domingo, 26 de junho de 2016

Dorrit Harazim: "Brexit na veia"

O Globo


Resultado é combustível mais que perfeito para partidos de extrema-direita robustos na Europa


A dose pode ter sido excessiva até para quem dela quis provar. Após cortar com arrebito as amarras que os ligavam à União Europeia, até os 17 milhões de britânicos que assim votaram acordaram aturdidos com o próprio triunfo.

Enquanto no resto do continente lideranças nacionalistas de extrema direita saudavam o “voto pela liberdade” brandindo a bandeira britânica, em Londres, os cabeças da vitória do Brexit foram mais comedidos.

O líder do Partido Independente Britânico (Ukip), Nigel Farage, por exemplo, optou por retificar já na manhã da sexta-feira a principal e mais eficaz promessa da campanha vitoriosa. Ele era o estelar entrevistado do programa “Good Morning Britain”, que foi ao ar poucas horas após o anúncio do resultado final. Indagado se manteria o compromisso de reverter ao combalido Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido as 350 milhões de libras esterlinas até então alocadas à União Europeia, Farage foi de uma sinceridade tão brutal quanto tardia. “É uma promessa que eu jamais teria feito”, admitiu. “A meu ver, ela foi um dos grandes erros da campanha”.

O franjado ex-prefeito de Londres Boris Johnson, favorito a suceder ao primeiro-ministro demissionário David Cameron por ter comandado a rebelião “das pessoas comuns, decentes”, também optou pela cautela. Ao invés da esperada declaração de triunfo na manhã da vitória, escapuliu de fininho dos holofotes que o aguardavam na residência em Islington e, quando falou, foi com um pé no freio. Não haveria pressa em acionar o artigo 50, que dá início às negociações da saída de um membro da União Europeia. “Nada mudará a curto prazo”, tentou sustentar em sua primeira coletiva, ao arrepio da sensação geral de que tudo já mudara.

As bolsas em queda livre de até 12%, os bancos do país com perdas de 20%, a libra com a menor cotação em três décadas, a Escócia prestes a convocar novo referendo para se desgarrar de vez da Inglaterra, o Sinn Féin da Irlanda do Norte mirando juntar-se à República da Irlanda — o day after estava apenas começando. O tamanho da encrenca, também. Em parte, é a velocidade dessa avalanche mundial que desconcerta. Pouco tempo atrás, só entendidos e interessados sabiam que Brexit era abreviação de British + exit da União Europeia. Para o resto dos mortais, podia ser nome de barra de cereal ou xarope para expelir bronquite. Hoje, alcançado o objetivo original, Brexit representa o começo do fim de uma era e passa à categoria de nova realidade política e histórica. Seu potencial para influir e alterar o panorama já pode ser atestado pelo efeito cascata em países-membros da própria União Europeia. Está servindo de combustível mais que perfeito para os partidos de extrema-direita robustos como os da França, Itália, Alemanha, Holanda, ou mesmo para os de extrema-esquerda com igual ojeriza pelos tratados europeus. Sem falar na fileira de países do resto da Mitteleuropa, solidários na higienização de suas pátrias contra qualquer imigração.

Da capital do Irã, vieram votos para que a Escócia e a Irlanda se libertem logo “do jugo tirânico da monarquia, da chamada Grã-Bretanha”. Para o czar Vladimir Putin, apesar de ter investimentos pesados na Inglaterra, a novidade é um alívio, pois os britânicos eram os mais aguerridos defensores do boicote da UE contra a Rússia.

De quebra, a vitória do Brexit também injetou uma inesperada lufada de oxigênio na campanha presidencial à Casa Branca do virtual candidato republicano Donald Trump. Há duas semanas ele vinha levando uma surra de sua provável adversária democrata Hillary Clinton em arrecadação de fundos e nas pesquisas de opinião. Acumulara erros em demasia mesmo para seu perfil errático e demitira seu chefe de campanha. Chegou a sumir do noticiário, o que era gravíssimo.

E quando reapareceu, a notícia foi risível: Trump estava embarcando para a Escócia, onde reinauguraria um hotel-resort de sua propriedade. Isso, a poucas semanas da crucial convenção do Partido Republicano em Cleveland. Mas foi o que ele fez, e tirou a sorte grande. Voou na noite da quinta-feira de Nova York para Glasgow, ali embarcou num de seus três helicópteros e pousou no gramado do Trump Turnberry Golf Resort pouco antes das 9h. Boné branco com o bordão “Make America Great Again” na cabeça, deu uma coletiva sobre a vitória do Brexit antes de muitos políticos ingleses.

“É fantástico”, proclamou. “O Reino Unido voltou a assumir controle próprio. Os britânicos reconquistaram sua independência. Vejo um paralelo com o que está ocorrendo nos Estados Unidos. Aqui e lá as pessoas não querem ver gente desembarcando sem saber de onde elas são, sem ter ideia de quem são. E acredito que elas não apenas querem, mas exigem a saída dessa gente...”

Para Trump, cada novo Brexit, Italeave, Czechout, Oustria, Swedone, Nexit ou similar serve de impulso à sua campanha, assim como cada novo atentado terrorista em território americano ou alhures alimenta sua lógica de murar os EUA contra o islamismo.
É conhecido um bordão de Churchill com o qual resumia sua opinião sobre o povo do outro lado do Atlântico: “Você pode contar com os americanos para fazerem a coisa certa depois de terem esgotado todas as outras possibilidades”. As eleições de novembro próximo dirão se ele tinha razão. Mas seria curioso saber se o “British Bulldog” diria a mesma coisa de seus patrícios à luz do voto desta semana.