segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"Não sossega", por Ruy Castro

Folha de São Paulo


Há um importante festival de cinema ocorrendo no Rio, com estreias, debates, prêmios e, quem sabe, uns bate-bocas. Alguns desses filmes partirão para sólidas carreiras comerciais; outros voltarão humildemente para suas latas. E, em dez anos, todos estarão sofrendo das mesmas doenças que atacam os filmes: o desgaste, a deterioração e, a longo prazo, a quase destruição.

Poucas artes são tão frágeis quanto o cinema. Um filme depois de exibido já não é o mesmo de uma hora e meia antes. O celuloide vive sujeito a arranhões, mastigadas, rupturas, poeira, umidade, mofo. Pode até pegar fogo sozinho –acervos inteiros já se perderam assim. Mesmo nos EUA, onde não se joga nada fora, 80% dos filmes produzidos nos primeiros 30 anos do século 20 deixaram de existir.

Martin Scorsese, o diretor, tornou-se um grande nome nessa área. Sua Film Foundation, uma instituição dedicada ao restauro e preservação de filmes do passado, já salvou centenas de títulos, de Tom Mix a Visconti, em mau estado ou julgados imprestáveis. Sou-lhe especialmente grato por ter recuperado a obra do cineasta inglês Michael Powell, de "O Ladrão de Bagdá" e "Narciso Negro".

Até há pouco eu imaginava que, com a tecnologia digital, que permite restaurar um filme e produzir uma cópia perfeita, esse filme estaria salvo para sempre. Mas, segundo o próprio Scorsese, em entrevista a Guilherme Genestreti na Folha (28/9), não é bem assim. Podemos projetar hoje filmes feitos há 100 anos, mas quem garante que, em 2025, os equipamentos conseguirão ler o material digital produzido em 2015? Donde precisamos conservar também os originais, e mantê-los livres das doenças que os acometem.

Não só os filmes, eu diria. Os livros, jornais, fotografias e documentos, também. Não se pode confiar na tecnologia –ela não sossega.