sexta-feira, 7 de março de 2025

'America First', por Carlo Cauti

 A 'guerra de tarifas' do governo Donald Trump é uma reação a uma economia global protecionista


O presidente dos EUA, Donald Trump, discursou em uma sessão conjunta do Congresso no Capitólio dos EUA em 04 de março de 2025 em Washington, DC. O vice-presidente JD Vance e o presidente da Câmara Mike Johnson (R-LA) aplaudem atrás dele | Foto: Win McNamee/Poo via Reuters

“V ários países impuseram tarifas alfandegárias contra nós por décadas. Agora é nossa vez de começar a usá-las contra eles. Em média, a União Europeia, China, Brasil, Índia, México e Canadá, e inúmeros outros, cobram tarifas tremendamente mais altas do que nós cobramos deles. É algo muito injusto.”

 Assim o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deixou bem clara a principal razão que está orientando sua política comercial: a reciprocidade. Aplicar o mesmo nível de tarifas para produtos importados de países que impõem barreiras alfandegárias aos itens americanos. 

Segundo dados do Banco Mundial, em média os Estados Unidos aplicam uma tarifa de 2,72% sobre os bens importados. No Brasil, é de 12,38%. Quase seis vezes mais. No caso da Índia, 14,26%. Na China, 6,54%. No México, 6,02%. 

Ou seja, tirando acordos comerciais que reduzem bilateralmente essas barreiras alfandegárias, o resto do mundo é muito mais protecionista do que os Estados Unidos. 

E esses impostos contribuem para alimentar uma enorme distorção. Em 2024, a balança comercial americana fechou com um rombo recorde de quase US$ 1,3 trilhão. É o quarto ano consecutivo em que esse déficit supera o trilhão de dólares. Mais da metade desse mar vermelho está concentrado nas transações com a China (cerca de US$ 300 bilhões), União Europeia (cerca de US$ 240 bilhões) e México (cerca de US$ 170 bilhões). 

Dados que não deixam dúvidas sobre a existência de um desequilíbrio no comércio internacional. Que continua pelo menos desde os anos 1980, mas se acentuou a partir do começo do século, quando a China entrou para a Organização Mundial do Comércio (OMC). 

Se em 1991 a balança comercial americana tinha um leve déficit de cerca de US$ 28 bilhões, em 2001 o rombo explodiu, superando os US$ 376 bilhões. Em uma década, o vermelho mais que decuplicou.


O déficit comercial dos EUA atingiu US$ 1,3 trilhão em 2024, com China, UE e México puxando mais da metade. O desequilíbrio, agravado desde a entrada da China na OMC, cresceu drasticamente desde os anos 1990 | Foto: Reuters/Evelyn Hockstein 

Trump quer reequilibrar esse cenário ao elevar barreiras que tornarão os produtos importados mais caros no mercado americano. E, portanto, menos atrativos para os consumidores locais. Que comprarão menos, gerando menos importações e, com isso, reduzindo o déficit comercial. 

Além disso, quer forçar as empresas que se deslocaram para mercados mais baratos a voltar a investir em solo americano, de modo a incentivar a substituição das importações pelas produções in loco e gerar empregos para trabalhadores americanos. 

Segundo a Tax Foundation, entidade sediada em Washington, as novas tarifas prometidas por Trump poderiam reduzir as importações americanas em 15%, gerando cerca de US$ 100 bilhões por ano em receita tributária federal extra. 

Protecionismo pode não ser a solução

Todavia, esses impostos alfandegários poderão ter efeitos negativos sobre a economia americana, como aumento significativo dos custos de produção, interrupção das cadeias de suprimentos, eliminação de centenas de milhares de empregos e, por fim, elevação dos preços ao consumidor final. 

“O problema de impostos alfandegários é que são uma resposta de curto prazo” explica Margarida Sarmiento Gutierrez, professora de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 “Podem parecer razoáveis em primeira leitura, mas não resolvem o problema do déficit comercial estrutural dos Estados Unidos, que é provocado por uma redução da competitividade de alguns setores econômicos. Não será apenas por meio de barreiras tarifárias que setores industriais voltarão nos EUA.” De fato, junto com o aumento dos impostos alfandegários, o programa de governo de Trump prevê um mix de desregulamentação, menores impostos e oferta de energia abundante, para reduzir os custos de produção nos EUA.


Impostos alfandegários são uma solução de curto prazo e não resolvem o déficit comercial dos EUA, causado pela baixa competitividade. Trump propõe, além das tarifas, desregulamentação, corte de impostos e energia barata para estimular a indústria |

Durante seu primeiro mandato de governo, entre 2017 e 2020, Trump levou adiante exatamente essa estratégia, mesmo que de forma mais moderada. Reduziu o imposto de renda corporativo de 35% para 21%, favoreceu a exploração de reservas petrolíferas do óleo de xisto e começou a aplicar impostos alfandegários. Nos primeiros anos de mandato, impôs tarifas de 50% sobre painéis solares e máquinas de lavar roupa, de 25% sobre importações de aço e de 10% sobre importações de alumínio. 

Essa política econômica não foi alterada sensivelmente pela gestão de Joe Biden, que manteve a grande maioria dos impostos alfandegários criados por Trump e adicionou novos contra a China, como a taxa de importação sobre veículos elétricos. Sinal de que democratas e republicanos concordam em relação à necessidade de rever as distorções da balança comercial dos Estados Unidos. 

A raíz do problema: déficit fiscal 

“Se de um lado aplicar impostos alfandegários é quase sempre um erro, do outro é preciso considerar que o caso da China é diferente”, diz Margarida. “Os produtos chineses de baixo custo estão invadindo o mundo ao desrespeitarem as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), violando propriedade intelectual, manipulando a taxa de câmbio, subsidiando as produções, e não seguindo padrões ambientais, muito menos trabalhistas. 

Nesse caso, aumentar os impostos alfandegários teria algum sentido.” Todavia, levar adiante uma política de reindustrialização poderia ter consequências negativas, principalmente no caso da inflação. 

Hoje, a economia americana registra um dos menores índices de desemprego da história — cerca de 4%. Em vários setores falta mão de obra, razão pela qual os EUA estão importando mão de obra imigrante e aumentando os salários. Com isso, alimentam uma espiral de alta dos preços. Sem contar que a economia americana há décadas vem crescendo impulsionada por setores de tecnologia, como gigantes do Vale do Silício, fintechs, empresas de inteligência artificial etc. 

A chamada “velha economia”, baseada na manufatura com baixo valor agregado, foi transferida para outros países com menor índice de desenvolvimento científico. Mas isso provocou o desemprego, ou a redução dos salários, dos trabalhadores não qualificados que atuavam nas plantas que fecharam nos EUA. Os “colarinhos azuis” da chamada “cintura da ferrugem”.

Que perderam emprego, não conseguiram se realocar em outros setores e votaram em Trump para tentar reverter essa situação.


O Vale do Silício impulsionou a economia dos EUA, enquanto a manufatura foi transferida para outros países, o que agravou o desemprego entre trabalhadores menos qualificados | Foto: Shutterstock

“O problema é que a raiz do déficit comercial americano é o déficit fiscal”, explica Reginaldo Nogueira, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec). “A incapacidade dos Estados Unidos de fechar suas contas públicas no azul há mais de 40 anos injeta mais dinheiro na economia, aumenta o poder de compra dos consumidores locais e, com isso, aumenta as importações. Nem mesmo durante o final dos anos 1990, quando o governo federal voltou a registrar superávit primário, as coisas mudaram.” 

Dilema de potência

 Na década de 1960, o economista belga-americano Robert Triffin desenvolveu a famosa “Teoria do Dilema”, que levou seu nome. Segundo ele, um país que tem uma moeda de reserva global enfrentará inexoravelmente um conflito de interesses econômicos. Pois terá que fornecer grandes quantidades de sua moeda para atender à demanda internacional, por meio da compra de produtos e serviços do exterior. E, portanto, registrar grandes déficits comerciais que terão consequências econômicas internas, como a desindustrialização. 

“Esse é exatamente o caso dos Estados Unidos”, diz Nogueira. “O dólar é a moeda de reserva do mundo. E os déficits fiscais americanos foram para as reservas internacionais de todos os países. Por isso eles também não sofreram no passado com problemas de inflação. A massa monetária em circulação era absorvida nos cofres de outros bancos centrais.” 

O problema de manter uma divisa de referência do planeta é o custo que isso gera para a população do país emissor. O excepcionalismo do dólar tem um preço. Mas a eleição de Donald Trump mostrou que a maioria do povo americano não está mais disposta a pagar. 


A eleição de Trump mostrou que muitos americanos rejeitam os custos de manter o dólar como moeda global, buscando mudanças na política econômica | Foto: Reuters/Kevin Lamarque

Hipocrisia tarifária A esmagadora maioria dos economistas e analistas critica duramente a política tarifária de Trump. Na maior parte das vezes, salientam o fato de que “serão os consumidores americanos que pagarão o maior preço da guerra comercial”. 

Em resposta ao aumento de 25% nos impostos alfandegários, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, disse que Trump “pode ser muito inteligente, mas o que está fazendo é muito burro”. Poucos segundos depois, ele também anunciou uma alta de tarifas contra produtos americanos. Mesma decisão tomada pela China, que já anunciou elevação de barreiras alfandegárias sobre produtos agrícolas americanos. 

E ameaças idênticas foram feitas pela União Europeia e pelo Brasil, caso as tarifas contra eles se concretizem. 

Mas então, se impostos alfandegários são o mal absoluto, “muito burro”, e prejudicam a população do país que os aplica, por que outros países estão retaliando da mesma forma? “Esse foi muito mais um movimento político do que econômico”, explica Nogueira. “Até porque os efeitos negativos para economias menores, como o Canadá ou o México, serão muito mais intensos do que para uma economia gigantesca como a americana. Economias pequenas não conseguem influenciar os preços internacionais, então um aumento das tarifas mexe diretamente com os padrões de consumo. Enquanto, no caso das economias grandes, movimentos como esses provocam uma queda dos preços internacionais. Pois os produtores do mundo inteiro querem exportar para os Estados Unidos e acabam reduzindo os preços, cortando suas margens, para não perder o maior mercado do mundo.” 

E é exatamente isso que está começando a acontecer. O Walmart, maior varejista do mundo, pediu para seus fornecedores chineses grandes reduções de preços. Com isso, os fabricantes asiáticos terão que arcar com o custo total das tarifas de Trump. 

A cura e o veneno 

Os impostos alfandegários de Trump são uma resposta simples a um problema complexo. Mas a maior questão é a ausência de alternativas. 

Ninguém está apresentando soluções para reequilibrar os fluxos comerciais internacionais para evitar uma nova guerra comercial. Pois quase todos os países do mundo estão ganhando ao manterem uma balança comercial ativa com os Estados Unidos. 

Trump, por sua vez, parece estar implementando uma abordagem negocial de “bastão e cenoura” para reorganizar o paradigma internacional. Como demonstram as seguidas aplicações e suspensões de tarifas para favorecer negociações.


Milhares de contêineres no Porto de Long Beach, próximo a Los Angeles, na Califórnia, o maior porto dos EUA | Foto: Shutterstock

Setenta anos de balança comercial negativa dos EUA criaram uma forte dependência de várias economias em relação ao consumidor americano. Por exemplo, se Trump aplicar uma tarifa de 25% sobre os produtos importados do México, o impacto sobre o produto interno bruto (PIB) mexicano será devastador, podendo se contrair em cerca de 16%, de acordo com a Bloomberg Economics. O setor mais afetado será, sem dúvida, a indústria automotiva. Já que o México envia quase 80% dos carros que produz para os Estados Unidos, totalizando cerca de 2,5 milhões de veículos a cada ano. Mesma coisa para o Canadá, em que dois terços das exportações dependem do mercado americano. 

“Trump pode até ter razão sobre a ausência de reciprocidade na cobrança de impostos alfandegários e pedir uma revisão geral das tarifas”, explica Margarida. “Olhe, por exemplo, quanto cobramos aqui no Brasil sobre o etanol importado — cerca de 18% —, enquanto os EUA cobram apenas 2,5% sobre nosso combustível. O problema é que isso desorganizará a economia mundial, criará outras distorções, reduzirá a eficiência global, aumentará a inflação nos EUA e acabará prejudicando a competitividade deles no longo prazo.” 

No final, a solução para as tarifas alfandegárias parece ser a mesma que Paracelso, médico e alquimista suíço do século 16, sugeriu sobre dosagens de remédios: tomados com moderação e para o propósito certo, podem ajudar a curar. Tomados em excesso, eles se tornam um veneno

Revista Oeste