segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Por que Sérgio Moro, responsável por julgar a quadrilha comandada pela dupla Lula-Dilma, incomoda tanto

MARCELO MOURA E PEDRO MARCONDES DE MOURA - Epoca


Em um ano e meio, juiz federal prendeu mais poderosos do que toda a Justiça brasileira em uma década



"É ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações”, escreveu o juiz federal Sergio Moro, em 2004, em um artigo sobre a Operação Mãos Limpas, deflagrada na Itália em 1992. A Mãos Limpas tentou dar fim à cumplicidade entre empresários e políticos que, juntos, superfaturavam obras públicas e loteavam o Estado. Para quebrar o pacto de silêncio que servia à impunidade, diz o texto, jovens juízes firmaram acordos de delação premiada com os réus. Prisões preventivas serviram para evitar obstruções à investigação e desfazer a impressão de uma Justiça lenta e leniente com poderosos. “A publicidade conferida às investigações garantiu o apoio às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados.”
 
Sergio Moro (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Como juiz responsável pela Operação Lava Jato, maior investigação de corrupção já feita no Brasil, Moro vive o cenário que ele mesmo descreveu 11 anos atrás: sucesso no combate a empresários e políticos cúmplices ao lotear o Estado e pressões para impedir a investigação. Deflagrada em 2014, a Lava Jato investiga 494 pessoas ou empresas pelo desvio de cerca de R$ 6 bilhões em contratos com aPetrobras. Decretou 113 prisões preventivas ou temporárias e firmou 28 acordos de delação premiada. Recuperou para os cofres públicos R$ 870 milhões e bloqueou outros R$ 2,4 bilhões para eventuais pagamentos. Já condenou mais de 30 pessoas. Na semana passada, o ex-­diretor da Petrobras Renato Duque foi condenado a 20 anos e oito meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa. João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, foi condenado a 15 anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva. André Vargas (ex-deputado do PT do Paraná) foi condenado a 14 anos e quatro meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro. É o primeiro político condenado pela Lava Jato. Vice-presidente da Câmara dos Deputados, de 2011 a 2014, Vargas, no ano passado, ergueu o punho para hostilizar Joaquim Barbosa, o ministro relator do processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF). “Constata-se que o condenado, ao tempo do gesto, recebia propina em contratos públicos”, diz Moro, na sentença de condenação. “O gesto de protesto não passa de hipocrisia e mostra-se retrospectivamente revelador de uma personalidade não só permeável ao crime, mas também desrespeitosa às instituições da Justiça.”


A cara de pau de Vargas, capaz de hostilizar um juiz enquanto recebe propina, é um retrato da longa tradição de impunidade na sociedade brasileira. Existem outros. Em 2009, o presidente Lula não gostou quando investigaram o senador José Sarney.  “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”, disse. Na lógica de Lula, havia o Brasil das pessoas comuns e o Brasil das pessoas distintas. O senso de impunidade expresso por Vargas e Lula tem respaldo nos números. Um estudo da procuradora Ela Castilho diz que, de 700 casos de crime de colarinho-branco julgados entre 1986 e 1996, menos de dez resultaram em condenação. Nenhum réu ficou sequer um dia preso.

Para escapar à prisão, os distintos réus de colarinho-branco não precisaram fugir ou forjar provas. Usaram apenas a lei. Uma visão deturpada da lei, resultado da desfiguração de uma corrente do Direito conhecida como garantismo processual e que tradicionalmente pautou a Justiça brasileira. Forjado para proteger indivíduos contra a mão pesada de ditaduras, na França iluminista após Napoleão e na Alemanha após Hitler, o garantismo defende que punições como a prisão só devem ser aplicadas após o esgotamento de todas as alternativas. “O penalismo deve ser mínimo, a última instância do Estado”, diz André Kehdi, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), meca do garantismo no país. “O processo penal deve ser um escudo do indivíduo contra o Estado.” Na tradição garantista, o texto da lei deve prever todas as regras. O juiz deve se ater a aplicá-las, sem ponderar as consequências da decisão. Isso proporcionaria uma Justiça isenta de preconceitos. A aplicação do garantismo no Brasil, porém, não foi capaz de proteger as “pessoas comuns”. Segundo o Mapa do Encarceramento, dos 515.482 presos de nossas cadeias superlotadas, 38% aguardam julgamento e 18,7% poderiam cumprir penas alternativas. Como são na maioria pobres, não puderam pagar bons advogados, capazes de brigar por seus direitos.


Moro é o símbolo no Brasil de uma Justiça inspirada no Direito anglo-saxão de países como os Estados Unidos. Ela defende uma postura mais ativa e pragmática do juiz para cobrir lacunas da lei. Se para o IBCCrim o processo penal atual é uma defesa para a sociedade, para Moro é justamente o contrário. “O problema é o processo”, diz o título de um artigo assinado por ele em parceria com Antônio Cesar Bochenek, presidente da Associação de Juízes Federais (Ajufe). “Contam-se como exceções processos contra crimes de corrupção e lavagem que alcançaram bons resultados. Os processos duram décadas para ao final ser reconhecida alguma nulidade arcana ou a prescrição pelo excesso de tempo transcorrido”, diz o artigo. Morodefende a prisão de condenados em segunda instância, mesmo que ainda caibam recursos.  “Se sei que só vou ser preso ao final, vou orientar meu advogado a recorrer, mesmo que não tenha razão”, disse Moro, no começo deste mês, ao comparecer a uma audiência na Comissão de Justiça do Senado, que discute um projeto de lei nesse sentido. “Processo que nunca termina é inefetivo e gera impunidade.” 

O avanço de magistrados como Moro foi registrado pelo seminário anual do IBCCrim, em agosto. O evento começou com uma palestra chamada A crise do garantismo penal e terminou com uma mesa-redonda com o juiz da Lava Jato. A ida de Moro à meca dos garantistas causou rebuliço. Dez dos mais prestigiados escritórios de advocacia do país, habituais patrocinadores do seminário, retiraram o apoio neste ano. “Não vou pagar para dar palco a quem viola constantemente o direito de defesa e falará sobre colaborações que sabemos bem como se dão”, disse em maio o advogado Arnaldo Malheiros Filho, que já defendeu Fernando Collor, Orestes Quércia, Paulo Maluf e o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares. O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, chegou a discutir a criação de um seminário paralelo. Ele defende a ex-governadora Roseana Sarney e o senador Edison Lobão na Lava Jato. Defendia também o doleiro Alberto Youssef, antes de ele assinar um acordo de delação premiada. A direção do IBCCrim ignorou as resistências. “Nenhuma instituição tem razão de subsistir se não for capaz de mergulhar nas suas próprias entranhas”, diz o ex-desembargador Alberto Silva Franco, fundador do IBCCrim. O instituto surgiu em 1992, após o impeachment de Collor e o massacre do Carandiru.


Primeiro a discursar no painel com Moro, o ex-procurador de Justiça Lenio Streck atacou a visão pragmática do Direito.  “Juiz não decide dilema moral. Não posso entrar em dilemas como: ‘Parece que a sociedade espera a condenação de fulano, mas a prova é ruim ou ilícita’. ‘Sacrifico a vontade do povo ou o direito de defesa?’ Mensalão e Lava Jato são sintomas de algo maior”, disse Streck, aplaudido de pé por cerca de 500 pessoas.

Moro não riu das piadas contadas por Streck nem deixou evidente quando estava contrariado. Ao agradecer o convite à palestra, errou o sobrenome do anfitrião. Murmúrios da plateia o corrigiram – voltariam a fazer isso quando errou a pronúncia de palavras. Mensagens pipocavam numa comunidade de WhatsApp chamada Família IBCCrim.  “O tema da colaboração premiada é muitas vezes contaminado com discussões fundadas por preconceitos e dados imprecisos”, disse Moro. “Já vi advogados dizerem não fazer acordos de colaboração por uma questão de ética. Que ética é essa? De jamais colaborar com a Justiça? Jamais confessar crimes?”, disse. “É bom para a Justiça ver casos resolvidos de forma mais expedita, diminuindo o risco de condenação de inocentes. É bom para a Polícia facilitar a investigação. É bom para o acusado receber um prêmio. É bom para a sociedade receber de volta dinheiro decorrente de acordos de colaboração. Todos ganham”, disse Moro. “Obrigado pela paciência.” O juiz foi aplaudido de pé por apenas quatro pessoas – procuradoras de Minas Gerais que não faziam parte da “Família IBCCrim”. Os demais se limitaram a aplaudir sentados.

Apesar da escassez de aplausos no evento do IBCCrim, até a decisão do STF da semana passada, as teses de Moro estavam avançando nos tribunais. O exemplo mais claro de mudança da Justiça brasileira está na comparação entre as operações Castelo de Areia e Lava Jato. As duas investigaram a empreiteira Camargo Corrêa pela acusação de pagamento de propina a políticos em troca de fraudes em licitações de obras públicas. A Castelo de Areia, de 2009, foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os advogados da construtora desqualificaram não o teor das provas, mas todo o processo de investigação. 

Quatro anos depois, na Operação Lava Jato, o comportamento da Camargo Corrêa mudou. Seus advogados também tentaram anular a investigação. Fracassaram. A Lava Jato apoia-se em provas mais robustas, colhidas por investigadores mais qualificados. A Polícia Federal tornou seus concursos mais rigorosos, teve expressivo aumento de orçamento e ampliou em quase três vezes seu efetivo em comparação à década de 1990. Na Castelo de Areia, a delação premiada, prevista na Lei de Crimes Hediondos, desde 1990, já existia, mas não se encontrava regulamentada. Isso só foi acontecer por uma lei própria em 2013. Incapaz de deter a Lava Jato, a construtora teve de recorrer à colaboração como instrumento de defesa. Funcionários confessaram crimes, indenizaram os cofres públicos e apresentaram provas contra comparsas nas fraudes do petrolão. Em troca, tiveram suas penas abrandadas. “Antes, os advogados costumavam encerrar um processo ao apontar falhas técnicas na acusação”, diz Pierpaolo Bottini, professor de Direito da USP, membro do IBCCrim e advogado de executivos da Camargo Corrêa. “Hoje precisam vencer na discussão do mérito, o que nem sempre ocorre.”

Ao desmembrar o inquérito da Lava Jato, na semana passada, o Supremo Tribunal Federal privilegiou a rigidez burocrática do processo penal acima da lógica. Os crimes de um único esquema criminoso até agora foram julgados por uma única vara. Agora, serão julgados no Estado onde ocorreu o crime. Se o critério do endereço faz sentido, por que não foi usado desde o início? Até a semana passada, a Lava Jato foi bem-sucedida ao se pautar pela lógica dos criminosos e buscar quebrá-la. Agora, a lógica da Lava Jato foi quebrada. Os garantistas venceram uma batalha contra Moro.
Como a justiça mudou  (Foto: Thiago Domingo/Futura Press e Félix R. /Futura Press)