sábado, 31 de outubro de 2015

Gustavo Franco: "Não há gasto público incortável, nem os sociais"

Samantha Lima - Epoca



O ex-presidente do Banco Central alerta: mesmo que todos os gastos no Orçamento pareçam legítimos, o país não tem esses recursos. É preciso definir prioridades



Ex-presidente do Banco Central (1997-1998) no governo de Fernando Henrique Cardoso e sócio da Rio Bravo Investimentos, o economistaGustavo Franco vê a crise econômica como consequência de o governo ter feito “absolutamente tudo errado” nos últimos anos. Se feito a fundo, o ajuste fiscal não terá como poupar nem mesmo programas de transferência de renda. “Tem de ter espírito livre para analisar o todo.” Segundo o economista, tanto o governo quanto o Congresso se escondem da responsabilidade de fazer escolhas para ter um Orçamento equilibrado, jogando a responsabilidade sobre o ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Franco também atribui a crise à corrupção e ao que chama de “capitalismo de quadrilha”. Para ele, o modelo econômico apoiado em um Estado gastador se transformou “em veneno”.

GÊNESE Gustavo Franco na sede da Rio Bravo. Ele acha que Lula errou ao deixar de lado as reformas necessárias (Foto: Henk Nieman/ÉPOCA)
ÉPOCA – Qual foi a origem da crise e como ela contribuiu com a piora das contas públicas?
Gustavo Franco –
 Não há uma causa simples. De forma ampla, é a falência de um modelo de política econômica que prevaleceu a partir de 2008 e que é mãe de todos esses males. A crise nas contas públicas tem a ver com corrupção, com o capitalismo de compadrio, que prefiro chamar de capitalismo de quadrilha. É como se as autoridades quisessem confrontar cada pressuposto de boa política econômica. Parecem estar tentando nos convencer, o tempo todo, que o capitalismo não funciona. Obviamente, isso fracassou.
ÉPOCA – Há desenvolvimentistas que defendem que se aumentem agora o gasto e o investimento público, a fim de acelerar a economia. Isso voltaria na forma de arrecadação. Essa receita funcionaria em algum momento? Funcionaria agora?
Franco –
 Há situações na economia em que o aumento de gasto público é um remédio, e outras em que é veneno, como agora. Algumas pessoas repetem esse samba de uma nota só. É uma tolice. O único remédio que eles sabem usar foi utilizado em excesso e agora virou tóxico.
ÉPOCA – É possível consertar o tripé econômico baseado em metas de inflação, rigor fiscal e câmbio flutuante?
Franco – 
Dá para consertar. Nada condena o Brasil a dar errado, mas também nada nos condena a dar certo. O que ocorreu foi que o governo fez tudo errado a partir de 2008, absolutamente tudo, e estamos pagando o preço disso.

ÉPOCA – A inflação deve chegar ao fim de 2015 em 9%, o dobro do centro da meta. Por que ela resiste num nível tão alto, mesmo com juros elevados e recessão?
Franco – 
A perda do poder de compra da moeda é reflexo também da conjuntura ruim. Se não fosse a explosão na taxa de câmbio, talvez o número fosse menor. Mas a inflação reflete uma percepção mais ampla sobre o crédito público, sobre a credibilidade do governo de tomar dinheiro emprestado e de sua sustentabilidade financeira. É fácil ver que o crédito público só fez piorar.

ÉPOCA – Como é possível aprovar as medidas necessárias ao ajuste fiscal diante da crise política? A presidente conseguirá retomar esse protagonismo?
Franco – 
Acho difícil. Os temas políticos centrais são o impeachment da presidente da República e a situação do presidente da Câmara. A política paralisou a capacidade do Brasil de tomar decisões, e isso aumenta qualquer crise. Nossa baixa capacidade de lidar com a crise é incompatível com o tamanho do desafio. É um paramédico na calçada tratando de paciente com doença grave. Evita o óbito, mas não resolve nada. Será uma lástima termos mais três anos de atraso.
"A Petrobras privatiza, tenta reduzir a dívida, corta custos. Por que o governo não faz o mesmo?"
ÉPOCA – Diante do desgaste, o que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, pode fazer para contribuir com a saída da crise?
Franco – 
Pouco. Propostas como a recriação da CPMF revelam que as pretensões são modestas. Não há espaço para a formulação, nem coordenação política para oferecer alguma coisa que reduza despesas ou a dívida pública, ou ainda privatizar. Ele tem papel de racionalidade, em uma equipe que não tem nenhuma. Seu colega ministro do Planejamento (Nelson Barbosa) é o mesmo das pedaladas, de tudo o que deu errado.
ÉPOCA – Quais as consequências, para a economia, do antagonismo entre Barbosa e Levy?
Franco –
 No passado, muitos presidentes tiveram um (ministro) gastador e outro controlador (leia a reportagem sobre o livro do ex-presidente Fernando Henrique). Um prevalece, mas o outro é uma espécie de consciência crítica. Há também o fato de Barbosa permanecer para conduzir a defesa das pedaladas fiscais, no Congresso. A presidente não pode abandonar essa culpa, então está lá o Barbosa, por uma segunda razão.
ÉPOCA – A fritura de Levy pelo PT piora a crise?
Franco –
 O PT frita até seus próprios líderes. Neste momento em que é preciso uma autocrítica do que deu errado – a conversa de política anticíclica e de nova matriz econômica, que é o modelo econômico deles –, eles se contorcem para fazer com que a culpa seja do Levy, que acabou de chegar.
ÉPOCA – Se o Levy deixar o governo, o que o senhor acha que deve acontecer?
Franco –
 É grande o risco de outras agências de risco tirarem o grau de investimento do Brasil, assim como fez a Standard & Poor’s. Faltou percepção política à presidente de que o Levy tinha de crescer e ocupar novos espaços no governo.
ÉPOCA – E se o Barbosa suceder a Levy?
Franco –
 Se o líder da política econômica for de perfil gastador, sem um ortodoxo na equipe, voltaremos à era Mantega. A queda do ministro e sua substituição por alguém de perfil diferente vai repercutir negativamente nos mercados.

ÉPOCA – Se reformas avançarem no Congresso e o ajuste for concluído, em quanto tempo se retoma o crescimento?
Franco –
 Desde que o Brasil venceu a hiperinflação, há 20 anos, estamos nessa conversa. A urgência de combatê-la trouxe impulso político para importantes reformas na economia. Quando Lula assumiu, foi decretado o fim das reformas. Foi um erro, porque, tal como nas empresas, os países precisam de constante esforço de inovação. Dá certo cansaço olhar o tempo que se perdeu. Talvez a crise seja o impulso que faltava. Mas não tem botão a apertar. Precisamos de um plano completo de coisas a reformar, com problemas difíceis que precisam de soluções difíceis. É o que falta. Já que vai ter uma Emenda Constitucional para a CPMF, por que não é possível fazer outra coisa do lado da despesa? Não consigo entender como, num Orçamento de R$ 1,2 trilhão, não se consiga cortar R$ 50 bilhões.
ÉPOCA – É possível ajustar as contas sem rever os gastos sociais e programas de transferência?
Franco –
 É preciso ter espírito livre para olhar tudo. Nada é incortável. Se o país não encarar isso de frente, vamos continuar num ambiente de paralisia, em que a inflação ou a dívida vão explodir. Chegamos à situação em que todos os itens do Orçamento são legítimos, só que isso soma algo acima da receita. Vai pegar programas sociais? Seguramente. Quando não se tem dinheiro nem capacidade de endividamento, tem de cortar. A sociedade deve se organizar para ter Orçamento equilibrado, transparente. A democracia é tão mais sólida economicamente quanto mais avançada forem suas instituições orçamentárias, inclusive para escolher prioridades.

ÉPOCA – Qual é a participação da crise da Petrobras nos problemas econômicos do país?
Franco –
 Aquilo é uma miniatura do Brasil com todos os vícios: arrogância, omissão, irresponsabilidade, corrupção, megalomania. O endividamento cresceu, a perda de valor foi de US$ 200 bilhões. Cada centavo disso é culpa de Dilma e Lula. A empresa confessou em balanço auditado ter pagado R$ 6 bilhões em propina. Isso não está desligado do modus operandi da política econômica. Ela também está mostrando o caminho, fazendo privatização, tentando reduzir sua dívida, cortando custo. Por que o governo não faz o mesmo?
ÉPOCA – O senhor, como gestor de ativos, vê boas oportunidades de investimento no Brasil?
Franco –
 Existe um acervo de possibilidades em infraestrutura. O governo afasta o investidor ao impor restrições regulatórias ou regras hostis à rentabilidade, como se fosse proibido ganhar dinheiro. É preciso rever essa postura.