O Estado de São Paulo
Para que corações sensíveis aceitassem que os black blocs são fora da lei e
que é necessário reprimi-los foi preciso que um jornalista perdesse a vida.
Quando se observa o que se vem registrando desde junho último, tem-se situação,
dir-se-ia, surrealista.
Primeiro, cuidou-se de buscar compreender a razão do aparecimento desse grupo
de jovens que se dedicam à destruição. Teorias surgem para explicar a violência
- acompanhadas, sempre, de críticas severas à ação da Polícia Militar (PM). Nos
meios intelectuais debate-se a necessidade de uma polícia unificada, enquanto
aqui e ali, onde é possível encontrar acolhida a esse tipo de palavra de ordem,
se passou a insistir, em campanha orquestrada, na extinção das Polícias
Militares - porque são militares. Só a ação policial é violenta - essa a lógica
da pregação - porque a polícia é militar. Donde se seguiria que a polícia
passaria a tratar os manifestantes "de acordo com a lei". Diria: "Parem! É a
polícia!", e os vândalos deixariam os coquetéis molotov e não mais destruiriam o
que lhes passasse pela cabeça. Em outras palavras, prega-se, apoiando-se na
sensibilidade dos corações, que o aparelho repressivo do Estado não reprima,
apenas use a razão para convencer de que está errado quem se coloca e age
racionalmente contra a lei...
O horizonte torna-se mais sombrio quando se observam algumas reações de
muitos dos que não desejam a ruptura da ordem, estejam em que partido político
estiverem. O governador Geraldo Alckmin foi ridicularizado porque atribuiu a
grupos organizados um dos últimos incidentes no metrô. Antes disso, já se havia
buscado ligar ao crime organizado as manifestações e a violência subsequente. Há
também os que, acostumados a analisar os fatos à luz da lógica militar
(aplicável a toda sucessão de confrontos violentos), insistem em que estamos
diante de uma guerra de quarta geração - convencional, nuclear, terrorista,
urbano-terrorista -, cujo objetivo é abalar as estruturas do Estado para... Para
quê, contra quem?
Agora, discute-se fazer lei que castigue com severíssimas penas a violência
nas manifestações. E discute-se se essa violência caracteriza atos de terrorismo
(?) ou é apenas um ilícito que o Código Penal não contempla e que deve ser
punido severamente... O grave é que a conjugação da ação dos black blocs com a
desobediência e a violência "civis" do dia a dia está provocando reações
individuais e grupais de vendetta que, alastrando-se, conduzirão a situações
totalmente fora de controle: se a polícia não protege, façamos nós a
justiça.
Um exercício acadêmico: tomemos as primeiras declarações do rapaz preso por
cumplicidade na morte do repórter fotográfico da TV Bandeirantes. Pelo que se
viu, é um tipo tranquilo, que nunca despertou suspeitas de seus vizinhos. Por
suas declarações à TV, estava na manifestação com o rojão que matou o repórter
e, de repente, alguém lhe disse: "Dê-me, que vou acender". Ele - ora! - deu e
foi embora. A polícia estará interessada no aspecto criminal de seus atos, nada
mais. O outro, acusado de haver acendido o foguete, depois de fazer declarações
à TV sobre seu desejo de que os brasileiros possam comer e viver bem, admitiu
que há quem alicie os tranquilos para que se "manifestem"... A mais a polícia
não chegará - sobretudo porque, como diz a defesa, ele foi coagido
psicologicamente, pois falou ao delegado sem a presença de seu advogado...
Ainda que a polícia, as Segundas Seções da PM, da Força Nacional de
Segurança, da Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência estejam
aparelhadas para monitorar comunicações telefônicas e virtuais, nunca chegarão à
organização que, agora, se presume existir.
Nas guerras de libertação nacional dos anos 1950 e seguintes, os insurgentes
organizavam-se em células de três ou cinco membros, com um único contato com
outro grupo. Hoje não há grupos de três ou cinco. Basta um, tranquilo, ter
contato com outro igualmente tranquilo que, numa "balada", conhecerá outros n
tranquilos. Quando irão agir não os preocupa - o governo lhes dará o pretexto,
desde que mexa com o sentimento de desassossego de muitos pacatos cidadãos. A
rigor, não é preciso chefia no sentido bolchevista; a organização "central" pode
ser mais de um, mas sempre menos de cinco jovens tranquilos, leitores de algum
existencialista moderno ou de um leninista mofado. Eles pensam e querem! E tudo
indica que têm recursos para mobilizar os demais tranquilos.
Nada de "armas de
fogo". Gasolina para molotovs há em qualquer posto. Foguetes explosivos, onde se
vendem fogos de artifício. Os mais ousados encontrarão bananas de dinamite com
algum assaltante de banco. A internet dará os meios de comunicação não se sabe
com quem e não interessa saber. Haja espionagem para descobrir quem orienta e
comanda!
Assim se monta a parte operacional. Há, por certo, quem se preocupe com o
objetivo final, desconhecido dos que lançam pedras, rojões ou coquetéis molotov.
Alguém cuida do que se chamou há tempos de "guerra psicológica adversa" - e a
campanha para acabar com as PMs coincide com um único objetivo: um Estado que
não reprima! Serviço secreto algum chegará ao misterioso "Dr. Fu Manchu" que,
nos anos 1930, pretendia destruir o Ocidente apostando na droga e na luta
racial.
Nas situações que levam ao desespero é preciso contrapor o otimismo da
vontade ao pessimismo da inteligência. O otimismo da vontade do general Massu
ganhou militarmente a batalha da Argélia, mas a IV República Francesa perdeu-a
politicamente, envolta na névoa do pessimismo da inteligência.
Por quase toda parte vejo triunfante o pessimismo da inteligência. Teremos
condições de a ele contrapor o otimismo da vontade e superar a crise? Ou o
Estado sucumbirá ao pessimismo da inteligência?
PROFESSOR DA USP E DA PUC-SP, É MEMBRO DO GABINETE E OFICINA DE LIVRE
PENSAMENTO ESTRATÉGICO. SITE: WWW.OLIVEIROS.COM.BR