Daniel Haidar e Vinícius Gorczeski - Epoca
ÉPOCA teve acesso à delação dos executivos da Andrade Gutierrez. Eles afirmam que dinheiro desviado de hidrelétrica abasteceu campanhas de Dilma em 2010 e 2014
Em um discurso de quase 45 minutos no Palácio do Planalto na quinta-feira, em mais um evento de apoio a seu governo, a presidente Dilma Rousseff ficou com a voz embargada ao discursar sobre o orgulho que tem de ser mulher, da luta pela igualdade de gênero e ao citar a poeta Cora Coralina. Falava para mulheres que foram a Brasília se manifestar em favor de seu governo, em mais um dos eventos montados no Planalto para denunciar o que a presidente classifica como “trama golpista” para apeá-la do poder.Dilma estava acuada, como de hábito, com mais uma denúncia gravíssima.
Naquela manhã, o jornal Folha de S.Paulo revelara parte do conteúdo da delação premiada de executivos da empreiteira Andrade Gutierrez, que seria homologada ainda naquela tarde pelo ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal. ÉPOCA teve acesso a um trecho da delação, fechada pelos procuradores da Lava Jato. A acusação central é que as campanhas eleitorais de Dilma em 2010 e 2014 foram abastecidas com propina travestida de doações legais.
Participaram do esquema, de acordo com a Andrade, pessoas muito próximas da presidente: Erenice Guerra, secretária executiva da Casa Civil quando Dilma era ministra e sua sucessora na Pasta; Antonio Palocci, coordenador da campanha de 2010 e primeiro ministro da Casa Civil da gestão Dilma; Edinho Silva, tesoureiro da campanha de 2014 e hoje ministro da Comunicação Social; Valter Cardeal, há anos homem de confiança de Dilma no setor elétrico; e Giles Azevedo, assessor especial de Dilma.
No discurso, a presidente não rebateu os crimes que são imputados a tanta gente próxima a ela e que, se comprovados, foram decisivos para sua chegada ao poder. Insistiu na tese de golpe. E vociferou contra os “vazamentos seletivos” de delações – esses sim ela faz questão que sejam investigados pelo Ministério da Justiça. Tipo de tergiversação de quem não tem mais nenhuma confiança na própria defesa.
A delação de Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, dá uma dimensão do escopo do esquema de corrupção na obtenção de contratos de obras públicas ao longo dos governos da coligação entre PT e PMDB. Azevedo foi preso na 14a fase da Lava Jato, a Erga Omnes, em junho de 2015. Em fevereiro deste ano, fechou o acordo para contar o que sabe. Ele apresentou aos procuradores, junto com o ex-executivo da empreiteira Flávio Barra, uma planilha em que detalha como eram compostas as doações oficiais da Andrade Gutierrez às campanhas. Uma parte eram os “compromissos com o governo” por conseguir os contratos para atuar em obras. A outra era a parte “republicana”, doações legais.
Entre os contratos mencionados por Azevedo estão obras da Copa do Mundo de 2014, como o Maracanã (Rio de Janeiro), o Mané Garrincha (Brasília) e a Arena Amazonas (Manaus). Há também propinas vindas do Complexo Petroquímico do Rio, o Comperj, e da usina nuclear de Angra 3. Mas a grande matriz de dinheiro sujo foi mesmo a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. No trecho da delação dos executivos da Andrade a que ÉPOCA teve acesso, a negociação para arrancar milhões em propina da maior hidrelétrica em construção do mundo é exposta em minúcias. E todos os personagens do entorno de Dilma protagonizam algum lance da transação.
A obra em Belo Monte, apesar de suas dramáticas implicações ambientais e dos imbróglios na Justiça por conta disso, sempre foi usada pelos governos do PT como vitrine, como principal obra do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, cuja maternidade foi atribuída, pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Dilma. Quando a licitação para as obras foi montada, Dilma era ministra da Casa Civil e responsável por, junto com o Ministério de Minas e Energia, elaborar os termos do leilão para a construção da usina.
Entre os contratos mencionados por Azevedo estão obras da Copa do Mundo de 2014, como o Maracanã (Rio de Janeiro), o Mané Garrincha (Brasília) e a Arena Amazonas (Manaus). Há também propinas vindas do Complexo Petroquímico do Rio, o Comperj, e da usina nuclear de Angra 3. Mas a grande matriz de dinheiro sujo foi mesmo a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. No trecho da delação dos executivos da Andrade a que ÉPOCA teve acesso, a negociação para arrancar milhões em propina da maior hidrelétrica em construção do mundo é exposta em minúcias. E todos os personagens do entorno de Dilma protagonizam algum lance da transação.
A obra em Belo Monte, apesar de suas dramáticas implicações ambientais e dos imbróglios na Justiça por conta disso, sempre foi usada pelos governos do PT como vitrine, como principal obra do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, cuja maternidade foi atribuída, pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Dilma. Quando a licitação para as obras foi montada, Dilma era ministra da Casa Civil e responsável por, junto com o Ministério de Minas e Energia, elaborar os termos do leilão para a construção da usina.
Na campanha de 2014, Dilma dedicou boa parte de um de seus programas eleitorais na TV para falar, in loco, do orgulho que tem da obra. Primeiramente, a voz de um locutor diz que “Tudo aqui impressiona pela grandeza”. Em seguida, Dilma surge, sorridente: “Muita gente no Brasil não sabe que estamos realizando uma obra desse porte. Pois é, estamos. Por isso, quando falam que o Brasil está parado, eu até acho graça”. A presidente não deve mais achar o assunto tão engraçado. A história narrada por Azevedo e Barra começa ainda em 2005.
Naquele ano, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht se uniram à Eletrobras para fazer estudos de viabilidade da obra. Quatro anos mais tarde, em 2009, representantes das três empreiteiras foram convocados pelo então ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, do PMDB, para uma reunião. Foram informados que teriam de se dividir em dois grupos para participar do leilão da obra, para passar à opinião pública a “aparência de competição” – só essa passagem já confirma de forma claríssima a formação do cartel que tomou conta das licitações na Petrobras e de estatais de outros setores.
Resignados, os executivos das empreiteiras aceitaram os termos do governo. De acordo com a delação, dividiram-se em dois consórcios, Andrade Gutierrez liderando um e Camargo Corrêa e Odebrecht o outro. Com o tempo, Camargo e Odebrecht passaram a questionar a viabilidade do projeto e desistiram. A Andrade permaneceu na “disputa”, convencida de que, pelo acordo, ganharia o leilão.
Ainda no esforço de manter as aparências, o governo ajudou na montagem de um outro consórcio, que “competiria”, de mentirinha, com a Andrade. Esse consórcio alternativo foi montado por Erenice Guerra, Valter Cardeal, então diretor de Planejamento e Engenharia da Eletrobras, e por José Carlos Bumlai, pecuarista próximo ao ex-presidente Lula e também investigado na Lava Jato. O governo traiu a Andrade, que perdeu o leilão.
O consórcio vencedor, criado pelo governo, tinha oito empresas sem experiência alguma na construção de hidrelétricas. Azevedo foi procurado, então, por Antonio Palocci. Segundo Azevedo, Palocci disse que a Andrade Gutierrez era a preferida do consórcio vencedor para ser a subcontratada que construiria de fato a hidrelétrica. Para isso, Azevedo devia convidar as outras duas empreiteiras que ficaram de fora, Odebrecht e Camargo, para que as três formassem um “consórcio construtor”.
O preço do arranjo: o novo consórcio devia pagar 1% do valor total da obra para o PT e para o PMDB. Ou seja, R$ 150 milhões de propina – R$ 75 milhões para cada partido, de acordo com a delação.
Os ex-executivos da Andrade Gutierrez afirmam na delação que aceitaram a proposta de Palocci. E que combinaram com as demais empreiteiras do Consórcio Construtor Belo Monte a divisão do pagamento do pedágio aos partidos, proporcionalmente à participação de cada empresa no grupo.
Os ex-executivos da Andrade Gutierrez afirmam na delação que aceitaram a proposta de Palocci. E que combinaram com as demais empreiteiras do Consórcio Construtor Belo Monte a divisão do pagamento do pedágio aos partidos, proporcionalmente à participação de cada empresa no grupo.
Assim, a conta ficou rachada entre Andrade Gutierrez (18%), Odebrecht (16%), Camargo Corrêa (16%), OAS (11,5%), Queiroz Galvão (11,5%), Galvão Engenharia (10%), Contern (10%), Serveng (3%), Cetenco (2%) e J. Malucelli (2%). De acordo com os delatores da Andrade, esses pagamentos foram realizados por meio de doações eleitorais às campanhas do PT e do PMDB já a partir de 2010. E prosseguiram em 2014. “O interlocutor no PT para tratar desse assunto era João Vaccari Neto.
No PMDB, o interlocutor era Edison Lobão”, diz um trecho do acordo. Em 2011, Lobão “pediu e recebeu em espécie R$ 600 mil que foram entregues a um de seus filhos e abatidos da parcela destinada ao PMDB”. Em 2012, Bumlai recorreu a Azevedo para pedir ajuda. As empresas menores do consórcio estavam atrasando suas parcelas. A própria Andrade Gutierrez diminuiu o fluxo de pagamentos ao longo de 2013. E foi cobrada por isso. Vaccari, então tesoureiro do PT, procurou Azevedo em 2014 e informou que, somando as prestações atrasadas com o que seria pedido em 2014, a Andrade devia R$ 60 milhões.
O relato dos delatores é rico até em mostrar que dentro do PT havia uma clara disputa entre quem recolheria as propinas. Depois de voltar a acertar o “fluxo” de pagamentos, Azevedo diz que foi procurado por Edinho Silva, tesoureiro da campanha de Dilma e atual ministro da Comunicação Social. Edinho informou Azevedo de que o montante devido pela Andrade somava, na verdade, R$ 100 milhões.
“Quando Azevedo informou que esse dinheiro já estava sendo repassado via Vaccari, houve uma discussão”, diz um trecho da delação. A pedido de um outro executivo da Andrade, Giles Azevedo, assessor especial de Dilma, foi envolvido na briga. Giles participou de uma reunião com Azevedo e Edinho, em que ficou acertado que, a partir dali, a Andrade Gutierrez “deveria canalizar seus recursos apenas a Edinho”, num total de R$ 60 milhões.
Foi assim que Azevedo desenhou para os procuradores da Lava Jato a sangria em Belo Monte e como o dinheiro roubado dali abasteceu, disfarçado de doação legal, as campanhas de Dilma Rousseff e do PMDB. A Andrade se comprometeu a pagar uma multa de R$ 1 bilhão e a alterar sua relação com o setor público.
Em nota, o coordenador jurídico da campanha de Dilma em 2014, Flávio Caetano, afirma que a campanha da presidente jamais impôs exigências ou fixou valores de doação. Ele negou que Otávio Azevedo tenha mencionado obras ou contratos da construtora em conversas com Edinho Silva. Caetano diz que Azevedo procurou Edinho Silva e Giles Azevedo “por livre e espontânea vontade” para tratar de doações eleitorais em 2014.
Em nota, o coordenador jurídico da campanha de Dilma em 2014, Flávio Caetano, afirma que a campanha da presidente jamais impôs exigências ou fixou valores de doação. Ele negou que Otávio Azevedo tenha mencionado obras ou contratos da construtora em conversas com Edinho Silva. Caetano diz que Azevedo procurou Edinho Silva e Giles Azevedo “por livre e espontânea vontade” para tratar de doações eleitorais em 2014.
“Desta forma, fica explícito que a acusação de intimidação é mentirosa.” Caetano afirma ainda que Otávio Azevedo estipulou valores e datas de pagamento das doações, registradas no Tribunal Superior Eleitoral, e criticou o que chama de “vazamentos seletivos” de delações premiadas. O advogado Mario de Oliveira Filho, que defende a ex-ministra Erenice Guerra, disse que a delação “não tem o menor fundamento”. “Não sei qual o teor da delação.
Ela entende que isso tudo não tem o menor fundamento.” O advogado José Roberto Batochio, que defende o ex-ministro Antonio Palocci, disse que “a história é falsa. Não se sustenta sequer cronologicamente. A licitação foi em 2010. Mas quem ganhou a licitação não foi a Andrade Gutierrez. Ganhou a concorrente que ofereceu preço menor. Depois, verificou-se que era absolutamente impossível tocar obra dessa magnitude sem capacitação técnica das quatro irmãs.
Só posso adjetivar essa história como mentirosa. Palocci nunca passou perto de montagem de consórcio do setor elétrico em Belo Monte. Ele não estava no governo em 2010”, afirmou Batochio. O advogado do ex-ministro Edison Lobão, Antônio Carlos de Almeida Castro, negou “peremptoriamente” que Lobão ou seus filhos tenham pedido ou negociado repasse de recursos, “muito menos recebido dinheiro vivo”. Valter Cardeal não foi localizado pela reportagem.
As implicações do conteúdo da delação da Andrade são variadas. Uma delas é jurídica. Paralelamente à discussão do impeachment,tramita no Tribunal Superior Eleitoral um processo que investiga abuso do poder econômico nas eleições de 2014 e que pode resultar na cassação da chapa de Dilma e seu vice, Michel Temer. Entre as denúncias está a de que dinheiro desviado da Petrobras teria sido usado na campanha. O andamento desse processo, no entanto, é mais lento do que o impeachment.
O efeito mais imediato da delação da Andrade é o político. A votação do impeachment na Câmara dos Deputados está prevista para acontecer no dia 17 de abril. Uma descrição tão límpida do caminho das propinas desaguando na campanha da presidente Dilma pode ter algum efeito sobre os deputados. Torna difícil também que o discurso de Dilma sobre a ausência de crimes que possam levar a seu impedimento continue emplacando com alguns setores.