sexta-feira, 7 de março de 2025

J.R. Guzzo - Eles ainda estão aí


O diretor Walter Salles posa com a estatueta de Melhor Longa-Metragem Internacional por Ainda Estou Aqui, do Brasil, na 97ª edição do Oscar, em Hollywood, Los Angeles, Califórnia, EUA (2/3/2025) | Foto: Daniel Cole/Reuters

 

A estrutura mental de Ainda Estou Aqui é uma fotografia em alta resolução do grande projeto político, partidário e ético da esquerda brasileira de hoje: o 'sem anistia'


Os jornalistas, os influenciadores e as classes que não produzem, ou raramente produzem alguma coisa útil, criaram para si próprios um episódio de derrota, angústia e desapontamento perfeitamente desnecessário. O Brasil nunca precisou “ganhar um Oscar” para melhorar em alguma coisa — mesmo porque, quando um brasileiro ganha um prêmio ou uma distinção qualquer, o mérito é dele, e não do “país”. Não se conhece, também, nenhum cidadão que já tenha ganhado um tostão furado torcendo pela medalha do seu próximo. Mas o Brasil de hoje, por razões de natureza não explicada, mergulhou num dos ataques de nervos mais histéricos já produzidos pelo complexo de inferioridade que há séculos assombra nossas elites. Sua exigência básica: “O Brasil tem de ser respeitado no exterior”. Excitada por essa ânsia, a mídia decidiu que um filme brasileiro tinha de ganhar o Oscar de 2025. 

Chegado o dia da premiação, o filme nacional não ganhou nada de sério — o contrário, exatamente, do que os comunicadores vinham garantindo ao público há três meses seguidos. A atriz brasileira que deveria ganhar o prêmio de Melhor Atriz perdeu. O filme brasileiro que deveria ganhar o prêmio de Melhor Filme perdeu. Sobrou, unicamente, um prêmio de consolação como Melhor Filme Estrangeiro, algo que fica ali entre a melhor maquiagem e a melhor engenharia de som — e dos quais nunca mais ninguém vai ouvir falar de novo. Alguém lembra do Oscar para o Melhor Filme Internacional do ano passado? Pois é. Sendo esses os fatos, a pergunta que se coloca é: “E daí?” Em condições normais de temperatura e pressão, perder o Oscar, ou o Prêmio Nobel, não quer dizer rigorosamente nada. A atriz não tem culpa nenhuma por não ter sido premiada como melhor atriz. O diretor não tem culpa nenhuma por não ter sido premiado como autor do melhor filme. 

Da mesma forma, ninguém estava exigindo que uma e o outro ganhassem os prêmios. Ninguém estava preocupado com o Oscar. Ninguém, em suma, cobrava, exigia ou esperava nada — salvo os jornalistas, que se lançaram, sem que ninguém lhes tivesse pedido alguma coisa, no esforço de transformar uma simples possibilidade de prêmio num dever do cinema mundial perante o Brasil. A certa altura, passaram a acreditar, eles próprios, que pelo menos a atriz já tinha ganhado. Resultado: os intelectuais e o seu mundo perderam uma partida que não precisavam disputar e, no final, ficaram arrasados com a premiação. Para que isso tudo? Nenhum país desenvolvido do mundo fica nesse desespero de “ganhar o Oscar” — no Brasil, porém, os comunicadores fabricaram toda uma causa nacional em torno do assunto. Estão tendo, agora, de curtir a ressaca.


Fernanda Torres comemora a vitória do diretor Walter Salles na categoria de Melhor Longa-Metragem Internacional por Ainda Estou Aqui, do Brasil, durante a cerimônia da 97ª edição do Oscar, em Hollywood, Los Angeles, Califórnia, EUA (2/3/2025) | Foto: Carlos Barria/Reuters


Não se trata de avaliar os méritos relativos do filme, mesmo porque isso aqui não é uma crítica de cinema — e ainda bem que não é, por faltar ao autor o mínimo de competência, ou de interesse, para avaliar a qualidade de filmes. Há pelo menos uns 500 outros que são no fundo a mesma coisa, entre os que ocasionalmente são citados na literatura de cinema — a história do perseguido por uma ditadura de direita que é preso pela polícia ou pelo Exército, mesmo sem saber o que fez, e ninguém nunca mais vê, porque é assassinado no cárcere ou desaparece sem motivo conhecido. Costa-Gravas, para ficar só num dos especialistas mais elogiados do ramo, encheu as telas do mundo inteiro com filmes assim durante mais de 30 anos. 

O que vem ao caso, no regime em vigor no Brasil atual, é a malversação da ideia geral de cultura para fazer propaganda política. Dizem que é arte. É militância lucrativa. Tanto faz, na verdade, se o filme é bom, ruim ou nem uma coisa nem outra. Para os cérebros que se apresentam como o creme intelectual do Brasil, e cuja característica principal é a ausência de creme, ou mesmo de intelecto, Ainda Estou Aqui é a maior realização do espírito humano desde a Pietà de Michelangelo. Não é — mas mesmo que fosse apenas o Borba Gato da Avenida Santo Amaro, a mídia, a esquerda e as milícias artísticas vão à guerra para dizer que é. Todo mundo, é claro, tem o pleno direito de falar o que bem entender sobre um filme de cinema. Acha que é uma obra-prima? Então ache, à vontade. O problema começa, e não vai mais embora, quando o Comitê Central da cultura brasileira estabelece, como um decreto, uma verdade histórica que não é verdade histórica — e impõe ao público, embalado como se fosse arte, um sermão de política partidária. 

No filme em questão o militante político de extrema esquerda aparece como um arcanjo familiar, e a direita como o retrato de tudo que há de mais abjeto no mundo. É monótono, repetitivo e falso. O ex-deputado Rubens Paiva foi efetivamente preso, em janeiro de 1971, pelas polícias ocultas da ditadura militar e nunca mais foi visto — com ou sem vida. É igualmente indiscutível que, ao ser preso e desaparecer, não estava combatendo pela restauração da democracia no Brasil. Militava, ao contrário, para derrubar os militares do governo e impor no lugar deles a ditadura da sua própria facção — como pregavam, em manifestos escritos, os movimentos terroristas da época, descritos como a “luta armada”. Mais: os organizadores do filme, na sua estratégia de lançamento e de Oscar, sustentam que a tragédia de Paiva tem relação direta com a situação política do Brasil de 2025. 

O diretor do filme declarou em público, por exemplo, que o seu trabalho não poderia ter sido feito durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro; só agora, com Lula na Presidência, foi possível. Por quê? Qual foi a restrição objetiva que a filmagem teve de enfrentar no governo anterior? Falta de Lei Rouanet? Mas se o filme é uma obra de arte, como dizem que é, por que seria necessário receber dinheiro do 07/03/2025, 12:56 Eles ainda estão aí - Revista Oeste https://revistaoeste.com/revista/edicao-259/eles-ainda-estao-ai/ 4/8 Tesouro Nacional para ser feito? A atriz principal foi na mesma linha. A certa altura da campanha do Oscar, ela chegou a dizer que “milhares de quilômetros” quadrados da Amazônia foram incendiados “intencionalmente” por Bolsonaro — e outras coisas do mesmo nível. Ambos, diretor e atriz, fizeram questão de exibir em público seu apoio integral ao presidente da República. Foi um dos maiores esforços já feitos na área artística para politizar uma criação do cinema. 




A mídia, a universidade e o mundo cultural, por sua vez, fizeram tudo o que podiam para “artificar” uma criação da política. Há três meses não se fala em outra coisa a não ser nas chances cada vez “maiores” de Fernanda Torres, a estrela do filme, ganhar o Oscar de Melhor Atriz — o que, diante dos resultados finais, poderia incorrer nos crimes de fake news, ou pelo menos “desinformação”, que tiram o sono do ministro Alexandre de Moraes. Falou-se o diabo de uma atriz concorrente transexual, acusada pela imprensa de “racismo” — para se ver como a coisa anda confusa hoje em dia. Fernanda, especialmente, foi transformada pelos comunicadores numa espécie de Joana d’Arc do cinema nacional. Lançaram manifestos sobre a centralidade do seu sorriso, ou a extrojeção psicológico-sensorial de seu gesto de cruzar as pernas durante uma entrevista na tevê. Entrevistaram o seu joalheiro. Debateram o vestido que usaria na cerimônia do prêmio. 

A imprensa nos informou sobre a maquiagem de Fernanda, o discurso que ela não tinha escrito para o caso de ganhar e os seus estados de espírito em tempo real. Praticamente não houve uma única edição de alguma coisa, nesta reta final, sem a sua presença nas manchetes. Chegaram até a mandar “enviados especiais” para Los Angeles, mesmo que ficassem do lado de fora e vissem o espetáculo pela televisão; poderiam ter ido para a Praia Grande que daria no mesmo. Um influenciador extremo, num momento de descontrole, chegou a afirmar que Fernanda poderia levar “o Brasil” ao “sonho” de ganhar um Oscar. Os organizadores e os participantes do filme, possivelmente, não obrigaram ninguém a se lançar nessa puxação de saco desesperada. Os jornalistas se comportaram assim porque quiseram, gostaram e não percebem mais que há diferenças entre notícia e composição infantil sobre os próprios desejos.

O mais curioso dessa história, que já caminha para o arquivo morto das lembranças inúteis, é que a estrutura mental de Ainda Estou Aqui, em bloco, é uma fotografia em alta resolução do grande projeto político, partidário e ético da esquerda brasileira de hoje: o “sem anistia”. Não ocorre a ninguém na equipe do ex-candidato ao Oscar que Rubens Paiva foi destruído por suspeitas de ligação com o bando terrorista do capitão Carlos Lamarca, assaltante e assassino — e que centenas de brasileiros que nunca tiveram sequer uma multa de trânsito em suas vidas estão nos cárceres do STF e do ministro Moraes. Eles ainda estão todos aí. 


J.R. Guzzo - Revista Oeste