domingo, 10 de abril de 2016

Serhii Plokhy: “A competição entre o Ocidente e a Rússia nunca terminou”

Teresa Perosa - Epoca 



O historiador ucraniano acredita que a atual política de Vladimir Putin é consequência de decisões tomadas no fim da União Soviética


O historiador ucraniano Serhii Plokhy (Foto: Divulgação)

Para o historiador ucraniano Serhii Plokhy os embates entre Rússiae o “Ocidente” podem ter arrefecido depois do fim da Guerra Fria – mas nunca de fato acabaram. Por isso, não vê com surpresa os impulsos expansionistas do Kremlin de Vladimir Putin. “De muitas formas o que está acontecendo hoje é consequência de decisões chave tomadas em 1991”, afirma. Professor da Universidade Harvard nos Estados Unidos, Plokhy é autor do recém-lançado no Brasil O último império – os últimos dias da União Soviética (Leya, R$55,90), escrito com base em documentos confidenciais tornados públicos há pouco pelos Estados Unidos e pela Rússia. Nele, Plokhi esmiúça os detalhes desconhecidos sobre os meses finais da União Soviética. Além de destacar o papel que a Ucrânia teve no desmantelamento da URSS, o historiador também mostra a surpreendente relação de proximidade entre o ex-presidente americano George H. Bush e o então líder soviético, Mikhail Gorbachev. Em entrevista à ÉPOCA, Plokhy fala sobre a ideia de vitória americana na Guerra Fria e comenta o acirramento das tensões entre Ocidente e Rússia.
ÉPOCA – Um dos aspectos mais interessantes de O Último Império é como o senhor descreve o clima de apreensão dentro da administração do então presidente americano George H. Bush em relação à possibilidade de dissolução da União Soviética. O senhor cita em seu livro dentre trechos de uma carta enviada por Bush ao líder da URSS, Mikhail Gorbachev, um que diz: "Ninguém deseja ver a desintegração da União Soviética". Que interesses estavam em jogo ali?
Serhii Plokhy – 
Naquela época, a Guerra Fria já tinha efetivamente terminado. Já em 1989, Bush e Gorbachev tomaram grandes decisões que encerraram a Guerra Fria. Os Estados Unidos conquistaram ali um parceiro "júnior" na cena internacional. A primeira prova disso foi como a URSS não bloqueou a decisão do Conselho de Segurança da ONU (que permitiu) a Guerra no Kuwait e invasão do Iraque. Essa foi a primeira pista e consequência prática de que a Guerra Fria estava acabada e que os dois poderes estavam trabalhando juntos na arena internacional. Também houve progresso feito em outras questões internacionais, incluindo o Oriente Médio e a África do Sul. Então os Estados Unidos não estavam interessados em perder um parceiro tão cortês/amável quanto Gorbachev. Em segundo lugar, eles também estavam muito preocupados com o que aconteceria na União Soviética se ela se fragmentasse em 15 diferentes repúblicas. A preocupação é que poderia haver guerra civil e conflito, como o que existe hoje entre a Rússia e a Ucrânia. E em 1990 e 1991, a Rússia, Ucrânia, Belarus e Cazaquistão, quatro das 15 repúblicas soviéticas, tinham armas nucleares em seus territórios. Esse conflito poderia se tornar nuclear ou poderia haver uma proliferação de armas nucleares pelo mundo. Essas eram as principais preocupações da administração americana. Mais uma vez, a Guerra Fria estava acabada, eles não queriam perder seu parceiro, e temiam o que aconteceria caso uma guerra civil eclodisse na União Soviética.
ÉPOCA - Principalmente nos Estados Unidos, há a persistência da narrativa de uma vitória americana na Guerra Fria. Seu livro traz a tona uma série de eventos que mostra que a União Soviética se desintegrou principalmente por causa de múltiplos fatores, fraquezas e contradições internas. Por que o mito de uma vitória americana sobre a URSS ainda é tão presente?
Plokhy –
 A mitologia foi criada realmente já no fim de 1991 e início de 1992 e foi criada em meio à campanha presidencial do presidente Bush Sênior, que concorria naquela época para conseguir um segundo mandato na Casa Branca. Ele estava concorrendo em um contexto de desempenho econômico ruim, havia uma recessão nos Estados Unidos. Foi nesse ponto que essas duas narrativas, do fim da Guerra Fria e da queda da União Soviética foram associadas e colocadas juntas para destacar a vitória da administração na arena internacional. E essa se tornou uma das plataformas para a reeleição do presidente Bush, que, como sabemos, não foi reeleito. Mas então a narrativa foi reforçada nos livros de memórias escritos por Bush e por pessoas de sua administração, que estavam mais uma vez proclamando não só o fim da Guerra Fria, mas a vitória na Guerra Fria. Então, a narrativa foi construída puramente por razões políticas, durou e dura, em certo nível, até hoje.
ÉPOCA – E por que é importante que ele seja desconstruído?
Plokhy –
 Porque se criou esta imagem de que os Estados Unidos são esse último império todo poderoso na arena internacional que pode fazer quase tudo, inclusive eliminar países inteiros como a União Soviética. Bush era muito crítico à ideia de desintegração da União Soviética, e de repente estava dizendo que a influência americana era a responsável (pelo fim da URSS). Mas nós não podíamos influenciar a situação nas bases àquela época. Então, houve essa virada em dezembro de 1991, quando ele passou a reclamar o fim da URSS como uma de suas grandes conquistas. E isso criou uma atmosfera que durou todos os anos 1990 e até a segunda Guerra do Golfo, essa ideia de superioridade, essa crença no poder absoluto dos Estados Unidos, e esse tipo de pensamento sofreu uma grande queda. É importante desconstruir esse mito para que não informemos mal o público americano e de todo o mundo e também os formuladores de políticas nos Estados Unidos que o seu país não é o todo poderoso que pode unilateralmente ir e fazer o que quiser, como sugerido por esse mito de fim da Guerra Fria e fim da União Soviética. Quando você olha para o que estava acontecendo em 1990 e 1991, em primeiro lugar, a URSS caiu por causa de seus conflitos internos e seguiu os passos de todos os outros impérios multiétnicos e em segundo lugar, Bush, enquanto tentava administrar o colapso soviético, ele foi muito bom. Ele foi capaz de fazer uma coalizão dos países e ele estava constantemente no telefone com pessoas no Canadá, no Reino Unido, na França e na Alemanha, mas também pessoas na Turquia. Então, todo mundo que poderia ser afetado pelo futuro colapso da União Soviética. Isso é prova que os Estados Unidos não agiu de maneira unilateral, eles atuaram em até certo ponto como líderes, mas não atuaram de forma unilateral.
ÉPOCA – Gorbachev foi uma figura central para entender aquelas época e, no entanto, ele acabou sendo relegado do lugar de uma figura bastante secundária e quase esquecida. Por quê?
Plokhy –
 Se você reivindica para si a conquista de acabar com a Guerra Fria então há muito pouco espaço para qualquer outra pessoa estar nesse mesmo lugar. E se não é o fim da Guerra Fria, mas sim uma vitória na guerra, então a ideia de que a guerra foi encerrada por esforços mútuos e que Gorbachev foi uma figura importante para isso não se encaixa na narrativa de vitória. E essa é a narrativa dominante que existe hoje nos Estados Unidos. Se essa narrativa de vitória é mudada para a narrativa de cooperação e de fim conjunto da Guerra Fria então, é claro, há espaço para trazer Gorbachev de um jeito ou de outro. Mas geralmente, Gorbachev é lembrado como uma figura positiva que acabou, se não com a Guerra Fria, com a ameaça de conflito nuclear entre URSS e Estados Unidos, com suas políticas na União Soviética. Ele é lembrado positivamente, mas não é parte da narrativa de vitória porque essa narrativa não dá espaço para mais que um país ou alguém além das potências ocidentais ocuparem o destaque da cena.
ÉPOCA – O senhor cita a declaração de independência da Ucrânia como uma questão central para o desencadeamento da desintegração da URSS. As ambições expansionistas de Vladimir Putin, hoje melhor expressas na crise separatista ucraniana e na ação direta no conflito sírio estão nos levando a uma "Guerra Fria 2.0"?
Plokhy –
 O que aconteceu em 1991 foi que não houve referendo, per se, quanto à desintegração da União Soviética. Houve apenas uma referendo em relação à Ucrânia se tornar independente. Não houve referendo semelhante na Rússia, no Cazaquistão ou em qualquer outra república. De certa maneira, os ucranianos decidiram por si sós essa questão, mas também decidiram pelo resto da União. A razão para isso foi que a Ucrânia era a segunda maior república da União e a Rússia não via nenhuma razão para continuar com o arranjo da União se a segunda maior república não estivesse mais lá. Eles não queriam segurar o fardo econômico da União sozinhos e com a saída da Ucrânia, a segunda maior economia, a Rússia teria que fazer isso e não estava preparada. Então é estranho, mas o que a Ucrânia fez no fim foi um fator crucial para o fim da União Soviética. Ela não era a maior república, mas sua saída fez o interesse da Rússia na União diminuir. O que estamos vendo hoje é que Vladimir Putin está tentando reintegrar e reganhar controle sobre espaços que eram antes soviéticos. E o modelo para essa reintegração é a chamada "União Euroasiática". E foi muito importante para ele trazer a Ucrânia para o seu lado como parte dessa união pelas mesmas razões pelas quais a Ucrânia era importante em 1991. Mas uma vez que a Ucrânia se recusou a fazer isso, o que nós vimos como resultado foi o conflito entre os dois países, a anexação da Crimeia e a guerra na Ucrânia oriental. A Rússia não quer simplesmente a Crimeia ou o leste ucraniano, mas o que tenta fazer por meio dessas ações é manter a Ucrânia em sua esfera de influência, mais uma vez. A Ucrânia continua sendo o segundo maior país pós-soviético. Então, a crise na Ucrânia na verdade é uma continuação de 1991 e uma consequência da tentativa de Moscou de reintegrar de uma forma diferente, o que era antigo território/espaço soviético.
ÉPOCA – Trata-se de uma nova abordagem nas relações entre a Rússia e o Ocidente?
Plokhy –
 Sim, é uma nova abordagem. Em certo nível, a competição entre o Ocidente e a Rússia em relação ao espaço/território pós-soviético nunca terminou. Então, se houve um acordo no fim da Guerra Fria que permitiu que a Europa Oriental seguisse seu próprio caminho e esse acordo foi firmado em dezembro de 1989, numa reunião de Gorbachev e Bush. Mas nunca houve um acordo sobre qual caminho a Ucrânia tomaria ou mesmo os Estados bálticos (Letônia, Estônia e Lituânia). A Rússia considerou e continua a considerar todos esses países, incluindo os países bálticos que hoje são parte da Otan, como sua esfera de influência. O que mudou nos últimos anos foi que a Rússia passou a demonstrar que estava preparada para usar força militar para consolidar sua influência ou para manter certos países dentro de sua esfera de influência. O primeiro caso foi a Geórgia, em 2008, e depois continuou na Ucrânia em 2013. O que é novo é o uso da força militar e isso significa que nós temos hoje a crise mais aguda nas relações entre Ocidente e Oriente desde o fim da Guerra Fria e que tem muitos elementos da Guerra Fria. É por isso que as pessoas falam de uma segunda Guerra Fria ou continuação da Guerra Fria, é dai que o paralelo surge.
ÉPOCA – Como os eventos descritos em seu livro ajudaram a moldar a Rússia moderna, a Rússia de Vladimir Putin?
Plokhy –
 Em primeiro lugar, a liderança russa decidiu em 1991 que em termos econômicos eles não conseguiriam manter o arranjo antigo, o antigo arranjo da União, depois que os conselheiros econômicos do presidente (Bóris) Ieltsin disseram: a Rússia não tem os recursos para continuar sustentando o império. Então, foi por volta dessa época que a ideia nasceu que a Rússia precisaria cerca de 20 anos para se reconstruir. E depois disso, as repúblicas se voltariam para a Rússia mais uma vez, não na forma de uma União, mas que a Rússia continuaria a ter influência no espaço pós-soviético. Então, de muitas formas o que está acontecendo hoje é consequência de decisões chave tomadas em 1991. Uma delas foi a ideia de existência de uma federação russa. Muitas decisões-chave que são importantes hoje foram tomadas em 1991.
ÉPOCA – A atuação direta da Rússia no conflito da Síria foi essencial para o fortalecimento do regime de Assad. Qual a importância do país árabe para a Rússia e que papel Putin almeja para a Rússia em um novo Oriente Médio, o que emergirá quando e se os conflitos arrefecerem?
Plokhy –
 Mais uma vez, o que está acontecendo na Síria hoje tem suas raízes no último ano de existência da União Soviética, em 1991. Foi o ano depois que as negociações entre Bush e Gorbachev, e também Ieltsin, que participou (delas). A União Soviética estabeleceu relações diplomáticas com Israel. Houve uma grande mudança em termos de política soviética, porque antes a União Soviética apoiava os países árabes contra Israel e Israel era apoiado, como é até hoje, pelos Estados Unidos. Mas em 1991, a política mudou e mudou em um grau que os soviéticos reconheceram Israel em termos diplomáticos, mesmo sem informar a Síria, que à época, era o mais forte aliado soviético na região. O que vemos hoje é um retorno à política dos tempos soviéticos. A Rússia hoje continua a ter boas relações com Israel, mas começou a reconstruir suas relações com os países árabes na região. E há agora não só apoio militar e financeiro para o regime (de Bashar al-Assad), mas intervenção militar.  É um retorno aos modelos da Guerra Fria e de antes de 1991. A razão pela qual está acontecendo é que a Rússia quer ser um ator no Mediterrâneo e o governo sírio é um aliado, e agora temos bases militares ali. A Rússia declarou a si mesma como não só interessada na região, mas também como um grande ator nesses eventos. Então, um conflito na Ucrânia e um conflito no Oriente Médio com participação ativa da Rússia isso mais uma vez nos lembra dos eventos da Guerra Fria.
ÉPOCA – Com o conflito sírio e a crise de refugiados na Europa, a crise separatista ucraniana foi basicamente esquecida pela comunidade internacional. Até os separatistas acusam Putin de ter os abandonado pela Síria. Podemos esperar uma resolução para o impasse vivido pelo país?
Plokhy – 
Houve primeiro em 2014 e depois em 2015 acordos de paz negociados com a ajuda dos países europeus, conhecidos como os acordos de Minsk. Houve apenas um, ai houve uma nova operação militar russa em 2015, e ai os acordos foram renegociados sob termos mais favoráveis à Rússia. Então, os acordos preveem o fim da ação militar e DAS hostilidades, o relaxamento da região, e que essa região será parte da Ucrânia. Mas dado que no fim de fevereiro houve uma renovação do enfrentamento militar, que as tropas russas se recusam a deixar o território e se recusam a dar o controle da fronteira aos ucranianos, eu realmente não tenho muita esperança nos acordos de Minsk. E, caso eles não sejam de fato aplicados, isso significa não só a criação de um "conflito congelado", mas de um conflito com uma interminável guerra de nível baixo, o que pode servir aos interesses russos muito bem, porque como eu disse, os interesses da Rússia não pretendem anexar esse território, que foi arruinado pela guerra e que abarca as minas de carvão que não são mais lucrativas, então economicamente falando não é um prêmio, é um fardo. Não vejo a Rússia incluindo isso como parte do território russo. Mas a Rússia vai tentar usá-lo para tentar influenciar a política em Kiev e tentar parar o movimento da Ucrânia rumo ao Ocidente. Infelizmente eu não vejo uma solução rápida para essa crise enquanto Rússia estiver interessada em usá-la para impedir que a Ucrânia se junte às instituições europeias.