terça-feira, 4 de março de 2014

"Políticas de austeridade causaram danos quase irreparáveis", por Joseph E. Stiglitz

O Globo

  • Em ambos os lados do Atlântico, o PIB deverá crescer consideravelmente mais rápido este ano do que em 2013
 
Logo depois da eclosão da crise financeira de 2008, eu adverti que, a menos que políticas adequadas fossem adotadas, uma enfermidade à japonesa — baixo crescimento e rendas perto da estagnação durante anos — poderia acontecer. Líderes de ambos os lados do Atlântico alegaram que tinham aprendido a lição do Japão, mas prontamente começaram a repetir os erros. Agora, até um importante ex-funcionário dos EUA, o economista Larry Summers, alerta para o risco de estagnação.

O ponto básico que levantei há meia década foi que a economia americana estava doente mesmo antes da crise: era apenas uma bolha no preço dos ativos, criada por regulação frouxa e baixas taxas de juro, o que fazia a economia parecer robusta. Abaixo da superfície, havia muitos problemas: desigualdade em expansão; necessidade não atendida de reforma estrutural (sair de uma economia baseada na manufatura para uma de serviços e se adaptar a vantagens comparativas globais em mudança); desequilíbrios globais persistentes; e um sistema financeiro mais sintonizado com a especulação do que em investimentos que gerassem empregos, aumentassem a produtividade e redirecionassem superávits para maximizar os ganhos sociais.

A resposta das autoridades à crise falhou em abordar essas questões; pior, exacerbou algumas delas e criou outras novas — e não apenas nos EUA. O resultado foi aumento no endividamento de muitos países nos quais o colapso do PIB solapou as receitas dos governos. Além disso, subinvestimento, tanto no setor público quanto no privado, criou uma geração de jovens ociosos e alienados num momento de suas vidas em que deveriam aprimorar suas capacidades e aumentar sua produtividade.
Em ambos os lados do Atlântico, o PIB deverá crescer consideravelmente mais rápido este ano do que em 2013. Mas, antes que os líderes que abraçaram políticas de austeridade espouquem champanhes e façam brindes, deveriam examinar onde estamos e levar em conta os danos quase irreparáveis que essas políticas causaram.

Toda crise acaba um dia. A marca da boa política é conseguir fazê-la menos profunda e mais curta do que poderia ser. A marca das políticas de austeridade que muitos governos adotaram é que elas tornam a crise mais profunda e mais longa do que o necessário, com consequências de longa duração.

O PIB per capita (ajustado pela inflação) no Atlântico Norte é hoje mais baixo do que em 2007; na Grécia, a economia encolheu algo como 23%. A Alemanha, o país europeu com melhor desempenho econômico, obteve miserável crescimento anual médio de 0,7% nos últimos seis anos. A economia americana ainda é cerca de 15% menor hoje do que seria se o crescimento tivesse continuado nos níveis moderados de antes da crise.

Mesmo esses números não contam toda a história de como as coisas estão ruins, porque o PIB não é uma boa medida do sucesso. Muito mais relevante é o que aconteceu com a renda das famílias. A renda real média nos EUA está abaixo da de 1989, há um quarto de século; a renda média para trabalhadores em tempo integral é menor hoje do que há mais de 40 anos.

Alguns, como o economista Robert Gordon, sugeriram que nós deveríamos nos ajustar a uma nova realidade na qual o crescimento da produtividade a longo prazo será significativamente menor do que no último século. Dado o desempenho medíocre dos economistas em fazer previsões, ninguém deve ter muita confiança em uma bola de cristal que antecipa décadas futuras. Mas isto parece claro: a menos que os governos mudem suas políticas, devemos esperar um longo período de desapontamento.

Os mercados não se autocorrigem. Os problemas que descrevi antes poderiam ter sido piores — e muitos são. Desigualdade enfraquece a demanda; desigualdade crescente a enfraquece ainda mais; e, na maioria dos países, incluindo os EUA, a crise agravou a desigualdade.

Os mercados nunca foram bons em obter rápidas transformações estruturais por sua própria conta; a transição da agricultura para a manufatura, por exemplo, foi tudo, menos suave; ao contrário, foi acompanhada por significativo deslocamento social e pela Grande Depressão. Desta vez não é diferente, mas de alguma forma pode ser pior: os setores que deveriam estar crescendo, ao refletir necessidades e desejos dos cidadãos, são serviços como educação e saúde, que tradicionalmente recebem financiamento público, e por uma boa razão. Mas, em vez de os governos facilitarem a transição, a política de austeridade a inibe.

Malaise é melhor do que recessão, e recessão é melhor do que depressão. Mas as dificuldades que enfrentamos agora não resultam de inexoráveis leis da economia, às quais simplesmente precisamos nos ajustar, como no caso de um desastre natural, um terremoto ou tsunami. Nem são um tipo de penitência pela qual devemos passar para expiar pecados — embora, com certeza, as políticas neoliberais que prevaleceram nas últimas três décadas tenham muito a ver com nossa atual situação.

Nossas atuais dificuldades resultam de políticas defeituosas. Há alternativas. Mas não as encontraremos na complacência satisfeita das elites, cuja renda e portfólios de ações estão novamente em alta. Apenas alguns, parece, devem se adaptar permanentemente a um padrão de vida mais baixo. Infelizmente, essas pessoas são a maioria.