, ele não depende de favores dos donos do dinheiro e agora quer dedicar os mesmos talentos que construíram seus 10 bilhões de dólares – é o que diz ter – para beneficiar o país.
Tanto no encerramento da convenção quanto em entrevistas, Ivanka Trump reforçou a narrativa criada pelo pai de bilionário sintonizado com as necessidades populares e disposto a se sacrificar por elas. “Mensageiro do povo”, “candidato do povo” e “defensor do povo”, foram alguns dos termos empregados. E ainda por cima um outsider político, pois “a verdadeira mudança só virá de fora do sistema”.
Se não fosse o cabelo, a maquiagem, o vestido e as sandálias de salto nas alturas, ela poderia estar fazendo campanha por Marina Silva.
Detalhe do vestido: ao contrário da madrasta, Melania Trump, que discursou na convenção com um modelo de grife de 2 190 dólares, Ivanka foi modesta. Usou um vestido rosa pálido de 138 dólares, da linha que tem com o seu nome. Mesmo se o pai não for eleito, ela já está fazendo um bom merchandising.
No papel de humanizadora do pai, Ivanka falou sobre licença maternidade e outros interesses femininos. Ela mesma não tirou licença nenhuma. Teve o terceiro filho no fim de março e quase em seguida voltou para a campanha do pai, com resquícios zero da gravidez tão recente.
Na prática, a campanha é dirigida pelo marido de Ivanka, Jared Kushner. Ele também é de uma família de bilionários do ramo de imóveis. Para se casar, Ivanka não apenas se converteu ao judaísmo como segue as restrições alimentares dos ortodoxos.
Kushner administra os negócios da família, um patrimônio de 7 bilhões de dólares, desde que o pai teve uns infortúnios de natureza legal e foi condenado a dois anos de prisão. Não é um assunto que os adversários democratas queiram explorar.
Chelsea Clinton, que é amiga de Ivanka e teve o segundo filho no mês passado, também tem um sogro enrolado. Edward Mezvinsky pegou cinco anos de cana por estelionato e criação de esquemas fraudulentos que separaram incautos de um total de 10 milhões de dólares.
Chelsea Clinton, que é amiga de Ivanka e teve o segundo filho no mês passado, também tem um sogro enrolado. Edward Mezvinsky pegou cinco anos de cana por estelionato e criação de esquemas fraudulentos que separaram incautos de um total de 10 milhões de dólares.
Trump sempre ganhou dinheiro fazendo marketing de si mesmo e não teria sentido mudar de estilo, mas é notável como fala ao eleitorado sem passar a imagem de milionário sem noção. O último candidato republicano a presidente, Mitt Romney, fazia de tudo para desfocar as atenções sobre sua fortuna – 450 milhões de dólares.
Sem sucesso. Romney enterrou-se de vez quando apareceu um vídeo feito por celular por um garçom e divulgado pelo neto do ex-presidente Jimmy Carter. Num jantar de gente rica, ele comentava que o adversário, Barack Obama, já entrava na eleição com 47% do eleitorado, composto por aqueles que dependem do governo e acham que “têm direito a plano de saúde, comida, casa, tudo”.
A base eleitoral de Trump é composta por homens, brancos, com renda mais baixa e sem instrução universitária. Por causa do tom populista e do caráter despudoradamente agressivo de seus comentários, ele encarna o papel de defensor dos insatisfeitos, que sabe como consertar o que consideram errado justamente por causa do sucesso como homem de negócios.
Enquanto praticamente todos os jornais e canais de televisão se dedicavam a demolir o tom “sombrio” e pouco construtivo de Trump na convenção, uma pesquisa de opinião teve resultados exatamente opostos à análise dos especialistas. No total, 57% dos espectadores tiveram uma reação “muito positiva” ao discurso de Trump e praticamente a mesma proporção – 56% – se sentiram mais inclinados a votar nele.
Agora vem a convenção democrata, na qual Hillary Clinton tem máquina partidária, simpatizantes famosos e meios de comunicação muito mais favoráveis. O “bilionário do povo” ainda está em desvantagem.