domingo, 10 de abril de 2016

"Jornalismo em alta", por Dorrit Harazim

O Globo


Ao longo de mais de um ano a operação ‘Panama Papers’ envolveu 376 jornalistas de 109 redações em 76 países


A pergunta na tela do computador de Bastian Obermayer, do diário alemão “Süddeutsche Zeitung", era lacônica. Recebeu-a no final de 2014 através de um chat criptografado.
“Olá. Interessado em dados?”

Sim, respondeu na hora, por vício de ofício. Experiente repórter investigativo, Obermayer somava maturidade com discrição, já lidara com apurações cabeludas e não era afoito.
“Tenho apenas algumas condições”, acrescentou o informante, até hoje anônimo. “Minha vida corre perigo. Só conversaremos por mensagens criptografadas. Não haverá encontros. Nunca”.

Compreende-se. Ao despejar 11,5 milhões de documentos surrupiados do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca no colo do repórter — os chamados “Panama Papers", que começaram a ser divulgados esta semana mundo afora — ele tornou-se tóxico.

Tornar-se inimigo simultaneamente de Vladimir Putin, Bashar al-Assad e do rei Salman bin Abdul Aziz Al-Saud, para citar apenas três dos milhares de poderosos encrencados nos “Panama Papers", pode ser letal. Como se sabe, em Rússia, Síria e Arábia Saudita cabeças rolam. E o material escancara justamente o funcionamento da indústria global subterrânea que opera contas individuais de quem quer mantê-las longe dos holofotes.

O informante anônimo tampouco queria dinheiro, ao contrário de outro personagem saído das sombras dois anos atrás, que negociou com autoridades alemãs a venda de documentos bem mais modestos da mesma Mossack Fonseca. Algumas centenas de empresas de fachada puderam então ser investigadas — número irrisório quando comparado às 214 mil offshores agora sob escrutínio dos “Panama Papers” — e três bancos alemães chegaram a ser multados em € 20 milhões.

Embora o jornal de Obermayer mantenha um núcleo permanente de cinco repórteres investigativos, logo ficara claro que seria inviável lidar sozinho com o mastodôntico material bruto recebido. Precisava de ajuda braçal e analítica para digerir 2,6 terabytes de data.

Foi buscá-la no lugar onde se pratica um jornalismo independente com capacidade tentacular: o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o Icij, organização com sede em Washington que há quase 20 anos coordena projetos de investigação transnacional.

Ao longo de mais de um ano esta operação mamute envolveu 376 jornalistas de 109 redações em 76 países. Buscaram nexo, pistas e conexões de forma colaborativa para 4,8 milhões de e-mails, 3 milhões de arquivos, 2,1 milhões de PDFs sem que nada vazasse até o estrondo da semana. E conseguiram chegar à data-mãe de todas as datas — 2 horas da tarde do domingo passado, 3 de abril, pelo horário de Washington, 15 horas pelo horário de Brasília e dezenas de outros fusos horários em outros cantos do mundo, com todos os embargos cronometrados e cumpridos.

Sequer a reunião presencial secreta ocorrida em setembro último em Munique, com mais de 50 participantes e fotos para comprovação histórica, vazou. Nem um único selfiezinho postado.

Por si só este já é um feito a ser aplaudido de pé. Até pela diversidade dos envolvidos na apuração. A partir de uma espécie de “núcleo duro” — uma centena de membros do Conselho do Icij envolvidos desde o início, como o brasileiro Fernando Rodrigues, do UOL —, os demais foram sendo arregimentados segundo critérios que levaram em conta a proficiência individual, geografia da apuração, diversidade de mídias. Ao final havia profissionais em todos os continentes, exceto a Antártica.

Nem todos os veículos de comunicação convidados a participar aceitaram mergulhar num projeto de garimpo cujos achados ardilosos nem a Icij sabe onde vão desembocar. Somente em maio serão divulgados os primeiros dados estruturados, com indexação, de 115 mil offshores do baú da Mossack.

No Brasil, além de Fernando Rodrigues, foram atrelados à insana investigação André Shalders, Mateus Netzel e Douglas Pereira, do UOl, José Roberto de Toledo, Daniel Bramatti, Rodrigo Burgarelli , Guilherme Duarte e Isabela Bonfim, do “Estado de S. Paulo”, e Diego Vega e Mauro Tagliaferri, da Rede TV!. Nos Estados Unidos o mais gritante são as grandes ausências.

Enquanto na Inglaterra a BBC e “The Guardian" encabeçam a lista de participantes, focando sua cobertura nas evasões fiscais subterrâneas da elite britânica, a tríade de mais impacto da grande imprensa americana — “New York Times", “Washington Post" e “Wall Street Journal" — optou por ficar de fora. Ausentes não apenas do projeto, que envolve um jornalismo colaborativo de normas estranhas para o modelo tradicional praticado naquelas redações tradicionais. Mas foram sobretudo mesquinhos na cobertura do maior vazamento de documentos sigilosos da história do jornalismo — no dia D, a notícia não saiu na primeira página de nenhum dos três diários. Mais cedo ou mais tarde haverão de ser cobrados por isso.

Gerald Ryle, o diretor do Icij, tomou uma decisão crucial ao constatar a magnitude do material que deveria destrinchar. Ao contrário da WikiLeaks de Julian Assange que desova material bruto na internet e se autodefine como “um sistema não censurável para vazamento de documentos, impossível de ser rastreável”, Ryle optou por não fazer o mesmo com os “Panama Papers”. Em entrevista à revista “Wire” deixou clara sua posição: 

“Não somos WikiLeaks. Queremos mostrar que [este tipo de jornalismo] pode ser feito de forma responsável”Heresia em estado puro para militantes de uma mídia inteiramente aberta , que visa ao acesso irrestrito a qualquer um.

Ryle é mais cauteloso. Não gosta de ser divulgador de listas. Opera segundo o binômio “relavância jornalística + interesse público”. Como cada veículo de comunicação envolvido nos “Panama Papers” tem a responsabilidade final pela publicação , cabe a cada um passar o material pelo filtro editorial e jurídico que achar pertinente. A pergunta a responder previamente é a de sempre: diante de documentos que certamente foram obtidos pelo informante de forma ilegal, a publicação se justifica diante do interesse público maior?
Na semana em que o calendário burocrático marcava um Dia do Jornalista, houve o que comemorar.